O presidente Lula, na entrevista que deu ao UOL hoje, disse o seguinte. Abre aspas:
“A Suprema Corte não tem que se meter em tudo. Ela precisa pegar as coisas mais sérias sobre tudo o que diz respeito à Constituição e virar senhora da situação, mas não pode pegar qualquer coisa e ficar discutindo, porque aí começa a criar uma rivalidade que não é boa, a rivalidade entre quem manda, o Congresso ou a Suprema Corte.”
Lula está errado, mas vá. Está fazendo política. A opinião dele não tem nenhuma relevância nesse caso, o problema não passa pelo Poder Executivo, e ele precisa fazer política. Duas formas de política. Uma é que precisa acenar para um eleitorado mais conservador. Esse trabalho tem de ser feito e não só por Lula. É preciso desradicalizar o país e, olha, a esquerda pode se incomodar mas a desradicalização só vai acontecer com acenos ao público conservador, mesmo. E o presidente tem feito isso. Enfim tem feito. Em segundo, Lula precisa ficar acenando também para o Congresso, Câmara e Senado têm o Palácio do Planalto nas mãos. O presidente demorou a entender que as coisas não funcionam mais como era no tempo em que Michel Temer, Aécio Neves ou Henrique Eduardo Alves presidiam a Câmara. Claro, na época eram uma direita horrorosa, bando de neoliberais. Aí, já viu a diferença.
Então Lula está fazendo política, fazendo acenos e, na verdade, dando pitaco numa das raras áreas em que a opinião dele influi em muito pouco, mais provavelmente nada. Está aproveitando justamente isso, de que a opinião dele é irrelevante, pra marcar uns pontos ali com os deputados e senadores, criar uma boa vontade na próxima votação. Tudo certo. Mas, olha, isso não muda o fato de que a opinião está errada. A decisão do Supremo Tribunal Federal é, tipicamente, uma decisão de corte constitucional.
O que é uma democracia liberal moderna? O que é um Estado Democrático de Direito? A gente tem repetido essas expressões muito, não é? Um povo que vive em um determinado território, um grupo de concidadãos, se reúne e constitui um Estado Nacional. Como faz isso? Bem, as pessoas elegem seus representantes que formam uma Assembleia Nacional Constituinte. Uma assembleia de parlamentares eleitos que têm a missão de, seguindo as correntes de opinião presentes naquela sociedade, redigir um documento que constitui esse Estado. Este documento terá três tipos de conteúdo. Acima de tudo, os direitos individuais. Os direitos de cada cidadão. Aí, na sequência, a organização do Estado. Como se estruturam os três poderes, quais os tempos de mandato, como cada um poder limita os outros dois. E, por fim, a parte menos importante que é a das políticas de Estado. É menos importante porque poderia ser feito por lei ordinária. Não precisaria estar junto com as outras coisas. Só por isso. Este documento não se chama Constituição à toa. É o que constitui, é o que cria, que dá forma ao Estado Nacional.
Existem alguns traços que fazem de um Estado uma democracia liberal. De novo: um Estado Democrático de Direito. É a mesma coisa, tá? Uma democracia liberal forma, necessariamente, um Estado Democrático de Direito. E aí, um dos traços essenciais, talvez o mais importante de todos, é a ideia de que todos os cidadãos são iguais perante a lei. Se na Constituição de um país cidadãos de grupos distintos estiverem sob regras diferentes, se houver gente que pode mais do que outras gentes, aquele país não é mais uma democracia liberal. É outra coisa.
O caso da maconha, que o Supremo Tribunal Federal julgou, trata essencialmente disso. Da garantia de que todos os cidadãos serão tratados de forma igual perante a lei. É isto, fundamentalmente, o que estava sendo julgado. E este é talvez o drama brasileiro essencial. A Constituição que temos é de uma democracia liberal. Está escrito lá. Artigo 5º, que é o dos direitos fundamentais, item 1. “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.”
A gente tem uma Constituição de democracia liberal no seu mais básico, no essencial. Mas a gente não tem um Estado que age como se isso fosse verdade.
Se este é o direito constitucional mais básico, garantir que todo mundo vai ser tratado da mesma forma, não tem pauta mais importante para a corte constitucional entrar. Os ministros do Supremo estavam corretíssimos. O julgamento da maconha trata disso.
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
A edição especial do Meio, do último sábado, é um choque de realidade. Tem uma entrevista com Luciana Temer, advogada, e uma das pessoas que melhor conhecem o retrato da violência sexual no Brasil. A violência sexual contra mulher, no nosso país, é principalmente violência contra meninas. Mais de metade dos estupros registrados é contra meninas com menos de 13 anos. Mais da metade. E este número está subindo a cada ano. Segundo o Atlas da Violência, 80% dos estupros no Brasil são contra menores de 14 anos. Mais de 70% dos estupros acontecem em casa.
Esses números são públicos mas levantam pouca atenção. Sabe, nosso trabalho, por aqui, é trazer fatos, dados, análise num universo onde há desinformação demais. O Meio é importante para você? Faz parte da maneira como você se informa, compreende o mundo? Assine. Ajude a nos manter de pé. Cidadania inclui ajudar a financiar o bom jornalismo.
E este aqui? Este é o Ponto de Partida.
Isso fica claro no voto do ministro Alexandre de Moraes. Ele não entrou no mérito de se maconha deve ser legal ou não. Isso é para o Congresso decidir. O que ele fez foi buscar um estudo da Associação Brasileira de Jurimetria, que foi lá ver como as pessoas são condenadas por um determinado tipo de crime, no Brasil. Descobriu o seguinte: pessoas com a mesma quantidade de maconha são condenadas a penas diferentes de acordo com o local em que são detidas pela polícia, sua classe social e nível de escolaridade.
A Lei das Drogas, aprovada pelo Congresso Nacional, já diz que consumidor e traficante são diferentes. O Supremo não inventou essa diferença. É a lei que diz. O problema é o seguinte: qual a diferença entre o traficante e o usuário? Não importa qual é a regra, mas importa que exija uma mesma regra que valha pra todo mundo.
Olha aqui: uma pessoa branca, para ser considerada traficante pela polícia e pela Justiça no Brasil, tem que ter 80% a mais de droga do que uma pessoa negra.
Isso não é discurso identitarista. Não é discurso de esquerda. Isto é um fato matemático. Pega todos os casos de pessoas que são detidas com maconha, todos os julgamentos, separa de um lado as que foram condenadas, do outro as que não foram. Aí vê quem é branco, quem é negro, e faz a conta de quanta maconha você precisa para ser considerado traficante se você é branco ou se é negro.
Não pode.
O Supremo decidiu que uma pessoa que tiver até 40 gramas de maconha consigo, ou até seis plantas fêmeas em casa, tem de ser considerada usuária. Mais do que isso, é traficante. Ponto final. O critério é objetivo e tem de ser aplicado a todo mundo. Possivelmente, e alguns ministros disseram isso, não devia ser o Supremo a definir qual é a diferença. Aliás, não devia nem ser o Congresso. Deveria ser um órgão técnico, o mais indicado seria a Anvisa.
Mas aí volta o problema constitucional essencial. O Supremo ordena que a Anvisa decide. E se não decidir? E se enrolar? E se demorar? A cada dia mais gente pobre vai sendo presa. Então precisa de algum tipo de definição porque a lei já disse que traficante e usuários são diferentes. Logo, se não tem um critério objetivo e claro para diferenciar um do outro, ficamos com um tipo de cidadão que tem mais direitos do que outro tipo de cidadão. Numa democracia, não pode.
Agora, a gente precisa aprender a explicar isso bem. Sabe por quê? Porque as maiores vítimas são as pessoas que moram nas grandes periferias urbanas. Os rapazes que em geral são filhos de mães e pais evangélicos que são, também, conservadores. Que vivem angustiados com a falta de oportunidades que seus filhos têm. E os filhos são jovens. São adolescentes ou jovens. Quando não são seus filhos, são filhos de vizinhos queridos, são sobrinhos, são sobrinhos de amigos.
As pessoas vivem no mundo real. É preciso saber como construir o discurso porque gente que vive no mundo real é sensível, sabe onde dói o calo. As pessoas sabem compreender quando existe uma injustiça. Quando duas pessoas que fazem o mesmo são tratadas com regras diferentes. Foi exatamente assim com a Lei do Aborto, ou Lei do Estupro. O problema não tem nada a ver com ser a favor ou contra aborto, tem a ver com ser uma baita injustiça com meninas, são quase sempre meninas, que se veem num momento de muita dor, de muita dificuldade, e precisam tomar com suas famílias uma decisão dificílima.
As pessoas entendem isso. Só precisamos, os democratas, ter a capacidade de explicar sem ficar dando discurso moralista. Sem tratar gente diferente como se fosse inferior, como se fosse um bando de fanático, como se fossem insensíveis. Precisamos aprender a conversar com quem é diferente. Com quem pensa diferente.
A direita radicalizada fica dizendo que o Supremo se mete num assunto do Congresso. A garantia de que todo brasileiro será tratado da mesma maneira pelo Estado não é assunto do Congresso. É assunto do Supremo Tribunal Federal. Aliás, é o assunto mais importante do qual o Supremo Tribunal Federal tem a obrigação de cuidar.
Afinal de contas, é isso que faz com que sejamos uma democracia de verdade.