domingo, 11 de dezembro de 2022

Itamar Vieira Junior - Ver que o Brasil continuará tentando enfrentar seus problemas nos devolve à vida, FSP

 

Há tempos, não faço um inventário das perdas e dos ganhos que se sucedem ao longo de um ano. Recordo que, quando muito jovem, projetava metas quase inalcançáveis para o ciclo vindouro e me frustrava quando não as alcançava.

Custei a compreender que muitas das idealizações não dependiam apenas de mim. Quando se vive numa sociedade estratificada em classe, raça e outras variantes, sob instituições e governos, muito pouco depende de nós.

Crianças jogam bola em rua de Manaus decorada por ocasião da Copa do Mundo do Qatar - Michael Dantas - 12.nov.22/AFP

Então, os anos foram me moldando com a experiência do tempo, e eu aprendi que não desejar além das nossas possibilidades pode ser bom, já que a vida tende a nos surpreender com seu movimento contínuo.

Não esperar muito não é se conformar com o mundo do jeito que se encontra. Não significa não desejar terra, casa e alimento para os oprimidos ou a libertação de humanos e não humanos que se encontram privados da própria vivência.

Eu continuo a desejar uma convivência mais equânime entre todas as espécies. Quando eu vejo a devastação de nossos biomas, não consigo ver apenas a extinção de recursos naturais que nos farão falta no futuro —ou no presente, tão urgente se tornou a destruição. Vejo o fim brutal de inúmeras possibilidades de existências que poderiam ser acrescidas à nossa, assim como à nossa poderiam ser acrescidas as que foram extintas.

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Não esperar muito nos ensina a valorizar os passos rumo à justiça e nos dá horizonte e sabedoria para agir de maneira efetiva por mudanças que tornem este planeta mais habitável.

E, nos interstícios da vida, podemos ser surpreendidos com emoções de toda ordem. As que mais me agradam são as inesperadas, onde eu projeto símbolos e esperanças de minhas crenças.

Ainda hoje, alguém que conheço limpava o apartamento e, ao abrir a janela, se deparou com um ninho de bem-te-vi no vão entre o concreto e o ar-condicionado. A imagem chegou a mim antes das mensagens, de maneira que eu pude contemplar a beleza daquele evento quase banal sem me influenciar com as impressões alheias. A seguir, as mensagens iam de encontro ao meu sentimento inicial: os ramos e galhos secos formando o ninho nada mais eram que sujeira para o cômodo, sem contar na barulheira que pode ser o trinado de um pássaro ao amanhecer.

O que para mim era a dádiva da vida rompendo o concreto inanimado das grandes cidades, para o outro era a centelha de uma tormenta. Esquadrinhando esse texto não haverá um certo ou errado, mas apenas formas distintas de observar o mundo, moldadas por expectativas e histórias diversas.

Nos eventos literários dos últimos meses, pude encontrar e conversar com muitos leitores, e uma pergunta em especial continua a ecoar, mesmo depois de algum tempo. Não me recordo exatamente do enunciado, mas em suma, inquiriam: é mais difícil criar literatura em ambientes de opressão e violência como os vividos nos últimos anos?

Não hesitei em dizer que sim, porque tendemos a dividir a atenção que deveria estar voltada à criação com os problemas que consomem nossa energia, mudam nossos humores e competem com as engrenagens da imaginação.

Ao dividir uma mesa com o escritor José Luís Peixoto, lembramos que a obra atemporal de José Saramago floresceu com potência quando Portugal, depois de décadas de ditadura, renasceu para a democracia. Certamente, como cidadão e político, Saramago se ocupava com o drama de seu país, e parte da sua energia criativa se desviava para os problemas que recaíam sobre todos.

Com a derrota do candidato Jair Bolsonaro, a névoa que pairava sobre o país se dissipou parcialmente. Não foram poucas as manifestações de que o Brasil voltava à normalidade em muitos sentidos, sobretudo no institucional. Eu mesmo confesso que sinto como se um caminhão —para fazer uma analogia aos protestos golpistas— tivesse deixado minhas costas.

Os desafios são imensos, seculares, desanimadores e, às vezes, podem parecer intransponíveis. Mas o simples fato de saber que continuaremos a tentar —a reparar a dívida histórica com nossa sociedade multiétnica, a combater a fome, a criar garantias sociais que mitiguem a nossa grande desigualdade e a proteger os nossos biomas tão fragilizados— já é capaz de nos devolver à vida, porque estaremos, enfim, depois de longo hiato, pensando no que pode tornar este país um lugar melhor.


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