terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Entre a gentileza e a hostilidade, FSP

Arícia Fernandes

Professora da UERJ, é coordenadora do núcleo de estudos do Direito da Cidade e procuradora do município do Rio de Janeiro

Inês Virgínia Soares

Doutora em direito, é desembargadora no TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região)

Luciana Ortiz

Juíza federal, é integrante do Comitê PopRuaJud do CNJ (Conselho Nacional de Justiça)

A poucos dias para o fim do mandato, o presidente Jair Bolsonaro (PL) vetou projeto conhecido como Lei Padre Júlio Lancellotti, que proíbe a instalação de materiais e estruturas ou a construção de intervenções urbanas que dificultem a presença de pessoas em situação de rua em locais públicos. O veto foi rapidamente derrubado pelo Congresso e, finalmente, o Brasil tem uma lei que estabelece a promoção de medidas acolhedoras e inclusivas como diretriz geral da política urbana.

O veto expôs, mais uma vez, a indiferença do Executivo federal em relação à adoção de políticas públicas destinadas à população em situação de rua. Desde maio de 2022, tramita no Supremo Tribunal Federal ação contra a omissão estatal em relação ao estado de coisas inconstitucional no que diz respeito a essa população (ADPF 976). Uma das medidas pedidas nessa ação é a determinação judicial para que o Estado lato sensu não tolere a adoção da arquitetura hostil na concretização do direito fundamental às cidades sustentáveis.

Padre Julio Lancellotti
Padre Júlio Lancellotti em viaduto paulistano - Henrique de Campos - 2.fev.2021/Divulgação

Os que apresentaram argumentos contra a lei agora aprovada destacaram que a expressão "técnicas construtivas hostis" é imprecisa, que geraria insegurança jurídica. Porém, qualquer cidadão cansado, que tente se reclinar sobre um banco de praça pública, inclinado de maneira vertiginosa, perceberá em pouco tempo a sensação de desconforto que o mobiliário provoca e compreenderá, além de qualquer dúvida razoável, o que é um equipamento urbano hostil.

Cadeiras de ferro nas quais não se consegue repousar, tampouco que se podem mover de lugar; artefatos pontiagudos que impedem o pernoite sob o acolhimento improvisado de um viaduto; gotas d’água intermitentes, propositalmente jorradas de vasos em reúso nas marquises que servem de abrigo; extração de tomadas de estações de metrô e rodoviárias para evitar que pessoas recarreguem suas tornozeleiras eletrônicas; e difusão de música atonal em estações de metrô para evitar longa permanência da população de rua são exemplos de gestão urbana hostil.

Paradoxalmente, praças, calçadas, praias, vãos abaixo dos viadutos, dentre outros bens de uso comum do povo, não são locais para os que não têm onde morar. O incômodo com a ocupação de espaços públicos por pessoas em situação de rua reflete o olhar de que é uma população que precisa ser esquecida ou apartada em guetos não visíveis e distantes do convívio social, como uma punição. Na balança da desigualdade brasileira, o veto presidencial se conformava à política pública higienista que, baseada no uso de subterfúgios e silêncios jurídicos, ainda enverniza o planejamento urbano brasileiro.

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O Estado tem de acolher a pessoa em situação de rua —e criar alternativas de moradia, de tratamento in loco e de adoção de novos projetos de vida, seja onde for—, não expulsá-la, hostilizá-la, torturá-la, bani-la, exilá-la, vetá-la da cidade. Esse dever de acolhimento é constitucional e também internacional, previsto em diversos documentos, inclusive na Agenda 2030 da ONU.

viver em situação de rua, ocupando espaços para a sobrevivência, é um átimo de cidadania que restou de quem perdeu acesso aos direitos que asseguram o mínimo existencial. É inaceitável a criação de barreiras físicas e de violência institucional para apartar, dos olhos da sociedade, quem precisamos reconhecer, gentilmente acolher e conferir direitos.

 

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