sábado, 30 de setembro de 2017

Por uma rede agnóstica, Demi Getschko, O Estado de S.Paulo


“Neutro” vem do latim “neuter”, que se compõe de “ne” e “uter”, significando “nem um, nem outro”. Por isso, na Química, o ph 7 é neutro, já que não é ácido nem básico. E “isto” ou “aquilo” é neutro em português, ao contrário de “esta” ou “aquele”. O neutro não distingue ácido ou base, masculino ou feminino. O neutro é agnóstico e não seletivo.


25 Janeiro 2016 | 03h16
Se falamos em internet, como encaixar o “neutro” no contexto? Ajudará, inicialmente, dar uma olhada em como mecanismos que atuam na rede foram construídos. O que sempre ressalta é o uso de bom senso, da colaboração e da distribuição, além de uma coerente analogia com o mundo real. Se queremos, por exemplo, projetar um serviço de correio no mundo material, precisamos pensar em como transportar cartas. Temos que saber para onde devem ser remetidas, eventualmente seu peso e dimensões, mas não de que tema tratam. Se alguém remete o próprio currículo, para buscar a única oportunidade, imperdível, de emprego da vida, ou se está enviando uma coleção de piadas a outro amigo (bem, hoje essa pode ser uma atividade de risco...) isso não diz respeito ao correio, que não deve conhecer o conteúdo. Também não se levará em conta se o destinatário mora em área “diferenciada”, de alto padrão, ou se a rua dele sequer tem calçamento: a entrega será feita sob chuva ou sol e calor ou frio, com o mesmo empenho que Júlio Verne descreve em Miguel Strogoff, o correio do czar.
Na internet os protocolos foram definidos com sendo agnósticos em relação ao conteúdo. E sobre os protocolos básicos abertamente construídos, nada impede a adição de outros mais. Isso permitiu, por exemplo, o surgimento da web, da voz sobre rede, da imagem, entre outros. O que tecnicamente se entende como “neutralidade” na rede tem, então, três pilares básicos: não discriminar endereços de origem e destino; não olhar conteúdo; não vedar serviços tecnicamente possíveis sobre a rede, tanto os que hoje existam como os que virão a existir.
Neutralidade diz respeito à rede e resguarda-se ao usuário final o direito de dispor do que recebe. Assim com eu posso jogar fora uma carta em papel, ou não atender uma ligação telefônica, eu posso decidir o que entra ou não, via rede, em minha casa ou computador. Essa é uma decisão do usuário final que não pode ser assumida por nenhum ator no meio do processo. É a rede que deve ser neutra, em todos os seus segmentos e operadores, não suas terminações. Assim, um site pode ser grátis ou pago, pode exigir ou não identificação dos que o acessam, ou pode impedir acessos que considera inadequados, visto que “neutralidade” não se aplica aos pontos finais. A analogia com o mundo real é simples: o proprietário de uma casa decide quem pode entrar e quando. Mas a rua é pública e neutra, os transportes devem ser públicos e neutros, os conteúdos transportados deve ser invioláveis e a evolução dinâmica da rede deve ser mantida aberta e livre – afinal nunca sabemos que novos e fantásticos serviços podem surgir amanhã.
Proteger a internet deve ser prioridade. Adaptando uma frase de Nietzsche, “eu não sei o que quero que a internet seja amanhã, mas sei muito bem no que eu não gostaria que ela se tornasse”.

Engenheiro de São Paulo inventa máquina que 'fabrica' água, FSP


Falta de água, racionamento e calor são temas que preocupam o governo paulista nos últimos meses, em meio à maior crise hídrica da história. Para um inventor de Valinhos, a 85 km de São Paulo, a solução para esses problemas veio, literalmente, do ar.
Engenheiro mecatrônico, Pedro Ricardo Paulino patenteou em 2010 a Wateair, máquina que faz água condensando a umidade do ar.
A água produzida -que passa por um sistema de purificação que elimina as bactérias- é tão limpa que seu uso inicial foi em máquinas de hemodiálise. Para ser consumida, ela precisa passar por um segundo filtro, que adiciona sais minerais à solução.
Tudo o que a Wateair precisa para funcionar é estar ligada na tomada. Quanto mais úmido estiver o ambiente, mais ela produz. Porém, se a umidade cair a menos de 10%, ela para de funcionar. Isso elimina o risco de deixar um ambiente fechado muito seco. No dia mais seco deste ano em São Paulo, o nível chegou a 19%.

SALGADA
A contadora Maria Helena Castro, 31, comprou uma máquina em maio para suprir a falta d'água no sítio dela em Itu (a 101 km de SP).
Ela desembolsou R$ 120 mil na versão que produz até mil litros por dia. "Tinha problemas com falta de água desde fevereiro. Hoje, crio minhas galinhas, porcos, coelhos e irrigo minha plantação sem dor de cabeça", diz.
Maria Helena conta que o preço compensa e que ainda não precisou fazer nenhuma troca de filtro ou manutenção.
O inventor explica que, como os componentes da máquina são importados e a demanda ainda é pequena, os custos são elevados. "Tudo é encomendado e praticamente não existe nada feito em linha de produção", afirma.
Apu Gomes/Folhapress
Pedro Ricardo Paulino posa com uma das versões de sua máquina em Valinhos; no detalhe, o menor modelo do aparelho
Pedro Ricardo Paulino posa com uma das versões de sua máquina em Valinhos, no interior de SP
A menor máquina, que produz 30 litros por dia com a umidade relativa do ar a 80%, custa R$ 7.000. A maior, que chega a 5.000 litros por dia, é vendida por R$ 350 mil.
Segundo o criador, o gasto de energia elétrica para fazer um litro de água é equivalente a R$ 0,17 em São Paulo. Portanto, encher uma caixa d'água de mil litros custa R$ 170.
A Sabesp cobra em média R$ 7,25 (incluindo a tarifa de esgoto) para distribuir a mesma quantidade a uma família de quatro pessoas. Ainda assim, o inventor diz que a procura pela máquina aumentou exponencialmente nos últimos meses.
"Os clientes antes eram escolas ou pessoas que precisavam de água potável em menor quantidade. Agora, vendemos a restaurantes, produtores de remédios e outros prejudicados pelo fornecimento de água e pela dificuldade da captação por poços", diz.
Segundo o engenheiro, um aparelho de ar-condicionado comum faz algo semelhante, mas produz água com metais pesados e bactérias.
Paulino começou o projeto nos anos 1990, numa multinacional. Em 2006, passou a desenvolver a máquina com o próprio dinheiro. Quatro anos depois, conseguiu atestar a qualidade da água produzida e patenteou a Wateair.
Para o inventor, o aparelho pode ser uma das soluções para a crise. "Máquinas como essa em escala gigante e a dessalinização da água do mar são opções para o futuro de São Paulo."
Como funciona
1 - Turbinas aspiram o ar para dentro da máquina
2 - As moléculas de água são condensadas e tornam-se líquidas
3 - Filtros e raios ultravioleta purificam a água
4 - Outro filtro adiciona sais minerais
5 - Pronta para ser consumida, a água é armazenada em um reservatório 

Uma decisão surpreendente - CARLOS VELLOSO, OESP




ESTADÃO - 29/09

A menos que se renegue o Estado de Direito, o que importa é cumprir a Constituição


Analisemos, sem quebra da reverência e do respeito devidos, a decisão proferida, pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), no agravo interposto na cautelar requerida pela Procuradoria-Geral da República, cautelar apresentada pelo mesmo órgão do Ministério Público, com base em gravação feita por Wesley Batista, um dos donos da JBS, com o fito de obter perdão consistente numa colossal imunidade penal. Esse senhor acabou preso, a requerimento do Ministério Público, porque se descobriu que mentira. Na cautelar foi pedida a prisão do senador e seu afastamento do mandato que lhe foi outorgado pelo povo.

A decisão, com todo o respeito, foi surpreendente.

O voto do relator, ministro Marco Aurélio Mello, minucioso e longo, foi pelo não cabimento da prisão, do afastamento e demais medidas alternativas. No mesmo sentido, o voto do ministro Alexandre de Moraes, largamente fundamentado. Os ministros Marco Aurélio e Alexandre de Moraes deixaram claro que, conforme expresso na Constituição, “desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável”, caso em que “os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão” (artigo 52, § 2.º). No tocante ao pedido de prisão, todos os integrantes da turma ficaram de acordo com os votos dos ministros Marco Aurélio e Alexandre de Moraes.

Em seguida vieram os votos divergentes quanto às medidas alternativas, capitaneados pelos ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Fux.

Surpreendente. É que, se não ocorrem os motivos da prisão, nem ela seria cabível, é evidente que também ausentes os motivos ou fundamento para a imposição de medidas alternativas. A decisão é, portanto, no mínimo, contraditória.

E mais: sem que houvesse denúncia, regularmente recebida pelo Supremo Tribunal, ao senador foi imposto o afastamento do mandato. Se denúncia tivesse sido recebida contra o parlamentar, depois de lhe ter sido assegurado o direito de defesa, ainda nessa hipótese seria discutível a medida. Ao que entendo, somente a Casa a que pertence o parlamentar pode afastar um de seus membros. Investido este no mandato, pelo voto popular, expressão maior da cidadania, somente quem da mesma forma está investido poderia afastá-lo. O parlamentar encarna a democracia representativa que praticamos.

Assim posta a questão, a medida consistente na suspensão do mandato, da forma como adotada, representa um desrespeito ao voto popular e ao Poder Legislativo, constituindo ofensa ao princípio da separação dos Poderes (artigo 2.º da Carta Magna), traço caracterizador do presidencialismo, a que a Constituição confere status de cláusula pétrea (artigo 60, § 4.º, III).

E o que me parece incompreensível: foi adotada, contra o senador, dentre outras medidas, a obrigatoriedade do recolhimento domiciliar noturno. É inacreditável e imperdoável que se possa invocar, no ponto, disposição inscrita no Código de Processo, pretendendo, dessa forma, invocar a Constituição no rumo da lei ordinária, quando esta, sim, há de ser invocada no rumo da Constituição. Na verdade, ao parlamentar foi imposta, com ofensa à Lei Maior, a pena de prisão em regime aberto. Nesse caso, ao Senado Federal devem ser remetidos os autos, em 24 horas, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a medida alternativa que, na realidade, é prisão em regime aberto (artigo 53, § 2.º da Lei Maior).

Gostemos ou não, o que importa é que seja cumprida a Constituição, a menos que se renegue o Estado de Direito. O preço que se paga, no caso, por vivermos num Estado de Direito Democrático não é caro. Convém lembrar que o Parlamento é o poder que melhor representa a democracia. E que – vale repetir um velho brocardo – ruim com o Parlamento, pior sem ele. O que temos de fazer é pugnar pelo aperfeiçoamento do voto e da representação. Encarar a representação como mero serviço público, desprestigiá-la, é obra de quem não tem apreço pela democracia.

O ministro Marco Aurélio, um juiz independente, que a comunidade jurídica respeita, manifestou-se, expressamente, em entrevista à mídia, no sentido de que “o que nós tivemos foi a decretação de uma prisão preventiva em regime aberto. Vamos usar o português”.

Arroubos juvenis de moralismo – ponderou-me, certa feita, um velho juiz de Minas – não ficam bem. Esses arroubos desvirtuam o caráter da Justiça. O que deve ficar acertado é que a Justiça, proclamou o patriarca do Direito Civil brasileiro, Clóvis Beviláqua, “é o Direito iluminado pela moral” – coisa diversa de moralismo, acrescentamos, que, de regra, é moral sem ética.

Combater a corrupção é dever de todos. O Império Romano, que foi dono do mundo e senhor da guerra, começou a decair e acabou quando seus soldados e seus homens públicos se corromperam. Mas o combate à corrupção se faz com observância da lei e da Constituição, assim como das garantias constitucionais.

O Supremo Tribunal Federal, “joia das instituições republicanas”, apregoava o bastonário Levi Carneiro, é, naturalmente, o Poder moderador dos Poderes. E há de ser, sempre, o que tem sido ressaltado por seus eminentes juízes e pelos homens e pelas mulheres do Direito, a derradeira trincheira das garantias constitucionais da liberdade.

*Advogado, ministro aposentado e ex-presidente do STF e do TSE, professor emérito da UNB e da PUC-MG, em cujas faculdades de Direito foi professor titular de Direito Constitucional e Teoria Geral do Direito Público, é membro de honra da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB.

O autor não é advogado do senador Aécio Neves no caso objeto deste artigo. Em dois antigos inquéritos, um já arquivado e o outro sob investigação, advoga para o senador Aécio Neves

Creonte, rei de Tebas, e as eleições de 2018 - BOLÍVAR LAMOUNIER, OESP


ESTADÃO - 30/09

Sem uma ampla coalizão de centro, convém nos prepararmos para longo período de sofrimento


“Não se pode prejulgar um homem, decidir de sua alma e do que sente, enquanto ele não mostrar quem é, ditando leis”
Creonte, na Antígona de Sófocles


A fala de Creonte evidencia bem a distância que nos separa das monarquias da Antiguidade. O que o fez convocar os varões da cidade ao palácio foi a insistência da nobre Antígona em dar sepultura a seu irmão Polinice. Creonte rechaçava com firmeza a pretensão de Antígona, dado que a seu ver Polinices se tornara um inimigo da cidade, um traidor. Decretara o estrito cumprimento da tradição, determinando que Polinice não seria sepultado. Ficaria fora dos muros da cidade, ao relento, exposto à sanha de animais e aves predadoras.

No mundo atual – e neste triste momento brasileiro-, a dimensão dos problemas é milhões de vezes maior que o tormento que se abateu sobre Tebas. Começando pelo conjunto, o que temos é uma economia ainda desorganizada, incapaz de prover adequadamente os bens, serviços e empregos de que nós, 206 milhões de brasileiros, necessitamos para viver. Um Estado ainda incapaz de educar nossas crianças, de ligar metade dos domicílios à rede pública de saneamento, de eliminar a corrupção que lhe devora as entranhas e de reprimir de forma decisiva o narcotráfico, que caminha a passos largos para se incrustar em dezenas ou centenas de favelas. Uma mineradora mata um de nossos melhores rios e fica tudo por isso mesmo. A sexta economia do mundo não tem uma sequer entre as cem melhores universidades do planeta.

Nas antigas monarquias, como observei, o soberano detinha a prerrogativa de ser avaliado depois, não antes de “editar as leis” que considerava necessárias. No mundo atual, a avaliação é ex ante, não ex post, e não diz respeito a leis, mas a programas vagamente formulados, informações rarefeitas e gesticulações demagógicas, sem esquecer as famigeradas artes do marketing. O soberano, em nosso caso, é um eleitorado que já beira os 150 milhões, com carências educacionais notórias, mas cuja responsabilidade por nossas desgraças é pequena, pois a ação concreta de governar não cabe a ele, e sim às elites, cujo comportamento recente tem sido obsceno.

Que esperar de 2018? Uma eleição esfarelada, sem um candidato “natural”, uma liderança com estatura suficiente para diluir o ambiente raivoso e “contra todos” que ora predomina e apontar uma estrada mais larga para os próximos anos? Um segundo turno polarizado, com os suspeitos de sempre cumprindo os enredos de sempre, um se fazendo passar por “esquerda” e o outro por “direita”, ambos incapazes de perceber a perda de significado desses termos no mundo atual? Não nos iludamos, por enquanto, o que se delineia é a clássica tragicomédia latino-americana.

A questão em jogo, evidentemente, é se seremos ou não capazes de formar um governo capaz de atrair grandes investimentos e estruturar um novo ciclo de crescimento. A grande incógnita é se Lula poderá ou não concorrer, mas será elástica, como sempre, a oferta de populistas irresponsáveis, dispostos a dizer qualquer coisa. Alguns desses chegam mesmo a acreditar que representam o “bem”, um compromisso com o desenvolvimento e com políticas sociais sensatas. Acreditam que os grandes investimentos de que necessitamos virão de um jeito ou de outro, nem que seja pela bela cor de nossos olhos. Não compreendem que nenhum megainvestidor, pessoa física ou jurídica, é tatu a ponto de colocar seus recursos num país que não lhe oferece garantias sérias.

Uma novidade, como sabemos, é João Doria, mas é difícil crer que ele se disponha a deixar a Prefeitura antes da metade do mandato para disputar a vez com o governador Geraldo Alckmin. Este tem experiência e potencial, mas depende vitalmente de uma transformação do clima político. Não tem perfil de radical. Poderá ser um candidato adequado se as camadas médias se desvestirem da presente atitude raivosa, antipolítica, e demandarem um programa consistente, com proposições efetivas para a retomada do crescimento. Sobre Marina Silva (que possivelmente terá Joaquim Barbosa como vice) não tenho grandes expectativas. Confesso certo ceticismo quanto à sua capacidade de empolgar o eleitorado.

Outra novidade é o deputado Jair Bolsonaro. Até o momento, o que me foi dado depreender é que combinará proposições econômicas na velha linha intervencionista, a mesma a que Dilma Rousseff recorreu para levar o País ao desastre, com o discurso da segurança pública – “lei e ordem”, na conhecida expressão norte-americana. Que esse discurso ressoa, não há dúvida. A segurança é uma das preocupações dos cidadãos e aqueles que subestimavam a proporção atingida pelo narcotráfico pôde apreciar ao vivo e em cores os tiroteios na Rocinha. Mas ressonância não necessariamente se traduz em votos. Para que isso ocorra a sociedade precisa acreditar que a tendência ascendente da violência pode ser revertida num prazo relativamente curto e que esse candidato em particular – aqui falo de Bolsonaro – seja capaz de operar tal milagre. Acreditar nisso é mais difícil que acreditar em duendes e no saci-pererê.

Ou seja, fórmulas para retardar ou afugentar investimentos nós temos em abundância. Se não formos capazes de desarmar os espíritos e construir uma grande coalizão de centro, convém nos prepararmos para um longo período de sofrimento. Crescendo alguma coisa entre 2% e 3% ao ano, levaremos mais de 20 anos para atingir a renda por habitante dos países mais pobres da Europa. Nessa hipótese, em duas décadas não teremos um só Polinices, mas milhões deles, servindo de pasto para hienas e abutres.

*Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, é autor do livro ‘Liberais e antiliberais: a luta ideológica do nosso tempo’ (Companhia das Letras, 2016)

Análise: Má interpretação da arte gera equívocos que duram séculos,OESP



A performance de Wagner Schwartz, La Bête, parte de uma ideia simples – ser o simulacro de um ‘bicho’ – para criticar o sistema de comercialização da arte






Antônio Gonçalves Filho, O Estado de S.Paulo
30 Setembro 2017 | 06h01
Há quase meio século, em 1970, no auge da ditadura militar, o artista português Antonio Manuel, radicado no Brasil, fez uma performance no Museu de Arte Moderna do Rio (MAM/RJ), exatamente como a da noite de terça-feira, 26, quando o coreógrafo Wagner Schwartz abriu a 35.ª edição do Panorama da Arte Brasileira no MAM/SP.

Interação de criança com homem nu gera polêmica após abertura de exposição no MAM
Fotos de divulgação mostram o artista nu sendo filmado pelo público. Foto: Divulgação/Atraves.tv
As propostas das duas performances eram diferentes, mas o objetivo era o mesmo: fazer uma crítica à repressão que conduz a interpretações equivocadas da arte. Há um evidente retrocesso quando a sociedade, 47 anos depois da performance no MAM carioca, ainda considera escandalosa a nudez artística.
Evoque-se que o Brasil tinha três anos quando Michelangelo concebeu o Tondo Doni (Uffizi), uma pintura tão enigmática que tomou os últimos anos de vida do crítico americano Leo Steinberg. O ensaísta escandalizou os puritanos ao chamar a atenção para a presença de grupos de homossexuais nus no mesmo espaço em que posa a Sagrada Família. Se Michelangelo vivesse hoje, certamente o Tondo Doni não existiria. Nem a Capela Sistina. Ou mesmo seu Davi. Quem perderia com isso seria a própria sociedade.
A performance de Wagner Schwartz, La Bête, parte de uma ideia simples – ser o simulacro de um ‘bicho’ (peça de metal articulada) de Lygia Clark – para criticar o sistema de comercialização da arte, que supervaloriza o objeto e despreza o artista. Um ‘bicho’ de Lygia Clark pode atingir hoje US$ 2 milhões.
Os museus não deixam o público sequer tocar no objeto, o que contraria a intenção original de Lygia Clark. Assim, Schwartz resolveu se expor ao público no lugar do ‘bicho’, sujeitando-se à manipulação. Não houve nenhum apelo à pedofilia, como sugerem os gritos histéricos na internet. A sala do MAM estava sinalizada sobre o conteúdo da exposição. Muitos museus fazem isso. No Masp, a sala do fotógrafo Miguel Rio Branco traz a mesma advertência. Entra quem quer. Entende quem for capaz.
Graças a Leo Steinberg, hoje sabemos que a “ostentatio genitalia” (a genitália do bambino e dos gays atrás dele) do Tondo Doni era uma apresentação da teologia encarnacional. Se o crítico fosse um moralista, permaneceríamos todos na ignorância.

Perigo para as instituições, por João Domingos, O Estado de S.Paulo


Polarização da sociedade e falta de confiança nos Poderes da República alimentam a crise


30 Setembro 2017 | 03h00
É bastante provável que Senado e Supremo Tribunal Federal (STF) se entendam e que a ameaça de crise institucional que hoje paira sobre o País por causa da suspensão das atividades legislativas do senador Aécio Neves e da determinação para que se recolha ao lar à noite fique apenas na ameaça. Porque os presidentes do Senado, Eunício Oliveira, e do STF, Cármen Lúcia, dois conciliadores por vocação, pelo jeito conseguiram estancar a sangria que parecia inevitável. 
Numa sessão marcada às pressas por Cármen Lúcia para o dia 11, o STF poderá decidir que as medidas cautelares previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal, como a que determinou a Aécio que fique em casa no período noturno, sejam comunicadas à Câmara ou ao Senado em 24 horas, caso tomadas contra deputado ou senador. Caberá então à Casa do Congresso à qual pertence o parlamentar decidir se autoriza ou não a aplicação da pena. Tal exigência é feita pela Constituição nos casos que envolvem a prisão em flagrante de deputado ou senador.
Desse modo, caso decida por revogar a medida aplicada contra Aécio Neves pela Primeira Turma do STF, o Senado não poderá ser acusado de desobedecer a uma decisão judicial. 
Essas decisões que podem evitar o impasse resultam do entendimento político entre os presidentes de dois Poderes da República, que sabem da capacidade de destruição de uma crise institucional. 
Quanto às causas da crise, essas não têm boa vontade de chefes de Poder que consiga resolvê-las de uma hora para a outra, porque elas resultam de uma soma de fatores do cotidiano do País: a polarização da sociedade, a crise política sem fim e a falta de confiança nos Poderes da República. Juntem-se a tudo isso a falta de líderes capazes de pôr ordem na bagunça, um governo com a pior taxa de aprovação de todos os tempos, um Congresso desacreditado pelo fisiologismo e pelas denúncias de corrupção, discursos contrários à atuação do Ministério Público, da Polícia Federal e da Justiça, como os feitos à exaustão pelo PT, pelo ex-presidente Lula e pelo senador Renan Calheiros, um certo engajamento político dos ministros do STF e a desesperança da população. Taí o caldeirão do diabo pronto para cozinhar a poção do impasse.
No auge da crise, alguns dirigentes partidários chegaram a dizer que o Senado tinha todo o direito de revogar uma decisão do Supremo, como as aplicadas em Aécio, porque o STF se mete em fazer interpretações tais das leis que elas acabam por se tornar outras leis.
Não se pode dizer que estão certos os que fizeram a defesa de tal reação. Ora, se um muda seu papel por causa do que o outro faz, o desrespeito à Constituição virá imediatamente. Assim, rasgam-se os princípios adotados pela democracia brasileira, inspirados na teoria da separação e independência entre os Poderes, do francês Montesquieu, e cada um vai fazer o que quer. 
Para o cientista político Fábio Wanderley Reis, o STF se tornou hipersensível à opinião pública e assumiu um ativismo político, fazendo interpretações de leis sem resguardo constitucional. O clímax, na opinião dele, ocorreu durante o voto do ministro Fux pela condenação de Aécio. Para o cientista político, o ministro fez chacota com o senador ao dizer que Aécio não teve a grandeza de se afastar do Senado: “Já que ele não teve esse gesto de grandeza, nós vamos auxiliá-lo exatamente a que ele se porte tal como ele deveria se portar. Pedir não só para sair da presidência do PSDB, mas sair do Senado Federal para poder comprovar à sociedade a sua ausência de toda e qualquer culpa nesse episódio”, afirmou Fux ao votar. A pessoa do réu é sagrada. Não pode ser alvo de zombarias, diz Wanderley Reis.

Partilha ou concessão?, Suely Caldas, OESP

Suely Caldas*, O Estado de S.Paulo
30 Setembro 2017 | 05h00
No momento em que o leilão desta semana parece sinalizar o fim da apatia e a retomada do interesse de grandes empresas pelo petróleo brasileiro, vale refletir sobre duas datas marcantes da nossa história recente: em agosto, a lei que acabou com o monopólio da Petrobrás completou 20 anos e, em dezembro, 7 anos a lei que instituiu o regime de partilha na exploração de óleo nas promissoras áreas do pré-sal.
Que a Petrobrás não dava mais conta de explorar sozinha ficou evidente, desde a década de 1970, com as descobertas gigantes em águas profundas da Bacia de Campos. Tudo era grande demais para uma única empresa, mas só em 1997, no governo FHC, houve o reconhecimento em lei. Então dezenas de empresas se instalaram no País, gerando um boom de novos investimentos, empregos, renda e riqueza com a multiplicação de projetos de exploração. Foi quando a produção de óleo e gás saltou de 900 mil barris/dia, em 1997, para 2,5 milhões na média deste ano, e os empregos no setor triplicaram.
Que existia óleo abaixo da camada da rocha de sal, em águas ainda mais profundas, já se sabia desde os anos 1980, mas só em 2007 foi possível dimensionar potencial e área e dispor de tecnologia para extrair o óleo. Depois de muita incerteza, finalmente o ex-presidente Lula sancionou a lei que instituiu o regime de partilha nas áreas do pré-sal, pelo qual o petróleo extraído é dividido entre a União (75%) e o consórcio investidor (25%), obrigou a Petrobrás a ser a única operadora dos poços e a participar com um mínimo de 30% do investimento.
Deu tudo errado, e frustrou-se a tentativa de devolver o monopólio à Petrobrás - que, aliás, não o queria de volta. Estrangulada pelo congelamento do preço dos combustíveis, assaltada pelos políticos, usada a torto e a direito pelos governos do PT e contraindo dívidas impagáveis, a estatal perdeu fôlego financeiro para investir no pré-sal e ainda ser a única operadora. Com isso, um único leilão foi efetuado, em 2013, no Campo de Libra, sem disputa e arrematado por um único consórcio formado pela Petrobrás, a Total francesa, a Shell holandesa e duas chinesas. E foi só. Pararam os leilões e a economia brasileira mergulhou na recessão.
Com o País e sua presidente desacreditados e a Petrobrás desmoralizada com a Operação Lava Jato, os investidores fugiram do Brasil e o petróleo do pré-sal continuou sepultado no fundo do mar, impedindo os brasileiros de usufruírem de sua riqueza. Em novembro de 2016 a lei mudou, a Petrobrás ficou livre das amarras, os leilões foram retomados (há mais oito rodadas marcadas até 2019) e os investidores voltaram, entre eles a Exxon, maior petrolífera do mundo, que havia desistido do Brasil. A lei mudou, mas o regime de partilha no pré-sal não, desencadeando uma polêmica que tem tudo para prosperar neste momento de retomada.
O fim da partilha e sua substituição pelo regime de concessão (a União, detentora do monopólio, é indenizada com carga tributária elevada) ganharam um defensor em Décio Oddone, diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo (ANP). Na partilha, a União se apropria de 75% do óleo extraído e a empresa ou o consórcio ficam com 25%. Antes desse rateio, porém, são deduzidos todos os custos de exploração e produção declarados pela empresa. É aí, argumenta Oddone, que a indústria busca vantagens ao inflar as despesas com penduricalhos supérfluos e dispensáveis.
“O regime de partilha foi o maior erro que cometemos no Brasil. Nele o investidor agrega despesas sem nenhum critério, só para elevar o custo e entregar um volume menor de petróleo à União. Não é à toa que partiu da indústria a preferência pela partilha em países da África”, denuncia Oddone.
Ele reconhece que a área do pré-sal requer tratamento diferenciado porque o risco de não encontrar petróleo é mínimo. Mas argumenta que a União vai faturar “bem mais” com a elevação da alíquota do tributo Participação Especial. “É muito mais transparente, eficiente, reduz o custo e aumenta a produtividade.”
Por enquanto, a partilha vigora, mas Oddone se diz disposto a lançar e sustentar o debate.
*JORNALISTA