quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Os riscos de um governo puro-sangue, Pedro Doria, Meio

 meio_separador

Por Pedro Doria

O desafio que se apresenta perante o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, não é novo para ele: montar um ministério e, a partir daí, dar uma diretriz para seu governo. Ainda assim, este é também um desafio ao qual, quando apresentado a ele pela primeira vez, Lula errou muito. E, ao errar, abriu espaço para o Mensalão. Não bastasse, o problema que ele tinha de resolver em 2002 era muito menos complexo do que o que encontra em 2022.

Em seu governo, Fernando Henrique Cardoso distribuiu os postos mais importantes do ministério entre um número pequeno porém coeso de partidos ancorado principalmente, além de seu PSDB, no PFL e no PMDB. FHC tinha algumas vantagens. A primeira, que o número de partidos com grandes bancadas no Congresso era relativamente pequeno. E, a segunda, que a Mesa Diretora da Câmara atuava em parceria com os líderes partidários. Desta forma, as legendas conseguiam com bastante frequência fidelidade de seus membros. Dar ministérios é compartilhar poder, é dar espaço de decisão na formação de políticas públicas. É, também, compartilhar os trunfos dos acertos do governo, que beneficiam eleitoralmente. Mas há um retorno: uma bancada grande o suficiente, nas duas casas do parlamento, que permitam aprovação daquilo que interessa ao Executivo.

Ao ser eleito, Lula escolheu seguir um caminho distinto. As principais pastas de seu primeiro governo, aquelas com grandes verbas e muito poder de ação política, foram para petistas ou siglas irmãs. Não representavam, no Congresso, uma grande bancada. Talvez Lula tenha se sentido endividado com as diversas facções do PT. Talvez considerasse que precisava de um governo puro-sangue de esquerda para fazer o que desejava. Ocorre que presidentes precisam de base no Congresso para aprovar seus projetos. Ao escolher não compartilhar poder com as grandes siglas, restou ao governo um único jeito de atrair votos na Câmara e no Senado. O suborno. O Mensalão. No fim, talvez Lula acreditasse mesmo era naquela sua frase que Herbert Vianna registrou para a posteridade: na Câmara “são trezentos picaretas com anel de doutor”.

Se for isso, Lula não acreditava numa solução política. Via aqueles parlamentares apenas como gente subornável.

A decisão custou caro: seu primeiro grande escândalo de corrupção que, inevitavelmente, estava conectado ao escândalo seguinte — o do Petrolão. Ao formar um ministério petista puro-sangue, ao escolher não compartilhar poder, Lula criou uma armadilha para si próprio, um moto-contínuo que desembocaria numa mancha indelével da imagem do PT e uma gigantesca crise política no país.

Esta lição Lula por certo aprendeu. Desde o Mensalão que o PMDB, hoje MDB, está ao seu lado. A equação que precisa ser atendida para montar um ministério é que complicou.

Um dos problemas é a deterioração dos ritos na Câmara dos Deputados. De Severino Cavalcanti a Eduardo Cunha a Arthur Lira, a maneira como a Câmara é gerida destruiu por completo a capacidade dos líderes de partidos terem o controle sobre suas bancadas.

Hoje, quem tem poder sobre o que cada deputado recebe é o comando da casa. É Lira. Não bastasse, mesmo tendo melhorado por conta das mudanças na legislação eleitoral, o número de partidos ainda é bastante maior do que nos tempos de FH. Some-se a isto o fato de que há uma direita radicalizada no Congresso, com incentivos para não pactuar com o governo Lula enquanto posa para as redes sociais.

Distribuir poder para conseguir apoio segue importante, segue fundamental, mas não basta. Negociação direta com Arthur Lira, que não está nem aí para políticas públicas, é inevitável. Lira é uma versão fria de Eduardo Cunha. Cunha reagia com o fígado na disputa política. Lira não faz isso, mas não tem pudores de usar seu poder. Foi assim que costurou o Orçamento Secreto.

Desta forma, perante uma Câmara dos Deputados que pode se tornar chantagista, Lula precisa construir outra rede de apoio — uma na sociedade. E não lhe basta aquela que o PT já tem, como sindicatos, movimentos sociais ou setores progressistas da academia. O presidente eleito precisa trazer a sociedade civil organizada. Think tanks e ONGs que não são necessariamente de esquerda mas têm muita influência em seus setores, como Todos pela Educação, Instituto Igarapé ou Imazon. Organizações como Fiesp, Febraban e outras entidades empresariais de peso. Até a grande imprensa.

Não quer dizer que estes grupos precisem estar aplaudindo o governo Lula todo o tempo. Quer dizer que precisam estar convencidas de que o governo ouve, que o governo tem espaço para diversidade de opiniões, que o governo também as representa. Se um dia houver uma crise política ou econômica ou ambas, coisa séria, este apoio na sociedade é a garantia de que uma ruptura institucional não ocorrerá. De que a chantagem do Centrão não cruzará a linha do inimaginável.

De certa forma, na construção da equipe de transição, Lula demonstrou estar atento a esta costura necessária. Mas, nos anúncios iniciais de seu ministério, parece ainda estar com cara daquele Lula de 2002. Mais preocupado em agradar ao PT do que em ampliar sua rede de apoio.


Nenhum comentário: