sexta-feira, 26 de abril de 2024

Ruy Castro - Viva o Brasil, FSP (definitivo)

 Em entrevista a O Estado de S. Paulo, o jurista Miguel Reale Jr. disse que o Brasil tem 1.240 faculdades de direito —"mais do que a soma de todos os cursos de direito do mundo". De queixo caído, fiz meus cálculos. Se cada uma dessas faculdades formar 50 advogados por ano, teremos 62.200 novos advogados anualmente no mercado. Some-os aos já existentes e, por mais que os nossos cidadãos se agridam, estuprem e matem alegremente uns aos outros, e não falte a quem acusar ou defender, a maioria dos advogados deve ter muito tempo livre.

Segundo o IBGE, o Brasil tem 5.570 municípios, muitos dos quais só existem como municípios para sustentar um prefeito e os vereadores. Pois nada impede que alguns desses municípios tenham uma faculdade de direito. Quantos de seus advogados aprenderão latim para dizer "causa mortis", "mutatis mutandis" e, quem sabe, "quosque tandem, Catilina, abutere patientia nostra?".

O Brasil deve ser também o país com mais farmácias do mundo —média de três ou quatro por quarteirão nas grandes cidades—, embora isso não nos torne um país saudável. Da mesma forma, nenhum país tem mais bancos, supermercados, shoppings, McDonalds e lojas de colchões. Nenhum consome mais alimentos ultraprocessados, porcarias pré-prontas, refrigerantes diet, biscoitos industrializados e batata frita.

Nenhum país faz mais cirurgias plásticas, bariátricas e íntimas. Nenhum nos supera em toneladas de peitos e bundas inflados. E em nenhum se faz tanta dieta —a quantidade de quilos perdidos anualmente pela população bate na casa dos bilhões. Mas, nesse caso, nada se perde porque, em pouco tempo, eles voltam, um por um. Nenhuma criança passa mais horas por dia olhando para o celular do que as nossas.

Em compensação, poucos países têm menos bibliotecas, livrarias, teatros, salas de concerto, museus, galerias e escolas de dança do que o Brasil. Viva o Brasil.

O dia e a noite de 31 de março de 1964 na Faculdade de Filosofia Por José de Souza Martins, Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 Passei a noite e a madrugada de 31 de março para 1º de abril de 1964 num quartinho em que morava como caseiro numa casa alugada pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras na Rua Piauí. Ali funcionava um centro de pesquisas anexo à Cadeira de Sociologia I, de que era catedrático o professor Florestan Fernandes. Fernando Henrique Cardoso, que era meu professor, me perguntara se queria morar ali e tomar conta do lugar. Assim, eu pouparia as quatro horas diárias da viagem de ida e volta entre São Caetano, onde morava, e a faculdade na Rua Maria Antônia. Poderia empregar esse tempo na biblioteca e aumentar minhas horas de leitura.

O comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, e o vigoroso discurso de Jango em favor das reformas de base, na noite de 13 de março, despertavam nos ingênuos como eu, que eram muitos, um certo otimismo quanto aos rumos políticos do País. Mas o rosto apreensivo da bela e jovem Maria Teresa Goulart, à meia-luz, no palanque, ao lado do marido, sugeria que o cenário não era o de uma vitória.

As tensões cresceram a partir do dia 19 de março. Naquele dia realizara-se a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Fomos em pequeno grupo de alunos para o centro da cidade presenciar e avaliar a marcha, na proximidade do Theatro Municipal e do Viaduto do Chá. À frente da multidão vinha Dona Leonor Mendes de Barros, mulher do governador Adhemar de Barros, conhecida por seu empenho em causas caritativas em favor dos tuberculosos de Campos do Jordão.

Voltei para meu quarto com muito medo, o meu primeiro medo político, que se estenderia pelos próximos anos. Já auxiliar de ensino, eu seria preso e fichado pelo Dops junto com Roberto Schwartz em 1966, na porta do Teatro de Arena.

Na tarde do próprio dia 31 de março de 1964 tinha havido uma reunião de alguns professores para avaliar o andamento da situação. Foi na sala 3, que ficava à direita de quem entrava no saguão. O tom dominante era de que quem estava planejando o golpe era João Goulart. O golpe não era contra ele, mas dele. Imitava Getúlio.

Alguém trouxe a notícia de que tropas do Exército, comandadas pelo general Olímpio Mourão, antigo integralista, se deslocavam de Minas em direção ao Rio de Janeiro. Fora ele autor de um falso plano comunista para tomada do poder, que justificaria o golpe de 1937 e a implantação do Estado Novo e da ditadura de Vargas.

Fiquei no meu cubículo ouvindo o rádio, à noite. A partir de certo momento, começou uma transmissão diretamente do Palácio dos Campos Elísios. O golpe progredia. Os presentes davam entrevistas ao locutor empolgado. Em certo momento, chegou o professor Luís Antonio da Gama e Silva, reitor da USP. Não se sabia ainda, mas ele fora o organizador do CCC, o Comando de Caça aos Comunistas, cujos membros circulavam pelo Dops e vários se tornariam torturadores. Aquele gesto de bajulação aos militares lhe daria o Ministério da Justiça da ditadura, no governo Costa e Silva. Ele prepararia o texto do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, e assinaria os atos de cassação de professores da USP, numerosos deles da Faculdade de Filosofia, no início de 1969.

Desde o ataque de mackenzistas, policiais do Dops e militares do Exército ao prédio da Maria Antônia, em 1968, supostamente contra os estudantes, na verdade contra a Faculdade de Filosofia, ficava claro que o objetivo era destruir a escola e remover-lhe os restos para a Cidade Universitária, para afastá-la do centro da cidade.

Maria Isaura Pereira de Queiroz percebeu que se tratava de nossa deportação e exílio, quando disse com fina ironia: “Não sei se vou me acostumar lá. Minha família é tão urbana!”.

Continuei a ouvir o rádio ao longo da noite. Pouco depois o locutor anunciava a chegada do general Amauri Kruel, comandante do 2º Exército, de São Paulo. Sua traição a Jango e ao País selava o destino do Brasil.

Entre os quatro generais que se recusaram a aderir ao golpe, estava o general Euryale de Jesus Zerbini. Foi preso e cassado. Sua esposa, Terezinha Zerbini, que lideraria a campanha pela anistia, foi presa.

Lembro do general Zerbini, velhinho, de cabelos brancos, no prédio atual de Ciências Sociais e Filosofia, na Cidade Universitária, com cadernos e livros nas mãos, à espera do início das aulas da tarde, de Filosofia, de cujo curso se tornara aluno. Sentava-se numa das carteiras originárias do prédio da Maria Antônia e da fundação da USP. Estão hoje no segundo pavimento do Prédio de Filosofia e Ciências Sociais.

Numa delas, vi pela última vez, em 1964, e com ela conversei, Eleni Guariba, aluna de Filosofia e animadora do Teatro Operário na região do ABC. Foi presa, torturada e assassinada na “casa de morte”, em Petrópolis, segundo a única presa que de lá escapou com vida, Inês Etienne, em depoimento à Comissão da Verdade.

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quinta-feira, 25 de abril de 2024

Hipótese de vingança na revisão da Lava Jato assusta juízes, FSP

 O pedido de afastamento dos juízes federais Gabriela Hardt e Danilo Pereira Lima e dos desembargadores Thompson Flores e Loraci Flores de Lima, magistrados que atuaram na Lava Jato, gerou manifestações de juízes da área criminal que temem ser punidos no futuro por suas convicções como julgadores.

Na semana passada, o corregedor nacional de Justiça, Luis Felipe Salomão, tentou anular, em sessão do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) uma reclamação disciplinar oferecida pelo PT em 2019. O julgamento tinha oito votos pelo arquivamento.

"Eu considero que a represália deste Conselho a uma decisão jurisdicional porque os ventos mudaram é um fator que vai contaminar negativamente toda a magistratura", alertou o presidente CNJ, ministro Luís Roberto Barroso.

"O juiz vai ficar com medo de, se mudar o governo, ser responsabilizado pela convicção que tinha naquele momento", disse Barroso. Ele leu notas de associações de magistrados manifestando "indignação pelo afastamento primário, prematuro e desnecessário de quatro juízes cuja reputação é ilibada".

Sessão do Conselho Nacional de Justiça em 16/04/2024 - Luiz Silveira/Agência CNJ

Durante a sessão, o subprocurador-geral José Adonis Callou de Sá disse que não via motivação suficiente para o afastamento cautelar dos juízes e desembargadores.

"Tenho muito receio das consequências entre juízes e membros do Ministério Público que atuam nas varas de combate à lavagem de dinheiro", afirmou.

Em 2019, Sá deixou a coordenação do grupo que auxiliava o PGR Augusto Aras nos desdobramentos da Lava Jato no Supremo. Agora, teme-se que ocorra no Judiciário o que aconteceu no Ministério Público, o esvaziamento das equipes quando Aras desmontou as forças-tarefas.

O açodamento do corregedor gerou várias interpretações.

A divulgação do afastamento dos magistrados um dia antes da sessão teria sido uma estratégia para forçar Barroso a colocar o assunto em análise; Salomão estaria afinado com interesses de ministros do STF antilavajatistas, como Gilmar Mendes; o corregedor pretenderia agradar Lula, de olho numa vaga no Supremo;

As graves imputações a um colegiado seriam uma tentativa de enterrar o argumento de que o então juiz Sergio Moro não condenou Lula sozinho, pois teve suas decisões confirmadas no TRF-4.

ANTIGAS CONTROVÉRSIAS

Membros do TRF-4 e ministros do STF tentaram conter o então juiz Sergio Moro no início da Lava Jato.

Decisões controvertidas de Gilmar Mendes, que reviu votos proferidos, foram usadas por advogados do PT, em benefício de Lula, sem maiores esclarecimentos em plenário.

O CNJ manteve sem julgamento, por mais de dois anos, recursos que poderiam ter levado ao afastamento de Sergio Moro dos processos da Operação Lava Jato, na época em que ele era juiz.

Os fatos tratados na investigação atual alcançariam processos que envolviam advogados parentes de ministros do STF e do STJ, como o caso da Fecomércio.

Os desdobramentos serão conhecidos quando Barroso trouxer o voto-vista, dia 21 de maio. O presidente propôs "a conclusão do julgamento e a abertura de processo disciplinar na hipótese de se encontrar alguma infração na correição extraordinária."

Operadores de direito que acompanharam a última sessão do CNJ não viram provas novas. Supõem que se o corregedor tivesse algum fato novo, de impacto, já teria divulgado.

"Em nenhum momento utilizamos informações da Operação Spoofing" [deflagrada pela Polícia Federal para investigar intercepção de mensagens de autoridades], disse Salomão.

"Fizemos uma correição extraordinária a partir de mais de 30 reclamações. Foi uma correição isenta, de forma profunda", disse o corregedor. "Nós ouvimos depoimentos de várias testemunhas."

Experientes investigadores levantam a hipótese de que o grupo que esteve em Curitiba precisaria de especialistas que dominam as técnicas de rastreamento, e de mais tempo para extrair informações sistematizadas.

Fatos e números citados na sessão do CNJ estão no livro "Vaza Jato", de Letícia Duarte e The Intercept Brasil (págs. 238/241).

Sem citar nomes, Barroso diz que houve "uma evidente manipulação do Conselho e da jurisdição para impedir a conclusão do julgamento".

Em outubro de 2021, houve o arquivamento da reclamação, por oito votos a zero. Um ano e meio depois, o então conselheiro Mário Henrique Goulart Maia deixou o colegiado sem apresentar seu voto. O processo ficou paralisado.

Mário Henrique é filho do ministro aposentado do STJ Napoleão Nunes Maia, próximo de Renan Calheiros, Humberto Martins e César Asfor Rocha. O deputado Arthur Lira, presidente da Câmara Federal, apoiou a indicação do inexperiente advogado ao CNJ.

Faltou fundamentação em votos de conselheiros que apoiaram o afastamento dos magistrados da Lava Jato.

"Eu não acho que a manipulação de prazos para conseguir voto ou para mudar alguma coisa seja legítima. Eu não faço isso. Na vida, a gente deve viver o que prega", disse Barroso.

Salomão correu para garantir os votos dos dois conselheiros indicados pela OAB, Vinícius Jardim e Marcello Terto, cujos mandatos terminaram na semana passada.

Ao votar, Jardim disse que a corregedoria é "o órgão mais estruturado do CNJ, no aparato tecnológico, recursos humanos, orçamentários", para que "exerça suas funções sem que os demais conselheiros tenham que reprisar, refazer e revisar todos os atos".

Ainda segundo ele, a corregedoria "nos traz, no caso, presunção de veracidade".

"Me sinto muito à vontade. Eu não lerei as mais de mil folhas porque a corregedoria tem essa função", disse. "Nós temos que confiar no órgão", Terto afirmou duas vezes. "Não estamos prejulgando". Ambos acompanharam integralmente o voto de Salomão.

A conselheira Daniela Madeira, juíza do TRF-2, leu o voto a favor do afastamento dos magistrados. Ela foi juíza auxiliar de Salomão na corregedoria. É casada com o juiz aposentado do TRF-2 Marcus Lívio, sócio do escritório Salomão Advogados desde 2023.

O conselheiro Luiz Fernando Bandeira, que acompanhou integralmente o voto do corregedor, foi membro do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público). Foi o relator de processo disciplinar contra o procurador Deltan Dallagnol. Aliado do senador Renan Calheiros, Bandeira foi secretário-geral da Mesa do Senado.

Antes de proclamar o resultado da sessão, e prometer que traria o voto-vista em maio, Barroso afirmou:

"Se a maioria entender que deve anular o julgamento, anula o julgamento. Paciência, vou lamentar, mas faz parte da vida num colegiado. Mas eu repito que eu acho que é errado o que estará acontecendo."

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