sábado, 10 de dezembro de 2022

Edição de Sábado: Arthur Lira, o artífice, por Luciana Lima - Meio

 O tapete vermelho estava estendido desde a porta da Chapelaria. Subia as escadas, contrastava com o carpete verde do salão e chegava à porta do plenário da Câmara dos Deputados. Poucas horas antes do início do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a constitucionalidade das emendas de relator, o mestre no manuseio dessa ferramenta cuidava da política. Como se nada estivesse para acontecer no outro vértice da Praça dos Três Poderes.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), abriu a sessão que, ao mesmo tempo, concedeu medalha do Mérito Legislativo à primeira-dama, Michelle Bolsonaro, e rendeu homenagem póstumas ao jornalista Dom Phillips e ao ambientalista Bruno Pereira, mortos na Amazônia durante uma missão para denunciar a degradação ambiental. Foram condecoradas 31 pessoas. Lira abotoou a honraria no pescoço de Michelle, primeira a receber a medalha, por indicação da deputada evangélica Rosângela Gomes (Republicanos-RJ). Ficou no palco por mais alguns minutos para condecorar duas indicações suas: o presidente da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear), Eduardo Sanovicz; e o diretor da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Rafael Vitale — o mesmo que, um dia antes, havia deixado de comparecer a uma audiência da Comissão de Viação e Transportes para esclarecer denúncias de corrupção investigadas pela Polícia Federal.

Lira nem viu quando a viúva de Dom Phillips, Alessandra Sampaio, chorou ao receber a honraria. Coube ao líder do PT, Reginaldo Lopes (MG), consolá-la e aparecer na foto, ao lado também da antropóloga Clarisse Jabour, que representou o indigenista Bruno Pereira na cerimônia. Após passar as funções ao vice, deputado Lincoln Portela (PL-MG), Lira percorreu todo o plenário entre cochichos e cumprimentos. Vencido o corpo a corpo, alcançou o elevador do cafezinho, que o levou direto para a Chapelaria. Dali, partiu para a Residência Oficial, onde um almoço com o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, e a cúpula do PSB o aguardava. No percurso, Lira chegou a ser questionado sobre suas expectativas em relação ao julgamento do STF que estava para acontecer. “Como vou ter expectativa em relação a julgamento do Supremo?”, devolveu e seguiu o baile.

No encontro com Alckmin, os dois chegaram a comentar en passant a PEC da Transição que vai à Câmara na próxima semana. Mas o assunto principal foi menos indigesto: o apoio do PSB à recondução de Lira à presidência da Câmara em 2023 e, em contrapartida, a intenção de Lira de não criar problemas para o novo governo.

“O alagoano não é de ideologias.” É assim que o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), líder da bancada evangélica, traduz Lira em conversa com o Meio. O pastor tenta um espaço como vice na Mesa Diretora da Câmara na chapa — até agora unânime — de Lira. “Ele é pragmático. O maior diferencial dele é a capacidade de dialogar com a esquerda e com a direita, com a mesma facilidade e com o mesmo respeito. E agradar a todos”, elogiou. A síntese do Centrão profissional.

Na parte da manhã, porém, os evangélicos haviam experimentado outra característica conhecida de Lira: a de não prometer o que não pode cumprir. A bancada o chamou para uma ceia em um dos auditórios da Casa. Diante de uma mesa enfeitada com toalha rendada, flores, pães e ramos de trigo, Lira recebeu uma listinha de desejos. Não acatou. “Minha vida não é difícil de ler. Sou correto, muito correto com os amigos e previsível nas ações. Eu não ofereço nada mais e nada menos do que posso entregar”, respondeu.

Entre os pontos elencados, estava o Estatuto do Nascituro, proposta que pressupõe direitos a fetos e que contrasta com as permissões de aborto presentes na lei brasileira. Outro ponto era a proposta que permite o “homeschooling”, que se opõe à lei vigente que obriga os pais a mandarem os filhos para a escola. A negativa sutil de Lira aos religiosos, segundo petistas, tem tudo a ver com um compromisso já assumido com o futuro governo: o de descontaminar a pauta da Câmara de matérias “de costumes” e priorizar temas econômicos.

O julgamento do STF se enveredou pela tarde de quarta e foi suspenso no início da noite pela ministra Rosa Weber, presidente da Corte, com a promessa de ser retomado na próxima quarta-feira (14/12). Interlocutores de Lira disseram que ele sequer ligou a TV para acompanhar os arrazoados apresentados. Após o almoço com Alckmin, seguiu sua rotina eleitoral. Recebeu líderes partidários, entre eles o do MDB, Isnaldo Bulhões (AL). À noite, de volta à Câmara, também não teceu nenhum comentário sobre o STF. Manteve o foco em conversas individuais com parlamentares no gabinete.

Essas conversas, tratadas como privadas por seus auxiliares, têm sido a principal rotina de Lira desde o desfecho das eleições. Ele recebe um por um dos atuais deputados. E tem aqueles que servem de cicerones para os novos eleitos. Faz parte do “tour de boas-vindas” a Brasília passar pela casa ou pelo gabinete de Lira. O presidente os recebe com toda atenção e espera, é claro, o retorno.

Muito acordo, pouca ideologia

Mas de onde vem tanto poder? Lira tem fama de “cumpridor de acordos”. Essa é a principal característica citada por deputados de todas as tendências existentes na Câmara. Os parlamentares de direita atestam que o que o diferencia de Eduardo Cunha, ex-presidente da Casa que deu início ao impeachment de Dilma Rousseff, é a falta de apreço pelas “ideologias”. Já os deputados de esquerda apontam que ele não é chantagista. Lira também não é de holofotes e sempre preferiu as negociações de pé-de-ouvido, dessas fechadas nos corredores e dentro dos gabinetes. “Acordo fechado com ele é assim, você pode virar as costas e ir cuidar da vida”, disse o deputado Ênio Verri (PT-PR), que foi líder do partido no ano passado. “Pelo menos durante a minha liderança, foi assim”, ressalta.

Não é só com o PT que Lira mantém boa relação no campo da esquerda. A conversa com o PCdoB, por exemplo, tem sido cotidiana e bastante próxima. A deputada baiana Alice Portugal (BA) é uma amiga. Lira chegou a intermediar conversas dela e da deputada Carmen Zanotto (Cidadania-SC) com o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, quando as duas tocavam na Câmara a pauta do piso salarial para a enfermagem. Alice brinca com Lira, dizendo que, se ele tem fama de coronel, ela o considera um “coronel pós-moderno”. “Não venha dar uma de bolsonarista. Isso você nunca foi. Eu te conheço”, provocou a deputada, certa vez, se dirigindo a Lira em uma das conversas em meio a votações. “Ele é um pragmático. Mas não é um bolsonarista. Nunca foi”, repetiu, enfática, a deputada ao Meio.

Quem o conhece desde antes de ele chegar à presidência da Casa diz que sempre foi assim. Lira se dedica mais às articulações feitas nos bastidores e, na maioria das vezes, fora da Câmara, longe dos olhares da imprensa. Tanto é que ele estabeleceu uma rotina semanal inédita desde que chegou ao poder: levou as principais discussões para a Residência Oficial onde, todas as terças, planeja a semana com um café da manhã com os líderes da oposição e um almoço com os da base. Não é uma coisa tão certinha assim. Tem deputado do PT que vai almoçar e tem gente da base que toma café da manhã. Tem ainda os mais chegados que vão nos dois encontros.

O pragmatismo político fez com que Lira, apesar de ter sido o maior articulador da base bolsonarista, mantivesse boa relação com petistas. Odair Cunha (MG), Reginaldo Lopes (MG), Enio Verri (PR), José Guimarães (CE) e até a presidente do partido, Gleisi Hoffmann (PR), estão entre os interlocutores mais assíduos, apesar das divergências.

A abertura da conversa com Lula não dispensou, no entanto, uma satisfação a Bolsonaro. No início de novembro, véspera da reunião marcada com o presidente eleito, Lira esteve no Palácio da Alvorada. Encontrou um presidente abatido pela derrota. Ficou cerca de 30 minutos e avisou-o sobre a agenda que ocorreria no dia seguinte.

A postura depressiva de Bolsonaro, sem reconhecer o resultado das eleições, foi tema de uma das conversas de Lira com o PL. O presidente da Câmara, dessa vez, abusou da sinceridade, provocando olhares perplexos dos recém-eleitos que ainda esperavam que algo acontecesse e mudasse o resultado do pleito. “Sinto informar, mas nada vai acontecer”, disse Lira. “E alguém precisa ir lá e falar com ele (Bolsonaro). Se precisar, eu vou.” Foi desencorajado, no entanto, pelos amigos do presidente. Na mesma reunião, criticou a insistência dos novos eleitos na pauta armamentista. “Essa discussão já passou do ponto.”

Me ajude a te ajudar

Não se constrói uma reputação de cumpridor de acordos em Brasília sem algo a se oferecer em troca. O “toma lá, dá cá”, afinal, tem duas pontas. Foi aí que Lira teve uma sacada na administração das emendas de relator para atender as demandas apresentadas pelos deputados nas “reuniões privadas”. Parlamentares dizem que isso fez com que eles parassem de rodar a Esplanada “com pires nas mãos” suplicando por audiências com ministros e, muitas vezes, tomando um belo “chá de cadeira”. “É muito melhor se comprometer com o presidente da Câmara do que com o ministro de Estado ou com o presidente da República. É bem mais confortável”, disse um deles, sob reserva.

É com esse argumento que Lira vende seu peixe. Ele tem dado um conselho a deputados do centrão após a vitória de Lula. O de que ninguém ganha sendo oposição. Ganha mais quem for independente. E é assim que pretende se manter. Dessa forma, a negociação caso a caso entre o Executivo e o Legislativo fica mantida. Tudo sustentado na lógica de que, com R$ 19,4 bilhões — total destinado para emendas de relator no projeto da Lei Orçamentária Anual (LOA) do próximo ano — para administrar, não há por que ser governista. Pelo menos por enquanto.

“A gente vê muito essa lógica de vender dificuldades para o governo eleito. Ficar independente pode ser estratégico nesse momento, até, para depois, vender mais caro, caso haja adesão no futuro, conseguir melhores cargos, melhores ministérios”, avalia o cientista político Lucas Fernandes, da consultoria BMJ e que acompanha o dia a dia das discussões sobre orçamento na Câmara.

A construção do orçamento secreto

O poder do Congresso de fazer alterações no orçamento vem da Constituição de 1988. Até 2015, as emendas eram apresentadas e aprovadas, só que o governo não era obrigado a executá-las. A primeira alteração constitucional determinou que parte das emendas individuais, ou seja, apresentadas pelos parlamentares de forma independente, teria execução obrigatória. A partir daí, a imposição sobre o Executivo só aumentou. Em 2019, essa obrigatoriedade se estendeu também para as emendas de bancada, aquelas propostas pelas bancadas dos partidos ou dos estados.

Só em 2019, na gestão de Rodrigo Maia, as emendas de relator passaram a ser identificadas com a sigla RP-9, forma que aparece no Sistema Integrado de Administração Financeira (Siaf). Rodrigo Maia também fez uso desse mecanismo para atender demandas de deputados. Só que, com Lira, essa prática ganhou robustez, principalmente em contraste com a decisão de Bolsonaro de abrir mão da função de controlar a execução orçamentária.

“Esse poder todo que Lira teve na presidência da Câmara não veio a troco de nada. Houve um vácuo no papel de negociação do governo federal. Bolsonaro não quis formar uma base usando a negociação com partidos e se isentou dessa discussão orçamentária. Isso fez com que ele começasse a puxar mais pelas emendas de relator. Até então, elas tinham um papel mais residual no orçamento e passou a ter um papel estratosférico”, apontou Fernandes.

O caráter secreto das emendas vem do fato de que os nomes dos deputados que as requisitaram e foram atendidos não ficam disponíveis para a população. As reclamações apresentadas pelos partidos Cidadania, Rede, PV e PSOL, de oposição ao governo de Jair Bolsonaro, ao STF apontam falta de critério para essa distribuição. Aos amigos do rei, tudo. Aos inimigos, a lei. “Como o relator é indicado por Lira, ele passou a turbinar a base bolsonarista com essas emendas. Foi uma enxurrada de dinheiro para ganharem a eleição”, criticou um parlamentar, sob reserva. No ano passado, o relator do Orçamento era o deputado Hugo Leal (PSD-RJ), membro do Centrão, de quem Lira hoje é virtualmente o dono.

Sem isonomia e transparência, brotam escândalos. Há denúncias de compras de tratores superfaturados; cidades pequenas que tinham cerca de 85 caminhões de lixo saltaram para uma frota de 488 veículos; o governo aceitou pagar até R$ 567,6 mil por um ônibus que deveria custar, no máximo, R$ 361,8 mil, além de uma verdadeira inundação de ambulâncias no Piauí, terra do ministro Ciro Nogueira (PP).

Mas é no Maranhão que fica o caso mais emblemático e que está sendo ainda investigado após uma reportagem feita pela revista piauí. "O município de Pedreira tem 39 mil habitantes e, para justificar as emendas recebidas pelo relator, informou ter realizado mais de 540 mil extrações dentárias. Significa ter tirado 14 dentes de cada habitante, incluindo os recém-nascidos, que não tem dente”, disse a senadora Simone Tebet (MDB-MS), durante a campanha eleitoral, em entrevista ao podcast Flow. A reportagem da piauí mostrou ainda que outro município do interior do Maranhão informou ter realizado mais testes de HIV/aids do que toda a cidade de São Paulo, com 12 milhões de habitantes.

Apesar dos escândalos, Fernandes acredita que não haverá por parte do STF uma proibição do mecanismo. “A tendência que estamos projetando é que o orçamento secreto não deve ser declarado totalmente inconstitucional. Deve haver algum tipo de determinação do Judiciário com o objetivo de trazer mais transparência e algum grau de isonomia”, aposta.

Agora, cabe a Lula tentar retomar o controle do orçamento. Fernandes identifica que Lula sinaliza para um caminho diferente daquele de crítica mais incisiva, adotado na campanha, para não melindrar a relação com Lira — afinal, depende dele para aprovar a PEC da Transição. A condenação do orçamento secreto desapareceu do discurso do petista desde a vitória nas urnas. Em vez de atacar o “orçamento de Lira”, Lula tratou de ter o seu próprio orçamento. “Lula tem duas maneiras de retomar esse controle orçamentário. Uma delas seria acabar com as emendas do relator, neste volume, pelo menos. A outra é ampliar o gasto federal como um todo, mantendo as emendas de relator. Parece que é isso que ele está fazendo. Ao propor uma PEC para retirar o Bolsa Família do teto de gastos, Lula tem mais de R$ 100 bilhões para gastar e mobilizar sua base. Me parece que é esse o jogo”, diz Fernandes.

De seu lado, Lira, pelo menos por hora, silenciou sua defesa do semipresidencialismo, pauta que levantou durante seu mandato e que retira atribuições do presidente da República, transferindo competências para o Congresso Nacional. Há cerca de dois meses, o presidente da Câmara também não toca no assunto do “orçamento municipalista”, nome que tentou emplacar para o orçamento secreto, logo após o resultado do primeiro turno.

Lira, o opaco

Da mesma forma que prefere a conversa de bastidor com parlamentares, Lira nunca gostou de sair da reunião de líderes na Câmara e se deparar com um batalhão de jornalistas perguntando o que foi discutido no encontro. Aliás, sua relação com a imprensa demonstra um jeitão meio armado, pronto para contra-atacar.

No ano passado, depois de uma das suas raras derrotas no plenário da Câmara, Lira não se conteve diante de uma pergunta sobre o que havia ocorrido na negociação da proposta que mudava a composição do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), pauta que teve seu empenho pessoal para ser aprovada. “Me faça uma pergunta séria que eu respondo. Essa é deboche”, disse ao jornalista. Só depois desse contratempo, ele respirou e conseguiu dar uma resposta mais condizente a respeito das decisões dos parlamentares. “O plenário vota, nós temos que obedecer o resultado em relação a isso. Não penso em vitória e nem em derrota.”

Mas essa relação mais arredia com a imprensa se desenhou logo no início de seu mandato, quando ele desalojou o comitê de imprensa do espaço que tinha acesso direto ao plenário — e fez dele o seu gabinete. A mudança serviu ainda para evitar que Lira tivesse que atravessar todo Salão Verde, desde o antigo gabinete, até a entrada do Plenário e nesse percurso, ser acompanhado pelos repórteres.

Ao final do ano de 2021, porém, essa postura arredia se arrefeceu sob o aconselhamento de assessores que o orientaram a quebrar o gelo. Lira recebeu jornalistas na Residência Oficial para um almoço de confraternização. Bateu papo, respondeu perguntas, mostrou obras de arte nas paredes da casa. Neste ano, ainda não houve o convite, mas assessores acreditam que ele acontecerá. Afinal, o todo-poderoso está em campanha.

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