segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Dentadura, sapato ou emprego


29 de agosto de 2010 | 0h 00
João Ubaldo Ribeiro - O Estado de S.Paulo
A grande festa da democracia já está rolando, embora a animação não pareça das mais intensas. Pelo menos para mim, nos cada vez mais escassos momentos em que consigo assistir ao horário eleitoral sem dormir, lembra esses circuitos de Fórmula Um onde as ultrapassagens são quase impossíveis e a corrida se define logo depois das primeiras três ou quatro voltas. Espero não violar nenhuma lei eleitoral, ao endossar a opinião de praticamente todo mundo com quem converso, ou seja, o dr. Serra já perdeu, anda com jeito de perdedor e às vezes a campanha dele dá a mesma impressão que a de um time de futebol em campo apenas para cumprir tabela. Observando-a em andamento, a gente às vezes precisa até de um pequeno esforço, para recordar que se trata de um candidato da oposição.
Ouso ainda achar que a campanha dele partiu de um pressuposto exemplarmente burro. Não sei se aqueles que a conceberam se basearam numa analogia com o que, segundo me contam, fazem os lutadores de jiu-jítsu, os quais usam a força do adversário contra esse mesmo adversário. Se não foi isso, ficou perto. Já que não se pode fazer nada contra a popularidade do presidente Lula, vamos então usar a força dessa popularidade contra sua candidata.
Ideia de Jericó. Não me refiro à cidade bíblica cujas muralhas ruíram por obra das trombetas de Josué, refiro-me à elegante pronúncia de Zezito Cabecinha, lá de Itaparica, que não conhecia a palavra "jerico" (só conhecia "jegue") e a leu "jericó" na primeira vez em que a viu, de maneira que até hoje designa como ideia de Jericó qualquer juízo que lhe pareça pouco inteligente. Perfeita ideia de Jericó, essa corporificada na campanha "oposicionista". Bota lá a imagem do presidente Lula bem visível nos meios de comunicação de massa, bota o nome dele nos jingles. Para mim, isso é mais ou menos a mesma coisa que a Pepsi-Cola fazer propaganda estampando a marca da Coca-Cola em todos os seus comerciais - e com uma voz off no final dizendo "Pepsi-Cola: tão boa quanto Coca-Cola!" Ou, talvez, um pouco mais no espírito da atual campanha da alegada oposição, um ator simpático falando para o telespectador: "Agora que você se deliciou com sua Coca, por que não experimentar uma Pepsi?" É em algo assim que essa campanha resulta. Eu pensava que usar uma marca e uma imagem era coisa muito bem entendida por publicitários, marqueteiros e outros cientistas sociais, mas, pelo visto, não é. Ou então o burro sou eu, deve ser. De qualquer maneira, acho que, a esta altura, saiu tudo pela culatra e a força do adversário não tem funcionado contra ele, mas provavelmente a favor, como parecem corroborar as pesquisas eleitorais.
E, lá no meu sertão, como andará a festa? O brasileiro não sabe votar, avaliação todos os dias repetida, até mesmo num texto falsamente atribuído a mim, que circula na internet e que já desisti de desmentir. Se isso se refere aos brasileiros pobres, miseráveis ou esquecidos nos cafundós, não tenho tanta certeza de que representa a verdade. Que quer dizer "votar certo"? O eleitor vota certo, digamos, quando vota no candidato que representa seus legítimos interesses e aspirações. Nesse caso, quando vende seu voto, ou o troca por uma dentadura, um par de sapatos ou, melhor ainda, um emprego, o tal eleitor "inconsciente" não estará votando certo? Em muitos casos, somente na próxima eleição é que ele vai ver esse pessoal que ora compra seu voto. A eleição é uma ocasião preciosa e rara que se oferece a ele. Durante a temporada eleitoral, ele é cumprimentado, é escutado e elogiado, vira até gente e recebe alguma coisa de um mundo que o ignora e abandona o resto do tempo. Que outra serventia tem o voto para ele? Como vão caber no horizonte dele as questões discutidas pelos "esclarecidos"? Que real diferença, para ele, existe entre um deputado e outro, a não ser que um recompensa o voto com uma graninha, um sapatinho, uma dentadurazinha, uma colocaçãozinha - e o outro nem isso? E, como nem um nem outro jamais fizeram nada para beneficiá-lo, estará votando errado, ao ser recompensado pelo seu voto da única forma que a experiência o autoriza a ver como viável?
E os que votam "certo"? Aqui de novo há uma escala. Quem furta galinha é ladrão; quem furta muitos milhões é um financista vitimado pelas vicissitudes do mercado; quem furta bilhões é um grande homem. Matou um, é assassino; matou milhões, é grande líder. Da mesma forma, quem negocia seu voto por um emprego vota errado. Em compensação, votam certo os que negociam seus votos por uma legião de empregos, como fazem os políticos profissionais que já hoje nem se aguentam, tamanha a sede de ir ao pote assim que o novo governo tomar posse, dando-nos volta e meia a vontade de pedir calma, que vai dar para todo mundo, embora, levando-se em conta a voracidade e a eficiência com que saqueiam e dissipam, talvez o seguro seja estar entre os primeiros a abocanhar, pois de repente a fonte pode secar.
Saber votar, por outro lado, consola pouco os que acham que sabem. Todos os objetivos de todos os candidatos (espero também não ter violado nenhuma lei eleitoral, por haver falado acima somente nos candidatos mais cotados nas pesquisas - temo, aliás, que no futuro, a julgar pelas tendências correntes, isto de fato venha a constituir crime eleitoral e até os livros de História do Brasil sejam obrigados a dedicar espaço rigorosamente igual a todos os presidentes da República) são sempre os mesmos. Construir um Brasil mais justo, mais igualitário, com cidadania. E porque tal, porque vira, etc. e tal. É tudo a mesma coisa, tudo fácil de dizer. E assim, mesmo nós, os que achamos que sabemos votar, enfrentamos dificuldades de escolha. Não estou precisando de dentadura no momento, mas um parzinho de sapatos talvez caísse bem. 


segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Onda Dilma vem de longe

Por José Roberto de  Toledo
(coluna publicada na edição impressa do Estado)


“A propaganda eleitoral começou na TV e fez Dilma Rousseff (PT) disparar nas pesquisas”. Nada mais factual, simples e equivocado. Em eleições, como em todo o resto, não há causa única para consequências avassaladoras.
A entrada da TV no processo eleitoral é a gota d’água que transborda o copo, o grão de areia que provoca uma avalanche, o último tapinha no fundo da garrafa que faz esparramar o catchup. Não houvessem as condições necessárias, um estado crítico, não haveria a onda Dilma.
É um equívoco comum: as tensões acumuladas ao longo de meses, anos, se liberam de uma só vez e debita-se ao último fato de uma cadeia de eventos a responsabilidade pelo ocorrido.
Equivale a culpar o motorista do arquiduque Franz Ferdinand pela morte de 10 milhões de pessoas na Primeira Guerra Mundial, só porque ele errou o caminho e colocou inadvertidamente o nobre austro-húngaro frente a frente com seu assassino.
O crescimento de qualquer candidato é uma onda que se move por muito tempo antes de quebrar, de repente, na urna. Alguns não passam de marola, outros viram tsunami.
Dilma não estaria em condições de vencer no primeiro turno, não houvesse o presidente propagandeado seu nome por meses a fio, ao arrepio da lei eleitoral.
Nem Lula poderia se arvorar a “entregar meu povo em tuas mãos” não houvesse incluído dezenas de milhões no maravilhoso mundo do consumo. Tampouco isso teria ocorrido sem o Plano Real. A história faz diferença.
Assim, não se pode creditar o crescimento de Dilma apenas ao horário eleitoral. Segundo o Datafolha, só 1 em cada 3 eleitores viu os primeiros programas dos presidenciáveis. A onda vem de longe.
Antes de ultrapassar José Serra (PSDB) nas intenções de voto, a petista superou-o no favoritismo popular, ainda nos primeiros dias de junho. Desde então, a cada nova pesquisa, mais eleitores apostam que ela será eleita. Com “delay”, o favoritismo foi virando intenção de voto. Era a onda ganhando corpo.
Ela se propagou do Norte para o Sul, desde as regiões onde os aumentos de renda e do consumo foram mais fortes. Esse movimento contradiz o mito de que “formadores de opinião verticais”, os mais ricos e escolarizados, impõem as tendências de voto de cima para baixo.
Foi a soma de eventos recentes e, principalmente, a sua repercussão que propiciou o último salto de Dilma nas pesquisas. A eleição virou assunto e se propagou de boca em boca. Mais eleitores, principalmente os mais pobres, descobriram que a petista é a candidata de Lula.
Não foram poucos nem desprezíveis os eventos que antecederam o início do horário eleitoral. As entrevistas dos candidatos a presidente no “Jornal Nacional” da TV Globo foram vistas por até 36 milhões de eleitores, segundo pesquisa Ibope.
O debate entre os presidenciáveis na Band alcançou pelo menos 18 milhões de eleitores. O debate no UOL, via internet, recebeu 1,8 milhão de acessos e esse número continua crescendo, porque os eleitores seguem querendo ver os trechos mais ácidos da disputa.
“É menos a audiência (do debate ou da entrevista) e mais a repercussão, o boca-a-boca”, afirma Marcia Cavallari, diretora-executiva do Ibope Inteligência.
Com 28 anos de experiência em pesquisas eleitorais, ela explica que o efeito das entrevistas e debates é potencializado pelos “formadores de opinião horizontal”, as pessoas mais influentes da família e da vizinhança, que iniciam conversas com base nesses eventos.
Embora as relações interpessoais ainda sejam uma das principais fontes de influência do voto, as novas tecnologias desempenham um papel cada vez mais importante nas eleições. Especialmente quando interagem com os meios de comunicação tradicionais.
A entrevista de Marina Silva (PV) ao “JN” quase triplicou o número de pesquisas por seu nome no Google. O número de citações aos candidatos nas redes sociais como Twitter e Facebook é multiplicado quando há debates na TV. Trecho da propaganda de Serra vira hit no YouTube. Um meio potencializa o outro.
Quando a eleição vira assunto do dia-a-dia, o acesso às informações sobre a campanha é praticamente simultâneo a todo o eleitorado, seja nas capitais, seja no Brasil profundo. Isso pode tanto reforçar tendências quanto provocar alterações bruscas, a partir de um fato inesperado, um “aloprado”. Também por isso não se pode dar a eleição por decidida.

Retrato de um país que pode parar

23 de agosto de 2010 | 0h 00


O tão falado apagão logístico virou realidade e gargalos na infraestrutura põem em risco a competitividade do País
Renée Pereira - O Estado de S.Paulo

No início deste mês, a fila de navios à espera de autorização para atracar no Porto de Santos, maior da América Latina, bateu novo recorde: o congestionamento chegou a 119 navios parados, enquanto em dias normais esse número não passa de 10. No transporte aéreo, o Aeroporto de Guarulhos, o maior do Brasil, teve de fazer mutirão para liberar cargas que estavam ao relento por falta de áreas para armazenagem. Cenas como essas revelam que o alerta feito por inúmeros especialistas, vistos pelo governo como catastrofistas, não era mero achismo. O apagão logístico virou realidade no Brasil e será um dos maiores desafios para o próximo governo.
No ano passado, por causa da crise financeira mundial, os gargalos foram amenizados. Mas bastou o País reagir e crescer acima da média para os problemas voltarem com força. Na área de transporte, falta tudo. As estradas continuam em péssima qualidade, especialmente as que atendem o agronegócio, concentrado no Centro-Oeste. O mais lógico seria escoar a safra pelos portos da Região Norte. Mas grande parte dos grãos exportados sai pelos portos do Sul e do Sudeste, depois de percorrer milhares de quilômetros de estradas.
O caminho para atingir os terminais do Norte é precário, cheio de obstáculos, como é o caso da BR-163, que liga Cuiabá a Santarém. Mas, hoje, mesmo que houvesse rodovias adequadas para escoar a produção pelo Norte, os portos da região não têm capacidade para atender toda a demanda, afirma o diretor-geral da Associação Nacional dos Exportadores de Cereais, Sérgio Teixeira Mendes. O resultado é que quase toda a safra vai para Santos e Paranaguá.
Apesar dos investimentos em andamento, os dois portos vivem em constante colapso. Nas últimas semanas, Santos virou um estacionamento de navios que não conseguiam atracar. Mais uma vez a culpa é de São Pedro e do aumento das exportações de açúcar. O porto não tem infraestrutura para embarcar o produto quando chove. Resultado: tudo para.
A degradação da infraestrutura do Brasil não se limita à parte logística. Um dos setores mais atrasados é o de saneamento básico. O País ainda registra números alarmantes de excluídos dos serviços públicos, considerados essenciais para o bem-estar da população. Apesar dos programas de universalização criados pelo governo, milhares de brasileiros ainda não sabem o que é ter luz e água - seja tratada ou não - dentro de casa. Telefone e coleta de esgoto são serviços que nem passam pela cabeça de muitas famílias.
O setor de energia, depois do racionamento de 2001, parece estar entrando nos eixos. Mas a tarifa cobrada do consumidor ainda é uma das maiores do mundo, alerta o diretor da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), Carlos Cavalcanti.
1-PortosResponsáveis por 95% do comércio exterior brasileiro, os portos viraram o grande entrave ao crescimento do País. Todo ano a história se repete: basta começar a safra de grãos para os problemas virem à tona, como as gigantescas filas de caminhões nas rodovias e de navios no mar. A situação é decorrente dos longos anos sem investimentos, que condenaram alguns terminais à estagnação e decadência.
Algumas ações tentam recuperar a capacidade dos portos, como o Programa Nacional de Dragagem (PND), mas o resultado ainda é limitado. O objetivo é atacar uma das principais deficiências dos terminais: a baixa profundidade dos canais para receber grandes embarcações. Com as novas gerações de navios, muitos portos já saíram da rota dos armadores.
O resultado foi a maior concentração de escalas no Sul e Sudeste, onde o sistema portuário já está saturado. Em Santos e Paranaguá, os maiores do País, os acessos terrestres são o maior obstáculo. Mas há também carência na infraestrutura de alguns terminais, que não conseguem operar em períodos de chuva, por exemplo.
Apesar de algumas iniciativas, a velocidade de investimentos não tem sido compatível com a demanda. A solução do problema exige atuação mais firme.

2- Ferrovias O renascimento da ferrovia no Brasil está diretamente ligado ao avanço do agronegócio e do setor mineral. Seu alcance, no entanto, ainda é muito limitado. A malha nacional tem apenas 28 mil quilômetros (km) de extensão e ainda não consegue atender áreas que se transformaram em grande produtoras de grãos, como Mato Grosso.
Mas a ferrovia brasileira não é apenas pequena. Ela também é muito mal aproveitada. Segundo a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), apenas 10% das ferrovias (3 mil km) estão plenamente ocupadas. Outros 7 mil km estão sendo usados abaixo da capacidade e 18 mil km são subutilizados.
Além de pequena, ela atinge poucos setores da economia. Até o ano passado, apenas dez produtos, quase todos granéis para exportação, somavam 91% de tudo que era transportado. Só o carregamento de minério de ferro representou 74,37% da movimentação das ferrovias.
Para completar a lista de problemas, alguns gargalos reduzem a eficiência do transporte, pois diminuem a velocidade do trem. Um deles é a invasão da faixa de domínio, como a construção de casas à beira dos trilhos. No total, são 372 pontos, sendo 183 invasões de moradias. Outro problema são as passagens de nível (cruzamento de carros, por exemplo), que somam 12 mil em todo o País.

3- Rodovias
A matriz brasileira de transporte é quase toda baseada em rodovias. Hoje 60% de toda carga movimentada no País é transportada por caminhões. Teoricamente, isso implicaria ter uma malha rodoviária boa para atender à demanda, cada vez mais crescente. Mas essa não é uma realidade no Brasil, que tem apenas 11% da malha nacional pavimentada.
Hoje há estradas de terra batida que fazem parte de importantes corredores de exportação. É o caso, por exemplo, da BR-163, entre Cuiabá e Santarém. Embora pareça mais uma trilha, a rodovia é caminho para o transporte de soja exportada pelos portos do Norte. Parte da estrada está em obras. A previsão para o término é 2012.
Até o ano passado, 69% das estradas pavimentadas no Brasil eram classificadas como ruins, péssimas ou regulares, segundo a Pesquisa Rodoviária 2009, da Confederação Nacional dos Transportes (CNT). Apenas 13,5% das estradas foram considerados ótimos e 17,5%, bons.
De acordo com o estudo, a má qualidade das estradas provoca aumento médio de 28% no custo do transporte rodoviário de carga. Só em relação ao consumo de combustível, o aumento do custo de transporte pode chegar a 5%, comparado aos veículos que trafegam em rodovias com excelente pavimentação, como as de São Paulo.
4. Aeroportos
O setor aéreo foi o último a integrar a lista de gargalos da infraestrutura nacional. No caso do transporte de passageiros, o aumento da demanda evidenciou a falta de planejamento do setor, que a exemplo das outras áreas da infraestrutura também padeceu durante décadas sem investimentos adequados.
Nos últimos anos, viajar de avião virou um teste de paciência para os passageiros, que nunca sabem se chegarão ao seu destino na data prevista. Se nada for feito com urgência, a tendência é piorar ainda mais. De acordo com estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o transporte aéreo de passageiros no Brasil deve triplicar nos próximos 20 anos.
No setor de carga, a situação não é muito diferente. Com o aumento no volume de importações (superior a 40%), os terminais entraram em colapso. Os problemas são iguais aos dos portos: faltam áreas de armazenagem, instalações (câmaras refrigeradas) para produtos especiais e mão de obra suficiente para liberar as mercadorias dentro de padrões internacionais.
Sem áreas suficientes, as cargas são armazenadas ao relento, no pátio, ao lado dos aviões. Ao ficarem expostas ao sol ou à chuva, muitas mercadorias são danificadas, o que complica ainda mais o processo de retirada do produto da área alfandegária.
Em alguns casos, os terminais demoram mais para liberar a mercadoria do que o tempo que ela gastou para sair do país de origem e chegar ao Brasil. O problema também tem afetado o embarque de produtos exportados.

5. Energia
Depois de passar pelo racionamento de 2001, o setor de energia elétrica conseguiu criar uma cultura de planejamento. Pelo menos na área de geração de energia elétrica. Todos os anos, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), estatal responsável pelos estudos de novos empreendimentos, põe à disposição projetos para serem leiloados e construídos. O lado negativo é que quando não há projetos hidrelétricos para serem concedidos, a estatal recorre às térmicas movidas a óleo diesel e óleo combustível, mais caras e poluentes. De qualquer forma, o governo tem conseguido afastar o risco de racionamento.
Mas, se na geração os riscos estão mais controlados, a distribuição tem revelado sinais de saturação. No fim do ano passado e início deste ano, os brasileiros enfrentaram uma série de blecautes localizados, além do apagão de novembro, que atingiu 18 Estados. Os desligamentos provocaram a piora na qualidade da energia entregue aos brasileiros.
Em 2009, pela primeira vez desde a privatização, os indicadores superaram as metas estabelecidas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), de 17,9 horas. Na avaliação de especialistas, uma das explicações é a falta de manutenção da rede. Outro problema que atormenta os brasileiros é o preço da conta de luz, uma das mais altas do mundo por causa da elevada carga tributária.
6. Saneamento
Durante muitos anos, o atraso do Brasil no setor de saneamento básico foi atribuído à falta de um marco regulatório adequado para atrair a iniciativa privada. As novas regras vieram em 2006, depois de 20 anos de atraso, mas até hoje os investimentos não deslancharam. Nos últimos anos, o governo federal reforçou o orçamento para a área por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
O problema, que antes era dinheiro, passou a ser a falta de projetos. Para conseguir o capital, as prefeituras precisavam apresentar o projeto das obras, mas boa parte não conseguiu cumprir o requisito. Resultado: uma parcela significativa da população continua sem os serviços básicos de saneamento.
Um exemplo disso é a capital de Rondônia, Porto Velho. Quase toda a cidade não tem esgoto tratado nem água potável. As obras apenas começaram a sair do papel por causa das hidrelétricas do Rio Madeira, Santo Antônio e Jirau, que tornaram a região mais visível no cenário nacional.
De acordo com os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referentes a 2008, apenas 52,5% da população brasileira é atendida por rede de esgoto. No caso do abastecimento de água, o número é melhor: 82% da população tem água em suas moradias.
Veja as outras matérias deste especial abaixo.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A brincadeira do PIB chinês Alberto Tamer


O Estado de S. Paulo - 19/08/2010



Saiu o PIB da China no segundo trimestre. Passou o Japão e agora é a segunda economia mundial. Não é que a China cresceu mais, foi o Japão que cresceu menos. Mesmo assim, a diferença entre ambos é simbólica. China US$ 1,33 trilhão, Japão, US$ 1,28 trilhão. Mas nada disso é importante, mesmo porque a diferença entre a segunda economia mundial em relação à primeira - os US$ 14 trilhões dos Estados Unidos - é imensa. A China representa hoje 2,4% do PIB mundial e os Estados Unidos, 24,6%.

Não há razão para tanta festa. O que importa é que a China vem mantendo esse ritmo de crescimento mesmo com recessão mundial. Avança menos, mas continua avançando 9% enquanto os outros ainda não reagem. Tudo mais, comparações com o PIB do Japão, da Alemanha, é puro marketing. Bem aproveitado pelo governo chinês que acordou e está iniciando um belo trabalho de relações públicas no cenário internacional.

Mas vai passar os EUA! Essa é outra armadilha estatística (resisti muito à palavra brincadeira) Exercícios de futurologia nos quais até alguns economistas do FMI caíram. Em 2030, o PIB da China será maior que o dos EUA e da União Europeia! A coluna entrou nesse jogo estatístico e chegou à conclusão que se os EUA crescerem 2% o ano e a China mantiver o ritmo atual, de 10%, em 31 anos...

Brincadeira por quê? Simplesmente porque o crescimento da China depende do crescimento das exportações para os EUA e a UE seus principais mercados. No primeiro semestre, as exportações da China para o mercado mundial aumentaram em 35% e as importações 52%. Principal mercado, EUA, US$ 290 bilhões. Ou seja, 25% das exportações chinesas! A mesma proporção com os 27 países da UE. É um número menos representativo, certo, pois teríamos de levar em conta também as importações. Mas, mesmo assim confirma que o crescimento da China no ritmo atual ainda está diretamente ligado ao crescimento do mercado e da economia mundial.

O socorro do governo. Isso ficou comprovado no ano passado, quando a recessão afetou o fluxo comercial e só foi superada pela China com um vigoroso pacote de estímulo fiscal de US$ 600 bilhões. Representou cerca de 12% do PIB desse ano. Mesmo assim, o mercado interno contribuiu com apenas 8,7% do crescimento do PIB em 2009. Antes da crise, representava 12%.

Não dá para repetir a dose? Não, pelo menos na mesma proporção. O governo começou a criar nos últimos dois anos um novo modelo de economia voltado para o mercado, com o potencial de pelo menos 500 milhões de novos consumidores. Pelo menos 10 milhões migram por ano para as cidades, mas com as repercussões da crise mundial sobre a ocupação da mão de obra, grande parte está voltando para suas cidades. Há crédito demais, que beneficiou muito o setor imobiliário. No ano passado, a alta nas bolsas passou de 80%, o mercado imobiliário cresceu mais de 40% em área construída e cerca de 80% em valor por metro quadrado. O governo chinês vem aplicando com êxito a terceirização de parte da produção em países vizinhos, a custos menores. Há ainda a vantagem de obter matéria-prima nos países africanos e, agora, também de olho no Brasil.

E o tal segundo lugar? Isso não tem importância. O que importa é que a China continue crescendo no ritmo atual, que seu PIB dobre em alguns anos, que importe mais. Sem isso, a recuperação da economia mundial continuará ameaçada. Não se pode contar com os outros emergentes - Brasil, Índia. Pesam pouco no mercado mundial. O que pesa são os mais de 500 milhões de chineses que ainda não consomem o que o mundo precisa produzir. Tema para próximas colunas.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Sérgio Besserman e as seis grandes crises ambientais

A ERA DOS DESASTRES


Para o economista e ambientalista Sérgio Besserman, o mundo vive hoje de forma contrária ao principal conceito econômico: o de que não há “free lunch”e, por isso, tudo o que fazemos no presente terá, inevitavelmente, consequências no futuro. De acordo com o especialista, esse comportamento já provocou seis grandes crises ambientais no planeta – algumas, irreversíveis –, que só tendem a piorar

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Mônica Nunes/Débora Spitzcovsky
Planeta Sustentável - 13/08/2010

A humanidade presencia, atualmente, um momento único e de extrema importância na história do planeta. Foi com essa afirmação que o economista, ambientalista e membro do Conselho Diretor daONG WWF-BrasilSérgio Besserman, iniciou sua palestra sobre “Mudanças Climáticas e Perspectivas do Brasil”, na última quarta-feira, 11 de agosto, no evento Projeto Brasil 2014.

Segundo o especialista, essa é a primeira vez na história da humanidade que enfrentamos um grande problema de forma consciente e temos plenas condições de resolvê-lo, o que não significa que o faremos. “Como não há precedentes na história, é impossível prever o comportamento do homem, mas por enquanto estamos nos saindo muito mal. Há 300 anos, por conta do crescimento econômico, começamos a agredir o meio ambiente e não paramos mais. Antes, causávamos danos locais. Hoje, o estrago já é global”, disse Besserman.

Para o ambientalista, a culpa é da teimosia do homem, que quer a todo custo ir contra o princípio mais básico da economia: o de que não há “free lunch” (expressão em inglês que quer dizer “almoço grátis”). “Ou seja, nada na vida sai de graça. Hoje, os recursos naturais do mundo são usados de forma irresponsável por cerca de 1 bilhão de pessoas – que vivem nos EUA, China ou constituem as classes média e rica dos países emergentes. Já os outros 4,5 bilhões que habitam o mundo lutam muito para, também, poder explorar o planeta de jeito exagerado. Toda essa exploração tem um preço e a conta a pagar já está aí”, explicou.

Segundo o especialista, já podemos contabilizar seis grandes crises ambientais no planeta que foram causadas pelo homem. “E esse número só aumentará até 2050, quando teremos, em uma previsão otimista, cerca de 9 bilhões de habitantes na Terra”, destacou.

AS AGRESSÕES AO ECOSSISTEMA PLANETÁRIO
desertificação e a perda da qualidade do solo constituem a primeira crise ambiental citada por Besserman. “Para mim, ela é gravíssima, porque compromete as plantações agrícolas. Se haverá tanta gente no mundo daqui a 30 anos, uma crise alimentar será inevitável”, disse. Segundo o especialista, o problema já é tão sério que no Brasil, por exemplo, o semiárido será totalmente árido em cerca de 50 anos. (Para saber mais sobre a campanha que a ONU lançou contra a desertificação, leia a reportagem ONU proclama Década de Combate à Desertificação)

O segundo colapso listado pelo ambientalista é o buraco na camada de ozônio, que para ele não é tão grave porque já está estabilizado – exceto na China – e possui solução tecnológica. No entanto, quando fala sobre a terceira crise ambiental que provocamos, Besserman não mostra tanta tranquilidade. “A escassez de água doce ainda causará muitos conflitos por todo o mundo e o mais irônico é que o recurso ainda estará no planeta, só que de forma inacessível”, disse o especialista, se referindo ao fato de que, por conta das mudanças climáticas, está cada vez mais difícil prever onde acontecem as chuvas, o que dificulta o processo de captura de água doce.

degradação dos oceanos é o quarto colapso global apontado por Besserman, que lembra que o fato dos mares ficarem mais ácidos compromete todo o ecossistema marítimo. “A população de fitoplânctons, por exemplo, diminuiu 40% em 120 anos e há muitas outras mudanças negativas, causadas pela alteração de ph da água, que já são irreversíveis”, disse. Essa aniquilação da vida marinha, inclusive, constitui parte da quinta crise ambiental citada por Besserman: a extinção da biodiversidade do planeta.

“Estamos acabando com a fauna e flora na mesma velocidade que a era Cretáceo – que teve a extinção em massa dos dinossauros e demais animais da Terra. Hoje, a previsão ambiental mais otimista diz que 30 a 40% das espécies vivas do planeta já estão extintas. É lamentável”.

Apesar disso, Besserman não teme pela existência da biodiversidade. Para ele, mesmo que sejam extintas pelo homem, a fauna e a flora reaparecerão no planeta, em cerca de 5 milhões de anos, ainda mais diversas. Já a vida humana não terá a mesma sorte. “Não temos ideia do quanto dependemos da biodiversidade para existir, mas é muito. Com certeza a humanidade estará sob sérios riscos”, afirmou.

UM CAPÍTULO A PARTE
As mudanças climáticas são a sexta e última crise ambiental que vivemos atualmente, na opinião de Besserman, e merecem uma atenção diferente da que deve ser dada aos outros cinco problemas globais. Isso porque o especialista considera essa crise muito mais grave, urgente e profunda do que qualquer outra.

“Ela é a mais grave porque intensifica todas as outras crises ambientais. É a mais urgente porque é histórica, ou seja, começou há muito tempo e já provocou muitos estragos, o que significa que não basta parar de emitir em grande quantidade para resolver a situação. E é a mais profunda porque não existe solução tecnológica para as mudanças climáticas, enquanto vivermos na era da energia fóssil. É preciso uma mudança radical no pensamento de toda a sociedade”, sentenciou o ecoeconomista.

Para ele, é exatamente esse terceiro aspecto que torna a resolução da sexta crise ambiental tão difícil, já que a sociedade, no geral, está acostumada a se sacrificar, apenas, pelo bem individual e não coletivo. “Para enfrentar as mudanças climáticas só há uma receita: ser, de fato, humanidade, o que é difícil, porque nem mesmo a política pensa no todo, atualmente, e a maioria das pessoas teme mudanças”, disse Besserman, que ainda completou: “O que as pessoas precisam entender é que a maior mudança de todas virá se não mudarmos nada agora, porque colocaremos incontáveis vidas humanas em jogo”
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segunda-feira, 16 de agosto de 2010

USP cria fibrocimento sem amianto inspirado na natureza



Agência USP
O fibrocimento desenvolvido se caracteriza por propriedades mecânicas que variam ao longo do material, diferente dos convencionais, que têm as mesmas propriedades em toda a sua extensão.
Publicado em 12 de Agosto de 2010
O fibrocimento desenvolvido se caracteriza por propriedades mecânicas que variam ao longo do material, diferente dos convencionais, que têm as mesmas propriedades em toda a sua extensão.Agência USP
Pesquisadores da Escola Politécnica da USP criaram um novo tipo de fibrocimento com uma tecnologia inédita no mundo, sem amianto e com excelente resistência. 

O fibrocimento desenvolvido se caracteriza por propriedades mecânicas que variam ao longo do material, diferente dos convencionais, que têm as mesmas propriedades em toda a sua extensão. 


Inspiração na natureza 

"Inspirados na natureza, desenvolvemos um fibrocimento com gradação funcional", conta o engenheiro Cléber Dias. "O conceito é inspirado em materiais como o bambu, as ostras e, até mesmo, o osso humano. 

Dias explica que a gradação funcional significa a variação de valor de uma ou mais propriedades ao longo do material. "Por exemplo, podemos variar a porosidade ao longo de um material e estaremos variando, consequentemente, sua resistência mecânica em pontos diferentes", descreve. 

Ele conta que as indústrias brasileiras de fibrocimento começaram a migrar para a fabricação do produto sem o uso do amianto, material que teve o uso banido em diversos países. 

Porém, os fibrocimentos produzidos com fibras alternativas (sintéticas) apresentaram desempenho inferior e o custo de produção era mais alto que o do cimento-amianto. Dias lembra que as fibras de polipropileno e PVA são as mais utilizadas para substituir o amianto. 

Telhas onduladas sem amianto 

Os engenheiros realizaram testes com a fabricação de telhas onduladas de fibrocimento em que foram alteradas suas resistências mecânicas em pontos específicos. "As telhas foram fabricadas em máquinas Hatschek e as alterações da resistência mecânica foram conseguidas aplicando misturas de cimento, polímeros e fibras, de poli(vinil álcool), PVA, ou vidro álcali-resistente", explica Dias. 

A gradação funcional nas telhas pode ser obtida de duas maneiras. Na primeira, durante a formação da telha na prensa da Hatschek, são aplicadas misturas fibrosas em pontos específicos da telha. "Apesar de a telha apresentar altas concentrações de fibras em determinados pontos, na média, o teor de fibras é menor que o teor convencionalmente utilizados nos produtos homogêneos", compara. 

A outra forma, segundo Dias, é variar a composição de cada tanque do maquinário Hatschek. "Nesse caso podemos produzir placas constituídas de camadas com diferentes composições. Essa forma não foi avaliada, pois necessitaríamos de um investimento muito alto. Mas fizemos os fibrocimentos com camadas diferentes em laboratório e os resultados foram muito bons", afirma. 

Fibrocimento verde 

Ele ressalta, no entanto, que muitos estudos ainda são necessários e que outros pesquisadores devem dar prosseguimento ao trabalho atuando na indústria. 

"Nesse tipo de fabricação, os custos são menores devido à redução do teor de fibras sintéticas. Mesmo assim, a capacidade de carga das telhas de fibrocimento pôde ser melhorada," garante o engenheiro. 

Além das telhas onduladas, Dias garante que o fibrocimento com gradação funcional também pode ser utilizado na fabricação de placas planas. 

O pesquisador também destaca que o processo produtivo resultará em um produto menos agressivo ao meio ambiente, já que o consumo de fibras derivadas de petróleo será reduzido. "O produto deverá ficar, consequentemente, mais acessível ao consumidor", diz Dias.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A doce ilusão da vontade


Fernando Reinach   fernando@reinach.com - O Estado de S.Paulo

Quando nos levantamos da mesa, vamos até a geladeira e nos servimos de um copo de água, temos a certeza de que esse comportamento complexo teve sua origem em nossa vontade. Em outras palavras, acreditamos que tudo se iniciou com nossa vontade consciente de tomar água.
Não há dúvida de que a mente humana é capaz de imaginar uma situação no futuro (a água prazerosamente descendo pela garganta), avaliar se essa situação é recompensadora (sim, tenho sede) ou não (que preguiça de ir até a geladeira) e tomar a decisão de agir para tornar real a situação que imaginamos. O problema é que nas últimas décadas os cientistas têm descoberto que muitos atos que acreditamos serem derivados de nossa vontade consciente na verdade são comandados ou modulados pelo nosso inconsciente.
A ilusão da vontade consciente é tão forte que muitos têm dificuldade em aceitar que atos inconscientes existem. Para convencer os incrédulos, nada melhor que examinar os mais simples. Nosso coração bate regulado por um mecanismo sobre o qual praticamente não temos controle consciente. O mesmo ocorre com o movimento dos intestinos. Outros atos são controlados pelo inconsciente durante a maior parte do tempo, mas podemos assumir seu controle. É o caso do ato de respirar.
Em outros casos - por exemplo, quando dirigimos um carro por um percurso familiar -, abdicamos do controle consciente e de repente percebemos que já chegamos. O mesmo ocorre com o ato de andar. Já tentou controlar conscientemente cada movimento de cada músculo do seu corpo enquanto anda? É praticamente impossível. Começamos a andar e o inconsciente toma conta dos detalhes enquanto sonhamos acordados.
A primeira descoberta que abalou nossa ilusão de que a vontade consciente inicia nossos atos foi o experimento que demonstrou que quando uma pessoa levanta um dedo, um cientista que monitora seu cérebro é capaz de prever que ela vai decidir levantar o dedo frações de segundo antes de ela fazê-lo e muito antes de o dedo realmente se mover (veja A possibilidade de prever decisões e o livre-arbítrio, publicado aqui em 16/08/2007). Nesse caso, apesar de o cérebro ter "decidido" antes de a decisão aparecer na consciência, o ato de levantar o dedo só ocorre depois de essa vontade aparecer na consciência.
Nos últimos anos, os cientistas descobriram que muitos de nossos atos são iniciados e concluídos sem que eles apareçam na nossa consciência. O elemento que provoca o início do ato também é inconsciente. Dezenas de experimentos demonstram que isso ocorre. Em um deles, duas pessoas sentadas em uma mesa são instruídas a montar dois quebra-cabeças em sequência. Os quatro quebra-cabeças, quando montados, revelam palavras. Foi descoberto que se o quebra-cabeça montado primeiro por uma das pessoas revelar palavras como "vitória" ou "competitividade", essa pessoa vai montar mais rapidamente que a outra o segundo quebra-cabeça.
Ou seja, mesmo sem ter decidido conscientemente aumentar a velocidade com que tenta completar a tarefa, o inconsciente da pessoa usa a informação visual e o significado da palavra lida no primeiro quebra-cabeça para modular seu comportamento. A competitividade brotou diretamente do inconsciente. Interrogadas sobre o experimento, essas pessoas não têm consciência de que tentaram aumentar a velocidade.
Nessa mesma linha, outros experimentos demonstram que, em um escritório, as pessoas mantêm suas mesas mais limpas se um ligeiro odor de desinfetante (em níveis abaixo dos percebidos conscientemente) for adicionado ao ar. Em outro estudo, pessoas eram informadas que receberiam uma recompensa fixa em dinheiro (digamos, sempre R$ 1) se apertassem um botão quando uma imagem de dinheiro aparecesse na tela. Diferentes grupos foram submetidos a diversas imagens de dinheiro. A força com que as pessoas apertam o botão é diretamente relacionada ao valor que aparece na tela.

Em todos esses casos, as pessoas agiram guiadas por estímulos vindos do inconscientes e nunca tiveram conhecimento ou "vontade consciente" de praticar os atos. Elas procuraram atingir um objetivo e executaram um ato sem intervenção da consciência. Experimentos mais complexos demonstram que muitas vezes iniciamos, executamos e terminamos atos sem jamais termos consciência do que fazemos.

Esses experimentos têm gerado muitas discussões sobre seu significado. Eles afetam a imagem que temos de nossos atos, da nossa liberdade de ação e do que significa ser humano. Mas, para muitos biólogos, essas descobertas são mais uma demonstração de que, afinal, não somos tão diferentes dos outros animais.

A maioria dos seres vivos provavelmente não tem consciência de seus atos da mesma maneira que acreditamos possuir. Apesar disso, agem e reagem guiados por um cérebro capaz de captar estímulos do meio ambiente e transformá-los em ações na ausência de consciência. Nossa mente consciente evoluiu no interior de um desses cérebros e não deveria nos espantar que muitos dos mecanismos que governam o comportamento de nossos ancestrais ainda governem nossos atos. Precisamos aprender a conviver com o fato de que não passamos de animais sofisticados e aos poucos nos libertarmos da doce ilusão de que nossos atos dependem de nossa vontade consciente.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Papai

11 de agosto de 2010 | 0h 00
    Roberto da Matta - O Estado de S.Paulo
Um papel social importante é regularmente assinalado. Na semana que passou, comemoramos o seu lado positivo. Mas mesmo vivido pelo avesso, o papel é discutido, como ocorre nos tristes casos em que o pai destrói o filho, que o castiga em excesso ou, pior que isso, que o renega. No lado simbólico e exemplar, invocamos o Pai para glorificá-lo na sua projeção como o Pai Eterno que tudo criou; ou o pai mortal que, sendo regular e mediocremente bom e mal, como é o caso em geral, ajuda - é certo - a vender cuecas e gravatas, mas também a pensar em certas coisas...
* * * *
De papai guardei duas memórias. Ele não foi um homem de palavras ou canções. Pouco disse, muito agiu. Sempre no sentido de preservar e cuidar da família ("nada pode faltar na minha casa!"); jamais pulou a cerca: foi o maior marido "caixão branco" que vi na minha vida; nada me disse quando, um dia, tive uma dificuldade sexual corriqueira (e fundamental) que nos torna ternamente meninos diante das mulheres; mas, um dia, quando notei a janela do meu quarto ser forçada, testemunhei sua coragem quando ele, de um salto, escancarou-a no intuito de pegar o ladrão que tentava violar o nosso lar.
Quando entrei no ginásio numa Juiz de Fora de bondes e apenas duas piscinas (a do Sport e a da casa do Mario Assis onde, com o Mauricio Macedo e o saudoso Naninho, tomávamos banho depois de peladas de basquetebol), meu pai, um tanto solene, presenteou-me com uma caneta Parker. Nela, estava incrustado o meu nome. Aquela caneta me levou à escrita - um desejo e comando ocultos daquele pai provedor e elegante. Ali eu recebi a pena que me livra, com as mentiras que conto, de todas as penas desta vida.
Quando, nos idos de 1963, para o risco de Harvard, ia partir para uma Nova Inglaterra fria e desconhecida, papai me presenteou com um sóbrio sobretudo que era uma confirmação de autonomia, era um voto de sucesso para a carreira que tomava corpo e era, eis o que vejo hoje com olhos marejados de lágrimas, a definitiva, a tão necessária - a tão magnânima Bênção paterna. Pois o que é a "bênção" senão a prova explícita de um amor incondicional e, por isso mesmo, pronto para sair de cena?
Esse casaco me agasalhou nas nevascas. Deu-me o calor e o conforto moral contra as covardias da minha insegurança. Usei-o quando fiz meus exames para o doutoramento; vesti-o quando caminhava nas ruas de Cambridge e, solitário, aprendia a ser antropólogo. Ou antropófago dos fatos da vida. Ao escrever e tentar me proteger, estou com papai. Bonito, forte, amante da praia e dos esportes. Fiel à sua família e à sua casa. Tão honesto e puro que, mesmo sendo fiscal do consumo, só nos legou uma casa. Nós, seus cinco filhos e filha, o enterramos com um choro de orgulho e amor. Fôramos todos abençoados por esse baiano que, entre muitas coisas, jamais visitou os Estados Unidos, pois - como me disse uma vez - jamais poderia pôr os pés num país que não gostava de negros.
* * * *
Um dia eu virei e - digo-o porque é importante - jamais deixei de ser pai. Estava escrito e a despeito de minhas dúvidas, determinado. Segui a mesma sina e tive dois filhos e uma filhinha. A metade da prole paterna, como manda o figurino de um rapaz que queria ser pai e tinha aspirações politicointelectuais. Como politicointelectual queria ser a luz dos explorados e era favorável ao que então se chamava de "reformas de base" e hoje dizem ser o PAC. E que jamais saem do papel. Tinha fantasias de ser um grande "conscientizador" (eis uma outra palavra da época) e sair pelo mundo, renunciando-o, para exercer a carreira dos comunistas que - naquele momento - figuravam como andarilhos e santos. Não sei aonde foram parar. Como pai e marido, segui o pai e como pai fui menos calado e certamente tão insatisfatório e faltoso quanto Renato, meu genitor. Pois quem como pai é pleno, se a plenitude supõe uma igualdade que o papel de doador da vida, instaurando uma dívida inafiançável, suprime de saída? Como ser pai (ou mãe) se num momento de nossas vidas fomos deuses e o nosso êxtase - num leito que também é o Jardim do Éden - produziu o sopro da vida?

Quando meu filhos nasceram, eu me senti mais como um deus do que como um mero reprodutor. Tinha uma consciência tão forte, tão brutalmente presente da minha capacidade de conceber vidas que esse dom englobava a mera paternidade social e cartorial de dar apenas o nome, ao lado da transformação de marido em papai.

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Sou hoje avô, ou como falamos carinhosamente no Brasil, sou pai duas vezes. De fato, testemunhar o nascimento dos filhos dos filhos é uma bênção: um raro e bíblico privilégio. Os filhos dos filhos nos fazem reviver o dom da vida sendo reproduzida pelos que fizemos. Pode haver algo mais gracioso?
Mas em verdade eu vos digo, queridos leitores, não há nada, mas nada mesmo mais abençoado do que ter a consciência de ser um doador de vidas e por elas responder. De ter o poder de distribuir a Bênção do amor e de assim desejar, do fundo do coração, que todos os seus filhos tenham uma longa vida e sejam muito - sejam eternamente felizes. 

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