sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Carta aos filhos do Pelé, FSP

 Jéssica Moreira

SÃO PAULO (SP)

Celeste, Edinho, Flávia, Jennifer, Joshua e Kely Cristina: eu sinto muito, mas muito mesmo. Para o mundo, a perda do rei. Para vocês, a perda do pai: com todos os lados, os defeitos e qualidades, ausências e presenças, o melhor e também o pior do Edson Arantes do Nascimento.

Nunca estamos preparados para o fim. Podemos ler todos os textos, até nos especializamos na temática da morte e seus processos, mas quando ela chega, atravessa tudo. O tempo e o espaço ficam suspensos, congelados. Exigindo de nós, filhos de pais que morreram, renascer e reinventar um mundo sem eles.

Não conheço vocês pessoalmente. Nem posso dizer que sei o que sentem agora. Sou órfã de pai há pouco mais de oito anos. Vocês são órfãos agora. Independente da idade, é sempre difícil renascer sabendo que não existe mais uma figura física do pai nesse plano.

O amparo que recebem vem do mundo todo. O amor vem de todas as partes. Mas recebam a carta desta que um dia também esteve no leito de um hospital sem saber muito o que dizer ou sentir, apenas querendo estar perto do seu pai mais um pouco.

Aliás, Kely, a foto debruçada no peito do seu pai em um leito hospitalar me acalentou. Só quem é filho ou filha sabe quão importante é esse abraço de despedida à beira do desconhecido da morte.

A opção pelos cuidados paliativos foi muito certeira. Embora ainda pouco acessível à grande maioria da população brasileira, o processo envolvendo Pelé popularizou o assunto cuidados paliativos, deixou palpável um tema que antes parecia tão difícil de entender.

psicóloga paliativista Silvana Aquino resumiu bem a importância de viver e morrer sob a perspectiva desse tipo de cuidado em suas redes. Dentre os vários tópicos, como "aliviar a dor; não acelerar nem adiar a morte; afirmar a vida e considerar a morte um processo natural", eu destacaria dois deles: "auxiliar os familiares durante a doença do paciente e ajudar a família a enfrentar o luto".

Silvana ainda reafirma: "Passou seus últimos dias no quarto, cercado da família. Recebeu remédios para aliviar seu desconforto, sem precisar de aparelhos que só serviriam para prolongar seu sofrimento. Pôde viver a experiência de se desligar aos poucos do mundo, mas ainda assim conectado ao amor que o cercou, a despeito de situações inacabadas, que só dizem respeito a quem com ele conviveu. Teve a chance de torcer pelo Brasil. Teve a chance de dizer adeus".

Talvez tenham sido esses cuidados que permitiram um último abraço no seu pai e quem sabe esse exemplo permita que outros filhos e filhas tenham a chance de dar esse abraço final em seus pais também.

Espero que vocês tenham conseguido dizer a ele tudo aquilo que desejavam. Como meu pai ficou em coma por muitos dias, a única coisa que fazia era cantar sambas que havia me ensinado na infância. Achava que em algum lugar de seu inconsciente poderia estar rindo diante do processo de (in)finitude.

Espero também que o perdão possa ter aparecido. Os pais erram. Mesmo sendo nossos heróis e referências. No caso de vocês, modelo de um país todo, de um mundo inteiro. Mesmo assim, erram.

Fico feliz em saber que os filhos de Sandra Regina, uma das filhas que morreu em 2016, tenham sido recebidos por ele no hospital. E o perdão, quase nunca simples, tenha sido parte do processo de não fantasiar quem amamos, mesmo na partida.

"Errar e acertar fazem parte da nossa vida, nem tudo é mil maravilhas, toda família tem brigas e rusgas, a nossa não é diferente, mas há momentos que a união e o amor são mais importantes do que qualquer coisa. Agradeço a Deus por ter proporcionado esse momento, pois era o que minha mãe mais sonhava, tem coisas que uns plantam e outros colhem e nós estamos colhendo", escreveu em suas redes um dos netos de Pelé, Octávio Felinto Neto, filho de Sandra.

Espero que tenham conseguido contar histórias um para o outro. A foto de quase todos vocês juntos no hospital me lembra que a morte não é somente sinônimo de tristeza. E que o luto traz um sentimento misturado mesmo. Afinal, nossas vidas são forjadas por alegrias e tristezas, existindo concomitantemente. Por que haveria de ser diferente nesse momento? Diante da morte, a memória é um espaço seguro de existência. Morre Edson, mas fica Pelé. Mas e o pai? O que será que fica dele em cada um de vocês?

Esta não é uma carta cheia de conselhos, é apenas o amor de quem também já perdeu, mesmo não sabendo, nem um centímetro, da dor que sentem agora. O mundo todo chora a morte do Rei Pelé, mas só vocês sabem a dor de perder Edson, o pai.

Jéssica Moreira

Jéssica Moreira é escritora e jornalista. Coautora do Blog Morte Sem Tabu e Cofundadora do Nós, mulheres da periferia

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