sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Demétrio Magnoli - Cheque do Presidente, FSP

 


"Bolsa esmola" –era assim que, 20 anos atrás, Lula qualificava o programa Bolsa Escola de FHC. Depois, no poder, o tal "bolsa esmola" tornou-se o Bolsa Família, até Bolsonaro transformá-lo no Auxílio Brasil, que agora recupera o rótulo de identificação lulista. Sugiro, no lugar disso, um rebranding definitivo: Cheque do Presidente. A operação publicitária justifica-se duplamente: no campo do marketing, estabiliza a imagem de marca; no das políticas públicas, garante transparência de objetivos.

O Lula oposicionista de 2002 não criticava os valores do Bolsa Escola mas o conceito de transferência direta de renda, inspirado nas propostas de combate à pobreza do Banco Mundial. A conversão ideológica do Lula presidente assinalou, ao lado do abandono das ambições petistas de reforma econômica estrutural, a descoberta de uma mina de ouro eleitoral. De larva a borboleta: assinando o cheque, o líder dos trabalhadores metamorfoseava-se em pai dos pobres.

O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva no CCBB, sede do governo de transição - Pedro Ladeira/Folhapress

A pobreza extrema declinou sem parar entre 2003 (12,6%, segundo o Banco Mundial) e 2014 (3,3%). No percurso, o Bolsa Família desempenhou papel significativo, mas não determinante. O fenômeno da redução da pobreza verificou-se nos mais diversos países em desenvolvimento, da China à Turquia e do México ao Peru, sem vultosos programas de transferência de renda. O longo ciclo internacional marcado por fluxos abundantes de investimentos e valorização das commodities fazia o serviço.

Mas um cheque é um cheque. Lula nunca incrustou o programa de transferência de renda no rochedo da Constituição, evitando conferir-lhe o estatuto de política de Estado. O cheque do presidente deveria ser uma benesse de governo. "Meu adversário, que odeia os pobres, terminará o Bolsa Família" –a ameaça assombrou as disputas eleitorais de 2006, 2010 e 2014. No ano mais difícil, quando Dilma Rousseff disputava a reeleição, o valor real do cheque atingiu o ápice: R$ 245,10. Sob o lulismo, o Bolsa Família tornou-se sinônimo de política social.

Bolsonaro aprendeu a executar a mágica, mas de modo desajeitado. Na pandemia, criou o auxílio emergencial; no ano eleitoral, o Auxílio Brasil de R$ 600. A ação tardia, interrompida em 2021, obteve efeitos eleitorais limitados. Serviu, porém, para expor as entranhas perversas do mecanismo fabricado pelo lulismo: cada novo governo precisa elevar o valor do cheque que chega a mais de 21 milhões de famílias. Lula escolheu R$ 600 para empatar com Bolsonaro –e o suplemento de R$ 150 por filho pequeno para derrotá-lo. O número escrito no cheque deriva de imperativos de concorrência política, não de um cálculo de eficiência na alocação de recursos públicos.

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Programas de transferência de renda aliviam temporariamente a pobreza –e ocultam suas raízes profundas. A depressão econômica gerada pela folia dilmista levou a pobreza extrema a 5,3% em 2018, mas o auxílio emergencial a comprimiu à menor taxa histórica, em 2020, no auge da pandemia (1,9%). Em 2021, sem o auxílio, a taxa saltou a 8,4% –e certamente experimentará forte redução em 2022, assegurada pelos R$ 600. O cheque faz milagres efêmeros.

As raízes da miséria só podem ser erradicadas por políticas econômicas responsáveis e políticas sociais universalistas. As primeiras dinamizam o mercado de trabalho, elevando os salários. As segundas ampliam a oferta de bens públicos de qualidade (educação, saúde, saneamento, transportes) e impulsionam a reforma urbana (moradia em áreas centrais). Nada disso, contudo, tem o poder sedutor de um cheque assinado pelo presidente –ainda mais quando ele contém a senha do cofre do crédito consignado.

A PEC da Transição é o passaporte para Lula alcançar e ultrapassar Bolsonaro. Seu custo é o congelamento da pobreza estrutural, sempre disfarçada pelo Cheque do Presidente. "Uma mão lava a outra".

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