segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Ambivalências do envelhecimento, Pondé, FSP

Se sua vida foi um fracasso, ao envelhecer este fracasso se torna mais evidente

O envelhecimento é um dos horizontes através do quais pensaremos o futuro. Nosso destino e nosso grande inimigo. Aqui já se impõe uma das suas ambivalências estruturais. 
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, morto em 2017, descreveu a modernidade como ambivalente (antes do seu conceito blockbuster de “modernidade líquida”). 
A modernidade é ambivalente porque ela cria soluções que geram problemas, numa derivação evidente do processo dialético, sem integração final das ambivalências.
Pois bem. Sobre o envelhecimento cai o típico véu da mentira contemporânea como método: mente-se porque o envelhecimento é uma ferida narcísica (Freud) que atinge em cheio a econômica da nossa autoestima.
Mente-se para produzir autoestima, um protocolo comum em nossos dias, na educação, na política, nas redes sociais, no coaching, no mundo corporativo, na filosofia, enfim, na teologia. 
Aqui vai outra ambivalência do envelhecimento: quanto mais mentimos, mais nos afastamos do entendimento que pode nos ajudar a enfrentar esse horizonte inexorável. 
Mais longevidade, mais solidão, mais lazer, mais depressão, mais possibilidade de (re)fazer escolhas, mais sexo, mais gastos, mais férias, mais exames médicos, mais paranoia.
Esse processo é descrito pelo filósofo francês em atividade Pascal Bruckner, no seu recente “Une Brève Éternité: Philosophie de la Longevité” (“Uma breve eternidade: filosofia da longevidade”, em tradução livre), editora Grasset, Paris, como esquizofrenia do envelhecimento. 
Ilustração da coluna do Pondé do dia 30.set.2019
Ilustração da coluna do Pondé do dia 30.set.2019 - Ricardo Cammarota/Folhapress
Composto por agentes de difícil integração, o envelhecimento nos lança em experiências dilacerantes, apesar de ser melhor do que morrer cedo. E pra piorar, alguns (poucos) entre nós parecem envelhecer melhor do que outros, expondo a “desigualdade” até nesse campo.
Evidente que um dos marcos do bem envelhecer é a grana. Quanto mais pobre, mais a mercê da genética. Elemento de sorte que compõe a química do futuro de cada um de nós. 
Quanto mais grana, mais possibilidade de sucesso no controle do envelhecimento em todos os níveis: saúde, férias, melhor condições de trabalho, mais usufruto dos avanços técnicos, mais beleza pós-juventude, enfim, a longevidade em si é um produto como a última geração de iPhones.
Homens e mulheres envelhecem de modo diferente. O Viagra libertou, em grande parte, o homem do envelhecimento sem sexo. Como já disse várias vezes, o Viagra fez mais pela humanidade do que 200 anos de marxismo.
Por outro lado, a mulher sofre mais do que o homem nas mãos do imperativo da vaidade e da beleza. Algumas mulheres fazem intervenções a ponto de ficarem parecendo bonecas infláveis fora do prazo de validade. 
Homens que pintam o cabelo, portanto, fingem uma idade que não tem, são ridículos, logo, homens de cabelo branco têm valor no mercado dos afetos e do sexo. 
Ledo engano daqueles que tiraram rápido a conclusão de que o parágrafo acima seja um panfleto contra as mulheres. Pensar de forma panfletaria e militante é uma das chatices de nossa época. 
Não, mulheres envelhecem melhor do que homens em grande medida. 
Cultivam melhor as amizades, se interessam mais umas pelas outras (mesmo que com uma pitada de gosto por falar mal das “amigas”), têm mais vínculos com os filhos (isso tende a mudar porque os filhos estão em rápida extinção), têm interesses múltiplos, recomeçam a vida com mais facilidade, grande parte ainda tem a “vantagem secundária” de terem tido mais tempo sem ter que pensar só em grana e, portanto, de desenvolver mais interesses múltiplos. 
A emancipação feminina tende a eliminar essas “vantagens secundárias”. Mulheres gostam de conhecer mais coisas mais do que homens gostam. São mais curiosas e interessadas por uma gama gigantesca de novidades. Homens, na maioria dos casos, só pensam em duas coisas: mulher e trabalho. 
Talvez um dos maiores marcadores do envelhecimento seja a noção de legado, tão em moda nos espaços mimimi por aí. O fato é que a juventude detém o futuro como trunfo. O idoso detém o passado, e este é “verificável cientificamente”. 
Se sua vida foi um fracasso, ao envelhecer este fracasso se torna mais evidente do que nunca.
 
Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filo

A crise da Lava Jato, Celso Rocha de Barros. FSP

Já está claro que Bolsonaro não tem o mais remoto interesse em brigar pela operação

A semana passada foi muito ruim para a Lava Jato, começando com a derrota, de efeitos práticos incertos, no STF (Supremo Tribunal Federal), passando por novas denúncias da Vaza Jato e culminando no episódio grotesco em que o ex-procurador-geral da República, Rodrigo Janot, declarou que quase matou Gilmar Mendes a tiros. O ex-senador tucano Aloysio Nunes declarou que a operação manipulou o Supremo durante o processo de impeachment. Enquanto escrevo, ouço que a força-tarefa da Lava Jato lançou a campanha "Lula mais ou menos livre", e pediu sua mudança para o regime semiaberto. Especula-se que seja uma estratégia para evitar a anulação da sentença contra o ex-presidente. 
O presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Justiça, Sergio Moro, em cerimônia - Pedro Ladeira/Folhapress
Se tudo isso tivesse acontecido em 2015, o país estaria em convulsão. O auge do lavajatismo passou quando Dilma caiu, mas houve um novo surto de entusiasmo com a eleição de Bolsonaro e a nomeação de Moro para o Ministério da Justiça.
Vou morrer sem entender por que, em algum momento, o Brasil achou que Jair Bolsonaro estava preocupado em combater a corrupção. O atual presidente da República sempre foi um político do baixo clero, nunca teve qualquer participação nas investigações de corrupção no Congresso (alguém se lembra dele se destacando em qualquer CPI?), foi um dos articuladores da campanha de Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara e apoiava Picciani no Rio de Janeiro. Em algum ponto de nossa loucura recente, achamos que esse sujeito era o Batman. 
A esta altura, já está claro que Bolsonaro não tem o mais remoto interesse em brigar pela Lava Jato. Sua família é envolvida no esquema Queiroz, ele mesmo talvez também seja, e Moro seria um adversário forte na eleição de 2022.
Mas o aparelhamento bolsonarista dos órgãos de controle não é o que de mais grave faz o presidente da República contra o combate à corrupção no Brasil. O xeque-mate contra a operação foi a captura das manifestações de rua pelo autoritarismo bolsonarista. Muita gente que gostaria de protestar contra a decisão do STF não quer ir em uma passeata com os caras que defendem o fechamento do tribunal e a implantação de uma ditadura de extrema direita.
E a esta altura não é mais possível duvidar de que é isso que o bolsonarismo quer. Quando Janot declarou que pensara em matar Gilmar Mendes, a deputada bolsonarista Carla Zambelli (PSL-SP) postou que entendia as razões de Janot. Apagou o post depois, mas a mensagem já circulava: no submundo do crime virtual bolsonarista, as insinuações de que Janot deveria ter matado Gilmar correram soltas.
Nesse quadro, a relação de forças na briga entre lavajatismo e sistema político virou. Ficou difícil convocar manifestações, e a imprensa tem bem menos entusiasmo pela coisa toda desde que Moro passou a fingir que não vê a guerra bolsonarista contra a imprensa livre.
Resta torcer para que os políticos sejam melhores, bom, políticos que os membros da força-tarefa. Se aproveitarem o momento para enterrar de vez o combate à corrupção no Brasil, cometerão um erro grave que pode ter consequências fatais na próxima vez que a relação de forças virar (sempre vira). Se forem inteligentes, vão começar a discutir um legado para a Lava Jato que inclua menos condenações espetaculares e mais leis que combatam a corrupção no longo prazo. 
Celso Rocha de Barros
Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).