Papel do Estado vai muito além de enfileirar alunos
Anna Helena AltenfelderMaria Alice Setubal
Neste início de ano letivo, educadores, alunos, pais e demais cidadãos esperavam que o novo governo apresentasse um plano concreto para que a educação brasileira garanta a aprendizagem dos 49 milhões de alunos matriculados na educação básica. No entanto, foram surpreendidos com o anúncio de que a regulamentação da educação domiciliar (“homeschooling”, em inglês) está entre as prioridades.
A notícia causou estranheza, já que não há sequer um diagnóstico consistente sobre o tema. Em documento enviado ao Congresso, a cúpula do governo apontou que mais de 30 mil famílias adotariam a educação domiciliar. Enquanto isso, a Folha noticiou que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos estima, com base em dados de associações que defendem o “homeschooling”, que elas seriam 5.000.
O que os dados do governo, sim, apontam é que estão fora da escola 2 milhões de crianças e adolescentes de 4 a 17 anos —idade em que hoje a matrícula é obrigatória. Garantir o acesso, a permanência e a aprendizagem para esses jovens deveria ser prioridade inescapável. Afinal, em um país tão desigual como o nosso, a ausência desses alunos das salas de aula tende a estar muito mais associada à vulnerabilidade socioeconômica do que a uma opção das famílias.
Ainda temos 2,7 milhões de menores de 18 anos em situação de trabalho infantil. Para esses, a desobrigação da matrícula dificilmente se traduziria na possibilidade de educação a domicílio. Ao contrário, tende a aumentar sua vulnerabilidade.
Cabe lembrar que a escola surgiu como resposta institucional a uma demanda por processos de educação formal (ampla) que complementem a educação familiar (específica). Ela ganhou cada vez mais relevância quanto mais complexas se tornaram as sociedades. Ter acesso à educação escolar passou a ser um direito de todos e um dever dos Estados, como parte das estratégias de democratização do saber e de redução de desigualdades de origem num mundo onde a ciência e as tecnologias avançam numa velocidade cada vez mais impressionante.
O papel da escola —da pública, em especial— é também o de promover a construção da identidade social e do pertencimento dos sujeitos, ao mesmo tempo em que garante a convivência com as diferenças. Por isso, ela tem sofrido tanto com a desvalorização e o abandono pelo Estado e sofre também com a saída de alguns segmentos sociais que buscam uma diferenciação afirmada pela negação da convivência com a diversidade e com o espaço público, essenciais numa democracia.
Fortalecer a democracia está diretamente relacionado com a capacidade de construir uma educação de qualidade para todos, com uma escola pública que forme cidadãos capazes de participar e de contribuir com as esferas econômica, política, social e cultural. Responsabilidade que vai muito além de enfileirar alunos para cantar o hino nacional.
Símbolos nacionais têm sua importância, mas devem ser trabalhados em espaços contextualizados de aprendizado. É preciso garantir as condições de acesso, permanência e aprendizagem, num ambiente com infraestrutura e profissionais capacitados.
Reafirmar a importância da educação escolar para a democracia e o desenvolvimento integral de crianças, adolescentes e jovens não diminui em nada o papel dos pais e responsáveis. A educação, já afirma o texto constitucional, é dever do Estado e da família. Ambos se complementam, não podem se eximir de suas responsabilidades e precisam trabalhar em cooperação pela plena cidadania de todos.
Maria Alice Setubal
Doutora em psicologia da educação (PUC-SP), presidente do conselho da Fundação Tide Setubal e do Gife (Grupo de Institutos Fundações Empresariais)
Anna Helena Altenfelder
Pedagoga, doutora em psicologia da educação (PUC-SP) e presidente do conselho de administração do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária)