"Arrabalde", livro que o documentarista João Moreira Salles lança nesta segunda-feira (12) pela Companhia das Letras, nasceu de duas constatações do autor. Uma, de que estava de costas para a Amazônia, como a maior parte do país. A outra, do estado de abandono, desprezo e criminalidade a que a região foi relegada pelo governo de Jair Bolsonaro (PL) –e pelos militares de seu entorno.
"Os militares sempre tiveram a obsessão da soberania. A grande ironia é que nesses quatro anos o Estado brasileiro perdeu a soberania da Amazônia", disse Salles em entrevista à Folha, por vídeo, na manhã de sexta (9).
Para ele, "a gente ia virar uma autocracia dinástica" em caso de reeleição de Bolsonaro, derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 30 de outubro.
O livro é resultado de um período de seis meses em que o documentarista morou no Pará. Salles constatou que as cidades amazônicas também estão de costas para a floresta, e que soluções de renda para os moradores da região devem passar por essas cidades.
O diretor de "Entreatos", "Santiago" e "No Intenso Agora" pertence a uma das famílias mais ricas do Brasil. É fundador da revista piauí, onde publicou os artigos que deram origem ao livro. Ele e o irmão Walter Salles, também cineasta –diretor de "Central do Brasil"–, deixaram o quadro de acionistas do Itaú Unibanco em fevereiro deste ano. A participação foi transferida a outros irmãos acionistas.
"Quis ter mais liberdade de poder atuar politicamente", afirmou.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
No livro, o senhor diz que, antes dessa incursão pelo Pará, não havia estado na Amazônia nem por quatro dias. Já fez reflexão sobre o porquê? O livro foi escrito para responder a essa pergunta. O patrimônio mais importante que o Brasil tem era desconhecido para mim. O Brasil está de costas para a Amazônia. A Amazônia é um arrabalde do Brasil. A gente a trata como periferia do país. Como diz o Luiz Braga, um baita fotógrafo de Belém, a Amazônia é resto para o Brasil.
A ironia dessa história é que o resto se tornou o centro. Para o concerto geral das nações, o Brasil é um país quase irrelevante, salvo pela Amazônia hoje em dia. Isso ficou claro para mim ao longo dos anos e particularmente depois da eleição do Bolsonaro. Ao cabo dos seis primeiros meses do governo, ficou claro que a Amazônia estava abandonada, entregue ao crime.
O Estado simplesmente abdicou da sua responsabilidade em relação à Amazônia. Eu tive muita vontade de ir para lá para saber o que estava acontecendo.
O senhor descreve como as pessoas de fora não se adaptam à floresta, mas tentam fazer com que a floresta se adapte a elas... A floresta não se adapta. A complexidade de vida, a desordem e a anarquia de uma floresta acabam substituídas pela ordem da lavoura, do pasto.
O livro se dedica à história de formação de cidades do Pará e seus personagens. Por quê? A Amazônia é essencialmente urbana. As pessoas estão nas cidades, que têm muito pouca conexão com a floresta. Os empregos precisam ser gerados nas cidades, e não se pensa nas cidades amazônicas como uma solução para a floresta. A gente conhece as mazelas das cidades brasileiras, e na Amazônia é ainda pior.
"Arrabalde" foi concluído em setembro, momento em que Bolsonaro tinha chances de ser reeleito. O senhor diz que "o ciclo de destruição em curso pode ser revertido". Como isso seria possível se o presidente ganhasse novo mandato? Talvez eu não quisesse ali pensar na alternativa trágica de uma reeleição. Se ele se reelegesse, a gente teria duas agendas.
A primeira seria o fortalecimento da sociedade civil brasileira, que na Amazônia é robusta. E haveria uma agenda fora, que seria uma conversa com a Europa, os americanos, para que começassem a punir o Brasil pelo que faz na Amazônia. É um lobby desagradável, mas essencial. Graças a Deus, não será mais necessário.
A gente tem finalmente um desafio à altura de uma grande nação. Se a gente reelegesse Bolsonaro, seria julgado por isso, por entrar para o lado errado da história, iria se perfilar a países que em determinados momentos fizeram escolhas trágicas. A eleição do Lula é a nossa chance de estar à altura dessa responsabilidade que nos foi dada.
Da agenda de Bolsonaro, o que foi pior para a Amazônia? E por que ele chegou tão forte na disputa, com apoio maciço do meio empresarial? Sobre o pior, depende para quem você pergunta. Se perguntar aos indígenas, foi a invasão das suas terras, a morte de seus defensores, a desvalorização de tudo que eles são.
Passei o mês de outubro em Rondônia. Estava com uma líder indígena no dia do primeiro turno, e o resultado foi muito assustador. Em determinado momento, ela começou a falar para o companheiro dela: "As pessoas não entendem o que significa você viver num lugar em que ninguém te quer".
É mais que o desprezo, é a negação antológica deles. O garimpo ilegal e a ocupação das terras públicas brasileiras configuram uma coisa curiosa, se levarmos em conta que esse governo é muito ligado ao pensamento militar. Os militares sempre tiveram a obsessão da soberania. A grande ironia é que nesses quatro anos o Estado brasileiro perdeu a soberania da Amazônia.
É na Amazônia que facções disputam poder. As armas e ferramentas do garimpo não são mais dragas que roem as margens do rio. É isso, mais [fuzil] AR-15. Você não entra mais.
Isso fica claro em cidades amazônicas, inclusive com cooptação de indígenas por facções. É isso que eu chamo de perda de soberania. Uma pessoa me perguntou: "Você se pôs em alguma situação de risco?". Eu disse que não, que quem se arrisca são ativistas, religiosos em Anapu [no Pará].
Você chega em cidades como Itaituba e Novo Progresso e sente claramente que não deve ficar ali mais do que 48 horas.
São muito frequentes ameaças de mortes a lideranças indígenas nas próprias comunidades... É perda de soberania, insisto muito nisso. É uma palavra que os militares usam o tempo todo para justificar os descalabros na Amazônia.
Pois bem, amigos, vocês queriam preservar a soberania da Amazônia. Perderam. Hoje a soberania é do crime.
Lula vai ter muito mais dificuldade de fazer hoje o que a equipe da Marina [Silva] fez [nos anos 2000]. A Amazônia virou um território de anarquia criminal.
O senhor passou um mês em Rondônia para um documentário? Sim, estou fazendo um documentário sobre a Txai Suruí [coordenadora da Juventude Indígena de Rondônia e colunista da Folha].
Como enxerga a possibilidade de documentários na Amazônia, em razão das dificuldades extras para, por exemplo, conviver com os personagens? Não só documentários, as pessoas precisam fazer música sobre a Amazônia, pintar a Amazônia, fazer poema, peças de teatro, livros. Claro que muito disso já existe. Mas a floresta não impregnou a nossa imaginação, não faz parte do nosso patrimônio simbólico. E falo de nós brasileiros que não moramos lá.
Parte do poder econômico brasileiro se comporta como oligarquia. Fomos salvos por quem ganha menos de dois salários mínimos. Essas pessoas são aquelas que precisavam desesperadamente do Auxílio Brasil. Receberam o dinheiro e não se deixaram corromper, ao contrário do andar de cima, da oligarquia, que em troca de seus próprios privilégios se deixou vender e votou no Bolsonaro.
O senhor dirigiu "Entreatos", sobre os bastidores da campanha de Lula em 2002. Que paralelos faz entre as campanhas de 2002 e 2022? A campanha de 2002 consolidava a democracia brasileira. Vínhamos de um período de democracia plena, com Fernando Henrique Cardoso, um democrata. Ele, um sociólogo, passava a faixa para o líder operário, mostrando que a transição de poder era possível.
Ali tive a sensação que a nossa democracia estava garantida. Estava enganado.
A eleição de 2022 salvou a democracia. Vamos ver, por enquanto parece que salvou. Então é muito diferente. Uma consolidava, a outra salvava.
Não tenho a menor dúvida de que se Bolsonaro se reelegesse a gente estaria no rumo de uma Turquia ou até de uma Rússia. Ele ia mexer no Supremo, centralizar o poder, ele e a grei dele, os filhos e tal. A gente ia virar uma autocracia dinástica.
Bolsonaro é pior que o regime militar. Ele é uma volta à Idade Média. É por isso que quis fazer esse filme. De novo um processo eleitoral, o mesmo candidato, numa situação muito diferente, num Brasil muito degradado.
A decisão de deixar o quadro de acionistas do Itaú tem relação com esses projetos na Amazônia? E o que diz sobre a fixação de Bolsonaro pelo nióbio na Amazônia, explorado pela CBMM [da família Moreira Salles] em Minas Gerais? Sobre nióbio, é mais uma obsessão do pensamento mágico de Bolsonaro. Cloroquina, nióbio, grafeno, tudo é muito superficial, atravessado por ideias mágicas, como se um único metal pudesse solucionar os problemas de um país. Eu não levaria muito a sério isso, é mais um sintoma da pobreza intelectual desse sujeito.
Em relação ao banco, nunca tive nenhuma relação formal, profissional. É estranho a mim. Não fazia muito sentido eu permanecer lá.
A Amazônia é um dos campos onde quero atuar. Não está no meu horizonte entrar na vida política partidária, mas apoiar gente que está, como [deputado Alessandro] Molon, [deputado Marcelo] Freixo e tantos outros. Fico amarrado sendo acionista do banco.
Quis ter mais liberdade de poder atuar politicamente sem precisar prestar conta. Meus irmãos e os outros acionistas do banco entenderam isso.
RAIO-X
João Moreira Salles, 60
É documentarista e produtor de cinema. Foi fundador da revista piauí. Entre os documentários que dirigiu estão "Nelson Freire" (2003), "Entreatos" (2004), "Santiago" (2006) e "No Intenso Agora" (2017).
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