sábado, 10 de dezembro de 2022

AS HISTÓRIAS QUE RESTAM NESTA COPA Por Márvio dos Anjos*, Meio

 Bandeiras dobradas, camisas no cesto de roupa suja, goles de cerveja que descem menos macios do que de costume. Agora é a hora do desabafo do torcedor e da torcedora, frustrados em seus desejos de mais festa, mais confraternização. A Copa do Qatar se encerrou para o Brasil no estádio da Educação, em Doha, e é até difícil falar que houve lições a serem aprendidas. Porque é muito, muito difícil saber quais.

Depois de 118 minutos de amplo controle defensivo do Brasil, uma defesa que não foi nem um pouco ameaçada por Luka Modric e sua turma cedeu o que não podia. Num inexplicável contra-ataque rápido, parável principalmente no meio-campo, a bola chegou de Mislav Orsic, alcançou Bruno Petkovic. O camisa 16 chutou, auxiliado por um desvio no joelho de Marquinhos, um zagueiro que não merecia carimbar a trave na quarta cobrança de pênalti – aquela que encerrou os trabalhos, sem permitir que Neymar tivesse a oportunidade de cobrar o que seria o quinto, talvez não o último, ante uma Croácia que converteu todos os quatro chutes que deu. Antes, Rodrygo, que abriu as cobranças e tinha melhorado o Brasil ao entrar como ponta esquerda no lugar de Vini Jr, desperdiçara o seu.

A derrota é reflexiva. Vasculharemos tudo que essa seleção fez de errado, uns com mais, outros com menos lealdade. O gesto de Tite, indo ao vestiário assim que as cobranças se encerraram, será esquadrinhado como aquilo que nunca se viu e soará como uma das culpas da derrota. Talvez seja mais difícil enxergar o brilho do goleiro Dominik Livakovic, 27 anos, que viu o Brasil acertar a direção de 11 de 19 chutes e só permitiu a entrada de um, quando Neymar simplesmente o driblou e chutou alto, após receber o passe de Lucas Paquetá. Um Neymar que, com esse gol, igualou os 77 gols que Pelé marcou contra seleções. Mas jamais imitará o gesto de ocupar o pódio mais alto do futebol mundial.

Se Neymar confirmar que essa é a sua última Copa do Mundo, encerra-se uma era. Sim, porque Neymar foi uma era na seleção brasileira desde 2010, quando se cogitou, pela primeira vez, que o menino do Santos pudesse ser levado por Dunga para a disputa da Copa do Mundo na África do Sul. O postulante brasileiro a suceder Lionel Messi e Cristiano Ronaldo como maior do mundo sucumbiu (in)justamente ao time de Luka Modric, o meia criativo com traços de Deborah Colker no rosto, o cara que conseguiu aproveitar o vácuo da Copa do Mundo de 2018, em que nenhum jogador se destacou tanto assim, e abocanhou o prêmio da Fifa e outros mais.

O que mais dói é perder essa atmosfera, esse grande parque de diversões mental, que bloqueia os dutos do noticiário e suaviza até mesmo as importunações do trabalho. As crianças, tadinhas, serão salvas daqui a pouco por Papai Noel. Nós, os adultos que atravessamos o inesquecível Rubicão do 7 a 1 e só queríamos um pouco mais de ópio do povo, não; teremos que viver a realidade de um mundo em que alguma magia é emprestada por esse grande Concerto das Nações que, realizado no deserto qatariano, nos legou apenas areia, politização do irrelevante e uma passagem de bastão entre ídolos que não viraram heróis. Saem Thiago Silva (por idade) e Daniel Alves (idem). Neymar ainda não se decidiu. Ficam Marquinhos, Casemiro, Vini Junior, Rodrygo, Antony, Raphinha e Gabriel Martinelli, na mais estonteante geração de pontas que o Brasil apresenta desde Garrincha, Zagallo e Joel. Tite deixa a seleção com uma Copa América de 2019, um vice na mesma competição em 2021 e um trabalho que não começará do zero para quem quer que venha a ser seu sucessor.

Mas ainda há Copa para alguns. A Argentina bateu a Holanda num jogaço que chegou a estar 2 a 0 para os vizinhos. A Holanda buscou, levou para a prorrogação numa jogada ensaiada — e a Argentina ainda botou uma na trave no final. A disputa, que quase descambou para cenas lamentáveis umas três vezes, foi para os pênaltis. Messi foi o primeiro bater. Converteu. O goleiro argentino Emiliano Martínez pegou dois. Argentina é semifinalista. Lidemos com isso.

Neste sábado, chegamos àquele momento em que o futebol recria batalhas por meio daqueles que mal as estudaram. França e Inglaterra reencenam a Guerra dos Cem Anos, num confronto em que Kylian Mbappé, o mais entusiástico candidato a melhor jogador da Copa, enfrentará a mais interessante geração de jogadores ingleses. Os jornais da terra do rei Charles III se debruçaram, tática e liricamente, sobre a tarefa de como parar o fulgurante artilheiro do Paris Saint-Germain. Dono de uma arrancada comparada a de gente como Ronaldo Fenômeno e Jairzinho, Mbappé chega a essa quarta de final numa equipe favorita. Mas não será rei da França se não for rei da Inglaterra, invertendo o que Henrique V dizia na peça de Shakespeare, antes da vitória em Agincourt, disputada em 1415.

Ser rei da Inglaterra, nesta acepção, será passar pelo produto que mais evoluiu com a Premier League, a organização fundada em 1992 que transformou o Campeonato Inglês de futebol na competição anual mais lucrativa do mundo. Repleta de craques, essa seleção aprendeu a correr certo, aprendeu a dibrar e a formar jogadores com enorme repertório na sua base. Nesse caso, estamos falando de Phil Foden (Manchester City), Jude Bellingham (Borussia Dortmund) e Bukayo Saka (Arsenal), a mais nova geração a tentar levar o futebol “de volta para casa”. O principal astro é Harry Kane, centroavante habilidoso do Tottenham Hotspur, que terá vida dificílima diante da marcação de Dayot Upamecano (Bayern München) e Varane (Manchester United).

Na outra partida, portugueses e marroquinos acertam as contas da lendária batalha de Alcácer-Quibir, à qual o rei Dom Sebastião se lançou em 1578 para nunca mais voltar — a não ser como criador do sebastianismo, essa palavra que tomamos emprestada sempre que esperamos o retorno de um grande salvador da pátria. A nobreza portuguesa foi destruída, encerrou a dinastia de Avis (nenhuma relação com a locadora de carros) e custou a Portugal 60 anos de independência. Gerou ainda uma ópera do italiano Gaetano Donizetti, que só os mais estudiosos do gênero são capazes de assoviar.

Trata-se também de um Portugal questionando seu monarca. Depois de ter manifestado desgosto em público por ser substituído, Cristiano Ronaldo foi sacado da última partida e não fez falta alguma no time de Fernando Santos, esse senhor de corpo fechado em paletó amarrotado. Gonçalo Ramos entrou, fez três gols na Suíça, o placar foi fechado em 6 a 1, Portugal assombrou o mundo e pode estar realmente credenciado a ser campeão do mundo — caso passe pelos marroquinos.

Os magrebinos liderados por Ziyech e Brahim Hakimi tentam aquilo que nenhuma equipe africana conseguiu: chegar às semifinais do Mundial. Camarões perdeu para a Inglaterra (3 a 2) em 1990, Senegal se despediu na antiga regra da morte súbita contra a Turquia, num fatídico gol de ouro de Ilhan Mansiz, e Gana caiu nos pênaltis ante o Uruguai em 2010. Chegam até aqui apresentando uma das defesas mais ferozes da Copa do Mundo e credenciados pela eliminação da Espanha, nas oitavas, e da Bélgica, na fase de grupos. A Copa do Mundo continua, graças a Deus. Nós é que não temos mais nenhuma história para contar, até que a CBF anuncie o sucessor de Tite, uma nova história, outras camisas de diferentes tons de amarelo, e o palco se reabra na América do Norte, à espera de 48 seleções e um planeta de sonhos.

*Márvio dos Anjos é jornalista e crítico musical. É head de Relações Institucionais da OneFan. Foi repórter na “Folha de S.Paulo”, editor no “Jornal do Brasil”, “Destak Brasil” e “O Globo”, onde chefiou a editoria de Esportes. Apresenta o podcast “Deus te Ouça”, na Folha, e escreve para “O Globo” e “The Times”. Na Copa do Qatar, apresenta o #MesaDoMeio Especial Copa, com Pedro Doria e David Butter, no canal do Meio no YouTube.



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