domingo, 25 de dezembro de 2022

Bucha de canhão natalina, Muniz Sodré, FSP

 É muito sugestiva a frase de Todorov de que racismo não precisa de raça para existir. Falta acrescentar, porém, que raça é algo que se inventa a gosto do poder, sempre com interesses lesivos. O fundamentalismo islâmico inventa a "raça" feminina para dominar. No momento, é questão visível também na Buriácia, Daguestão, Tuva e Inguchétia, regiões para as quais uma agência de viagens dificilmente conseguiria convencer turistas a comprar excursões, mas na certa venderia passagens de saída

aos seus habitantes.

Se pudessem pagar, claro. São todos russos muito pobres e, na realidade, não tão russos assim como se fazia crer. Por não se enquadrarem no padrão étnico valorizado, são marginalizados e explorados. Agora, da pior forma possível, como recrutas prioritários para a Guerra da Ucrânia.

Padre Oleksandr abençoa um soldado da Guarda Nacional da Ucrânia em sua posição no norte da região de Kharkiv - Sergey Bobok/AFP

Não é fenômeno exclusivo. Como observou Michel Foucault, "o racismo é indispensável como condição para poder tirar a vida de alguém". Os militares americanos sempre se valeram de estratos depreciados da população na geopolítica bélica. Foi assim com os negros na guerra civil, igualmente no Vietnã quando aos jovens brancos parecia que a droga era a única resposta racional à insanidade. O alvo racial deslocou-se para imigrantes, com acenos a recompensas: patriotismo desinteressado, só em filmes de segunda classe.

A máquina de guerra desconhece critérios de igualdade para o sacrifício humano. Hoje, só dois tipos de gente parecem motivados. Primeiro, os loucos de Alá, convictos de se inscrever pelo martírio no Livro da Vida, em nome do profeta.

Depois, os compelidos à defesa do território. É o caso dos ucranianos, que infligem reveses aos russos. Estes, às vésperas do Natal, reduplicam os mísseis e drones, que vitimizam principalmente crianças e velhos. Carecem, porém, de trezentos mil soldados para tentar manter as regiões anexadas. Daí o açodamento por recrutas prioritários. É cínica e militarmente estratégico mandar jovens morrerem por coisa nenhuma. Só que os vivos discordam: duzentos mil escaparam para o Cazaquistão.

Em matéria de insanidade política, ucranianos e russos compartilham ideias de povo nacional seleto. Marketing de Zelenski à parte, seu aparelho de Estado é abertamente nazificado. Já durante a Segunda Guerra, ucranianos massacravam poloneses em nome de pureza racial. O inimigo dito "externo" das autocracias é a própria diversidade civil. E os russos, que nem sequer são "brancos verdadeiros" aos olhos da elite "wasp" americana, mistificam uma raça "sub-russa", para fins de bucha de canhão. Um torpe refluxo da história. Mas também persistência do anti-humanismo fascista: raça e racismo são seus eternos produtos oportunistas.

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