Estamos metidos numa enrascada. Dados comprovam sem margem para dúvida que temos o governo com pior desempenho no enfrentamento da Covid. Todos sabemos, porém, que fatos, números, veracidade e coerência não valem mais nada neste país.
Se valessem, Jair Bolsonaro não ficaria impune mentindo a torto e a direito sobre a “gripezinha” que matou mais de 220 mil no Brasil e 2,2 milhões no mundo. O médico (!) e deputado Osmar Terra (MDB-RS), que previu 800 óbitos por Covid, já estaria cassado ou banido da classe por pouca vergonha.
Só resta aos desconsolados iluministas repisar as evidências. Não há como renunciar à esperança de que a repetição abra fissuras no monumento de desfaçatez no Planalto ainda escorado pelo oportunismo de parlamentares venais e empresários imorais.
Edvaldo Braga (dir.) observa enquanto trabalhadores municipais de saúde examinam o corpo de sua mãe Lacy Braga de Oliveira, que morreu em casa aos 84 anos, em meio à pandemia, em Manaus12.jan.2021 - Bruno Kelly - /Reuters
Nem seria preciso ir até à coleção de dados para enxergar que temos 10% das mortes mundiais, proporção evidente na coincidência numérica (220 mil/2,2 milhões) de três parágrafos atrás. Só abrigamos 2,7% da população do planeta, nunca é demais reiterar.
Continuando com as mortes ponderadas pela população: o Brasil não é ainda líder nesse campeonato de óbitos corridos. Suas 1.042 vítimas por milhão de habitantes o deixam em melhor posição que vários países desenvolvidos, como Reino Unido (1.522), Itália (1.445) e EUA (1.308).
Não será surpresa se os atropelarmos antes do apito final na pandemia (se é que haverá). O número de casos novos já cai de modo acentuado nos EUA, e o de mortes em breve recuará também por lá.
No Brasil, os casos registrados estão em alta acelerada. Somam 8,9% do total mundial, proporção menor que a de vítimas fatais. De duas, uma: ou nossa letalidade está acima da média de todas as nações, ou não identificamos todos os doentes com Covid. Ou, pior ainda, as duas coisas.
Assim como nunca fizemos lockdown, nem distanciamento social decente, nem rastreamento e isolamento de infectados, jamais testamos em quantidade suficiente para afastar o espectro da subnotificação. Nosso escore está em 110 testes por mil habitantes, contra 978 no Reino Unido, 857 nos EUA e 518 na Itália.
O governo federal capitaneado por Bolsonaro apostou tudo na charlatanice do “tratamento precoce” com cloroquina e quejandos, até que o governador paulista, João Doria (PSDB), lhe aplicou um rabo de arraia com a Coronavac. Agora, o presidente se declara sem vergonha amigo do Zé Gotinha desde criança.
O ritmo da imunização sob tal comando é piada de mau gosto equivalente à sua preferência sobre o que fazer com leite condensado. Em duas semanas, mal chegamos a vacinar 1% dos habitantes. Para comparação: Israel 53%, Reino Unido 12%, EUA 8%, Itália 3%.
Na sexta-feira (29) a Janssen anunciou vacina de dose única e refrigeração usual (2ºC a 8ºC) com 66% de eficácia para prevenir casos moderados e graves na América Latina e 72% nos EUA. A farmacêutica projeta fabricar 1 bilhão de doses por ano e já conta com acordos para fornecer 1,25 bilhão de unidades —nenhuma, até agora, para o Brasil.
Não temos vacina nem para metade dos brasileiros. Você que votou em Bolsonaro, ainda lhe dá apoio e acha inoportuno o impeachment sabe bem quem tem culpa pelo risco de o país virar uma imensa Manaus.
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Marcelo Leite
Jornalista especializado em ciência e ambiente, autor de “Ciência - Use com Cuidado”.
Deu-se um fenômeno raro na história do capitalismo. Em poucos dias descobriu-se que eventuais compradores não queriam entrar no projeto e que o eventual vendedor também não estava oferecendo a mercadoria.
Na segunda-feira (25), a repórter Julia Chaib mostrou a girafa, informando, desde logo, que pelo menos seis das empresas listadas já haviam se dissociado da iniciativa. Se a Ambev, a Vale, o Itaú, o Santander, a JBS e a Vivo não queriam entrar no negócio, algo havia esquisito nele. Nos dias seguintes, 9 das 12 empresas listadas haviam saltado.
A proposta viria do fundo BlackRock, a quem foi dirigida a carta do governo. O presidente-executivo da empresa no Brasil, Carlos Takahashi, detonou a mentira para os repórteres Vera Brandimarte e Francisco Goes: “Isso é ficção, se estão usando o nome da BlackRock, é fraude. (...) Nunca tivemos nada a ver com isso e não conhecemos essas empresas e essas pessoas que estão usando o nome da BlackRock. (...) Estes rumores são completamente falsos. Autoridades em todo o mundo já alertaram para esquemas relacionados com a suposta comercialização de vacinas, e é importante que as empresas e os governos se mantenham vigilantes”.
O vexame foi produzido pela opção preferencial de um governo disfuncional, que vai da marquetagem à fantasia e dela às fake news sem qualquer constrangimento.
FALA O SANITARISTA GUEDES
Na terça-feira (26), quando já se esfumaçara o consórcio de empresas que enfeitavam a girafa das vacinas privatizadas, Bolsonaro e seu ministro da Economia discutiram a ideia numa palestra para convidados do Credit Suisse. Por que ambos foram discutir uma crise sanitária num banco, só eles sabem. No evento, Paulo Guedes foi matemático: “Para cada funcionário vacinado a empresa tem que entregar uma vacina para o SUS. Não é fura-fila. É uma volta segura ao trabalho. E quem está desempregado, como fica? Vai pegar as doses que forem para o SUS. É evidente que isso é muito bom”, explicou Paulo Guedes.
O Brasil é uma baleia ferida que foi arpoada várias vezes, foi sangrando e parou de se mover. Precisamos retirar os arpões, afirmou em junho durante uma audiência pública na CâmaraAdriano Machado - 2.jan.19/Reuters
Guedes sustentou que era “evidente” a virtude de uma partilha segundo a qual as empresas do consórcio ficariam com 50% das vacinas. Não era evidente, pois, na quinta-feira (28), uma tentativa de ressuscitar a ideia trabalhava com outro modelo, no qual o SUS ficaria com dois terços das vacinas, indo o terço restante para as empresas. Se um papeleiro de um banco onde Guedes trabalhou perder, em 48 horas, 16% do ativo que negocia, vai para a rua.
Para efeito de raciocínio, admita-se que a ideia deva ser discutida. Isso pode ser feito de forma clara e competente, longe do escurinho dos palácios. As dúvidas que levaram grandes empresas a fugir do modelo que foi posto em circulação ainda não foram respondidas. Por que uma vacina de US$ 5,25 será comprada por US$ 23,79?
Ideia do consórcio para compra de vacinas tem digital da Gerdau e de Skaf
Desde o início da pandemia, inúmeras empresas estão ajudando
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A ideia do consórcio poderia ter saído de uma equipe de burocratas qualificados, advogados competentes e, com algum luxo, pelo menos um sanitarista, mas na sua primeira versão, apareceram no lance as digitais de diretores das indústrias Gerdau, o onipresente Paulo Skaf, presidente da Fiesp.
A metalúrgica se mete em política desde 1974, quando, corajosamente, o patriarca Jorge Gerdau ajudou a campanha ao Senado do oposicionista Paulo Brossard e encrencou-se com o Serviço Nacional de Informações. Naquela ocasião, Gerdau explicou-se ao SNI. Mostrou que sua ajuda ao candidato do governo havia sido muito maior e procurou assegurar “a confiança que sempre mereceu da presidência”. Não a tinha, mas essa é outra história.
A primeira a receber a vacina foi a enfermeira Juliana Regina Campana, de 35 anos, 13 deles trabalhando no HC. Em férias, ela se voluntariou à força-tarefa de imunização dos demais funcionários do complexo hospitalar.Danilo Verpa/Folhapress
Na terça-feira (26), depois de passar pelo Palácio do Planalto, Paulo Skaf disse que não participou da primeira operação, mas está pronto para ajudar “naquilo que for necessário”.
Santas palavras. Desde o início da pandemia, inúmeras empresas estão ajudando. O banco BTG, por exemplo, socorreu o Hospital das Clínicas de São Paulo, e uma franquia da Dominó mandou cerca de 30 pizzas para um hospital público do centro do Rio. Em abril, o Itaú Unibanco estourou o teto da filantropia nacional reservando R$ 1 bilhão para iniciativas de combate à Covid, a ser gerido por um conselho independente. Esse dinheiro irrigou dezenas de iniciativas, e R$ 100 milhões financiaram a produção de vacinas do Instituto Butantan e da Fiocruz. O projeto recebeu mais R$ 300 milhões com a adesão de empresas e pessoas físicas. Contrapartida? Zero.
Em março de 2019, o capitão Bolsonaro mal tinha chegado ao palácio e começou uma negociação em torno do preço da energia gerada por Itaipu. Foi assinado um acordo, o presidente da estatal de energia paraguaia pediu demissão, começou uma investigação no Congresso e por pouco o governo não caiu. Em agosto, o acordo foi revogado. Havia gato na tuba, basta lembrar que o atravessador, vendo-se exposto, apressou-se em revelar que havia perdido seu celular.
Caíram o chanceler, o embaixador do Paraguai no Brasil e o presidente da estatal que acabara de ser nomeado.