O cristianismo se tornou tão visceral na cultura ocidental que seu impacto tende a passar despercebido, como o ar que se respira.
É o que explica e demonstra com competência Tom Holland em seu livro Domínio: o cristianismo e a criação da mentalidade ocidental, traduzido em português pela Editora Record.
Tudo começa com um absurdo. Um pregador errante dos confins da Judeia, que depois teve morte vergonhosa de escravo, propôs a igualdade entre os homens e o amor ao próximo como conduta, na contramão de tudo quanto pensavam gregos, egípcios, persas, romanos e até mesmo os judeus. E, no entanto, passou a ser reconhecido como Deus entre certos humanos que, no início, eram vistos como esquisitos. Os últimos serão os primeiros e os primeiros, os últimos, o que, por si só, parece incompreensível, posto que aquele que chega a ser primeiro depois de ter sido o último poderia voltar a ser o último, por ter chegado a ser primeiro.
A mensagem de Cristo era absurda quando medida pelos valores de então e mesmo de depois. Tertuliano de Cartago (século 2º D.C.) e Agostinho de Hipona (século 5º D.C.) repetiam para quem os ouvisse: “Credo quia absurdum” (Acredito porque é absurdo).O fato é que a mensagem cristã “pegou”,alastrou-se e foi transformando mentalidades e instituições. O processo não é uma seta com trajetória firme. Seguiu carregado de idas e vindas, de avanços e recuos. A liberdade (ação do espírito) se mescla à imposição de controles, pela geografia e história.
A questão da escravidão é um desses casos. A ideia de que para Cristo não há desigualdades nem senhor nem escravo era incompreensível e repugnante para um romano. E continuou a ser até mesmo para cristãos que depois consagraram a liberdade, a igualdade e a fraternidade nas constituições, mas mantiveram o tráfico e o trabalho cativo até o século 19 ou, em certos bolsões, até hoje. A abolição teve de ser revogada até mesmo pelos muçulmanos, apesar de legitimada pelo Corão. E foi a Inglaterra, um país cristão, ainda que por motivos geopolíticos e comerciais, que obrigou o islam a abolir a escravidão.
Holland observa, também, que, ao pretender construir seu materialismo histórico, no qual os costumes e a moral não passam de superestruturas e a mais-valia não é mais do que o resultado consistente das relações de trabalho, Karl Marx deixa-se trair pelo uso de categorias que apontam para “exploração”, “escravização” ou “avareza” dos membros das classes dominantes sobre as dominadas.
Um romano jamais diria que explorava um escravo. Era propriedade sua, assim como ninguém diz hoje que um humano explora um cavalo ou um burro de carga.
Os iluministas como Voltaire e Diderot e até mesmo os que declararam a morte de Deus, como Nietzsche, adotam pontos de vistas cristãos para impor seu, observa Holland.
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