quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Conrado Hübner Mendes - O STF senta à mesa com empresários, FSP

 O Brasil, sozinho, tem 98% de todas as ações trabalhistas do mundo. Ministros do STF folgam 98% do tempo. Bancos financiam 98% das viagens de ministros do STF ao exterior. Ministros do STF são 98% técnica, 2% família. 98% dos brasileiros apoiam Alexandre de Moraes para a Presidência. 98% dos militares respeitam a lei e não acreditam ter última palavra na interpretação constitucional.

Essas frases falsas dariam boas manchetes na política do pânico e circo. Na democracia com déficit de atenção, a desinformação verossímil se espalha com mais força e facilidade do que a mentira voando abaixo do radar da verossimilhança. Ou talvez o contrário, a depender das inclinações de espírito da rede por onde navega.

Pois uma dessas frases foi dita por Luís Roberto Barroso, presidente do STF, anos atrás. Afirmou que o país tinha 98% das ações trabalhistas do mundo (do mundo) e prejulgou qualquer discordância: "Na vida devemos trabalhar com fatos, não escolhas ideológicas prévias." Sua frase, ironicamente, dizia mais sobre si mesmo do que sobre o mundo. Faltavam fatos, sobraram escolhas prévias. Falhava empiricamente e teoricamente.

Ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) participam da conferência Lide Brazil, em Nova York, nos Estados Unidos
Ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) participam da conferência Lide Brazil, em Nova York, nos Estados Unidos - Reproduçao - 14.nov.22/TV Lide no YouTube

Pronunciada numa palestra na Universidade de Oxford, em defesa da reforma trabalhista, cuja constitucionalidade viria a julgar depois, a frase não passou despercebida, nem foi inofensiva.

No relatório do senador Ricardo Ferraço, que defendeu a aprovação do projeto de lei, a frase foi citada como fundamento. O conteúdo da fala ajudava, mas foi ainda mais importante quem a enunciava. Barroso deu ao legislador um conforto constitucional, esse pré-juízo de constitucionalidade sobre a lei. Foi mais um sopro de apoio à reforma.

O episódio emblemático ilustra como ministros do STF têm participado, dentro e fora dos autos, na diluição dos direitos do trabalhador. Muitos foram defensores incondicionais de qualquer mudança sob a alcunha de "reforma trabalhista". Em algumas ações do STF, foram mais longe que a própria reforma e deixaram precarizar o que nem o legislador precarizou. Até elogios não solicitados à reforma foram redigidos nos votos.

Na pesquisa "STF como Justiça Política do Capital", Grijalbo Coutinho descreveu a transição do STF de "tribunal moderado-garantista" (1990 a 2006), que priorizou, por exemplo, o legislado sobre o negociado e bloqueou tentativas de terceirização de atividade-fim, a "tribunal ativista-conservador" (a partir de 2007), que autorizou terceirização generalizada, aceitou formas contratuais precárias e desarticulou fontes de custeio da atividade sindical.

Outros estudos apontam como o STF se deixou levar pelo ideário econômico que vê na proteção ao trabalhador um custo de produção, e aceita reduzir o direito do trabalho a contrato privado. Nessa relação, o trabalhador seria livre para se deixar explorar. Uma ideia pré-constitucional. Essa onda jurisprudencial ecoa a Era Lochner da Suprema Corte americana que, nos anos 1920, enxergou no regime de 18 horas diárias de trabalho nas padarias apenas liberdade dos padeiros.

Quando observamos o hábito normalizado de ministros de cortes superiores frequentarem eventos do Grupo Lide, Grupo Esfera, Fiesp, IDP ou qualquer grupo que cultive a alergia ao direito do trabalho, não surpreende que saiam convencidos de que o sofrimento a ser priorizado pelo juiz constitucional é o sofrimento do empresário. Ao se permitirem esse tipo de encontro exclusivo, também nos autorizam esse tipo de desconfiança.

Está na pauta do STF de 8 de fevereiro o julgamento de ação proposta pela Rappi Brasil. Decisões de tribunais regionais do trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho reconheceram vínculo empregatício na relação de trabalhadores de aplicativos de intermediação. Para a empresa, há apenas um "motociclista parceiro" livre para trabalhar. Por isso pede ao STF que deixe essa bonita relação contratual livre do direito do trabalho.

Pode ser o tiro último e definitivo num edifício de proteção ao trabalhador construído durante quase um século. Um pacto que merece ajuste e aperfeiçoamento, não extinção.

Village, dos bolos e panetones, pede recuperação judicial, FSP

 A Village Cepam Indústria de Chocolates e a Cepam Comércio de Alimentos entraram com pedido de recuperação judicial no último dia 23, com dívidas que somam R$ 73,4 milhões. Ambas com sede em São Paulo, as empresas pertencem às famílias que fundaram a Cepam em 1968 e a Village em 1973.

A Village é uma das mais populares fabricantes de bolos, biscoitos e panetones do país, que até 2022 também produzia ovos de Páscoa, enquanto a Cepam, famosa padaria da zona leste paulistana, já foi apontada como a maior da América do Sul, com 2.500 m², espaço que também abriga um amplo restaurante. Juntas, empregam cerca de 600 pessoas.

O pedido de recuperação judicial foi feito pelo escritório Otto Gübel Sociedade de Advogados. Nesta terça (30), o juiz Paulo Furtado de Oliveira Filho, da 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do TJ-SP (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo), requereu alguns documentos, como o relatório de fluxo de caixa e os valores demandados nas ações trabalhistas, que devem ser entregues em 15 dias.

Fachada espelhada de edifício em que se lê Cepam em uma placa vermelha
Fachada da padaria Cepam, na rua Ibitirama, zona leste de São Paulo: fundada em 1968, padaria e fábrica Village somam dívidas de R$ 73,4 milhões. - Raquel Cunha/Folhapress

Na petição, a defesa da Village argumentou que a recuperação judicial é consequência da pandemia de Covid-19 que comprometeu a operação da empresa desde 2020. Até então, informa o advogado Otto Willy Gübel, a empresa não dependia de empréstimos bancários para operar.

"A pandemia do Covid-19 fez com que alguns empréstimos bancários tivessem que ser contraídos pelas requerentes, especialmente para manter seus funcionários ativos e cobrir os custos altíssimos da
operação", diz a defesa. "Como resultado dos intensos, mas infrutíferos empenhos, o cenário econômico-financeiro da Cepam e da Village Cepam se agravaram vertiginosamente a ponto de ter que procurar, no mercado, o socorro necessário", informa o texto.

A própria defesa revela, no entanto, que a operação da Cepam durante a pandemia foi destaque: a padaria foi a loja única (sem ser franquia ou rede) que mais vendeu no aplicativo iFood em abril, maio e junho de 2020, com uma média de 1.000 a 1.100 entregas por dia. A empresa, porém, reclama das altas taxas cobradas por aplicativos de delivery, além de revelar que contratou 50 motoboys para atender os pedidos na fase mais aguda da pandemia.

"As requerentes se reinventaram através da adesão aos serviços e aplicativos de entrega, algo que antes não lhes era comum, pois as entregas eram sempre pontuais e realizadas pelo carro próprio. Evidente que tais aplicativos possibilitam um alcance muito maior na demanda, mas também exigem que uma margem alta seja 'consumida' para utilização da plataforma", diz a petição.

"Foram, repentinamente, contratados 50 motoboys, de um dia para a noite, sem, contudo, ter a certeza de que estavam tomando a correta decisão, na medida em que tudo ainda era muito incerto quanto ao prazo que a situação duraria, a agressividade do vírus e a demanda versus oferta do mercado."

Caixa de panetone em que se lê Village, ao lado do panetone de frutas com fatia cortada
Panetone da marca Village, que tem uma faixa de preço intermediária. - Karime Xavier/Folhapress

Já a Village, que chegou a fabricar os ovos de Páscoa da Nestlé, informou ter sido duramente afetada com o fechamento dos estabelecimentos 19 dias antes da comemoração de 2020. "Foram centenas de milhares de devoluções de ovos de Páscoa realizadas pelas grandes redes de super e hipermercados de todos os produtos da Village, pois a devastadora maioria das entregas realizadas é na modalidade de consignação, o que gerou um prejuízo gravíssimo para as requerentes", diz a petição.

Em 2019, por exemplo, a Village tinha vendido R$ 32 milhões só na Páscoa. Em 2020, foram R$ 16 milhões.

Em entrevista à Folha em 2022, o então diretor comercial da Village, Reinaldo Bertagnon, afirmou que a empresa não iria produzir ovos de chocolate aquele ano, a primeira interrupção em 22 anos, por conta do aumento do preço dos insumos, especialmente de embalagens, que tornou a operação inviável.

Ainda assim, a empresa também informou, em 2022, que estava exportando panetones para o Japão. No ano, as exportações em geral responderam por cerca de um quinto do faturamento da Village, não revelado. A companhia também produz panetones para marcas próprias de redes de supermercados.

Foto em preto e branco de comércio em que se lê Padaria e Confeitaria Cepam
Fachada da padaria Cepam em reprodução sem data, quando ainda era panficadora e confeitaria de 60 m². Empresa foi fundada em 1968. - Raquel Cunha/Folhapress

Na Cepam, são produzidos diariamente cerca de 16 mil pães franceses e 11,2 mil produtos. Aos fins de semana, a padaria recebe aproximadamente 8.000 clientes. A empresa é responsável por kits de lanches de grandes hospitais, como o Albert Einstein, em São Paulo, além de fornecer pão de hambúrguer para a rede de lanchonetes Bob's, diz a petição.

Se o pedido de recuperação judicial for deferido, as companhias terão 60 dias para apresentar o plano e todas as ações contra elas estão suspensas por 180 dias. A Cepam já teve um pedido de falência distribuído no ano passado –fato que, segundo a defesa, despertou "gatilho" nos demais credores, que recorreram à Justiça.

Folha tentou contato com João Diogo, filho de um dos fundadores, Antônio Diogo, mas não obteve retorno até o fechamento deste texto. Parentes do outro fundador, Germano Amaro, também são sócias: Vilma Aparecida Blanco Amaro e Vera Lúcia Fiacomelli Amaro. Outra sócia é Hilda Amara Macarrão.

Roubaram meu telefone, mas parecia que tinham levado meu braço, Joanna Moura, FSP

 Talvez a informação lhe surpreenda, mas há realmente bastante roubo em Londres. Digo "bastante" sem nenhuma sustentação estatística, apenas com base na comparação entre a expectativa gerada quando se trata de um país rico como a Inglaterra, e a realidade encontrada quando se aterrissa por aqui. Entre os meus amigos próximos, por exemplo, poucos são os que não foram assaltados desde que se mudaram para a cidade. Com base no meu próprio Data Amigos, contabilizo entre os delitos mais comuns os roubos de celular, seguidos de carro e bicicleta.

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Na minha rua mesmo é comum sair pela manhã e encontrar pelo menos um carro estacionado com os vidros estilhaçados e cacos espalhados pelo chão. A cena é tão rotineira que há aqueles que adotam a tática do diálogo como tentativa de prevenção, apelando para a racionalidade dos bandidos, com bilhetes grudados nas janelas avisando: "não há nada de valor aqui, siga em frente".

Feliz ou infelizmente, não possuo nenhum meio de transporte para chamar de meu ou para um assaltante chamar de seu. Mas tenho convicção absoluta de que o roubo de qualquer um desses outros pertences não teria me causado nem um terço do sofrimento que senti quando me dei conta de que tinham levado meu celular.

É verdade que na última vez em que tive o telefone roubado, os assaltantes nem se fizeram perceber. Simplesmente pegaram o aparelho de dentro do meu bolso sem que eu nem me desse conta. Profissionalismo puro. Mas se não houve qualquer ameaça à minha integridade física, e sei que devo ser grata por isso, poucas coisas na vida me violentaram tanto quanto saber que o meu telefone estava nas mãos de um desconhecido.

Há tempos tento em vão ressignificar a minha relação com esse objeto inanimado, reconhecendo que nos últimos anos nossa convivência se tornou um tanto tóxica. Mas é difícil negar o quão dependente nos tornamos desses pequenos aparelhos. Quando coloquei a mão no bolso e senti o vazio, instantaneamente perdi a capacidade de me localizar, de me comunicar. Me levaram de uma vez só a carteira, o relógio, o bloco de notas, a agenda, o álbum de fotos. Levaram o telefone, mas parecia que tinham levado um pedaço do meu corpo, ou a habilidade de usar minhas mãos sem o aparelho que havia se tornado sua extensão natural.

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De todas as coisas que o assaltante poderia acessar, a conta do banco me preocupava, claro. Era dia de pagamento e o combo conta cheia e compras por aproximação não é dos mais tranquilizadores. Mas foi a possibilidade de ter o meu álbum de fotos exposto a um desconhecido que mais mexeu comigo. Saber que aquela pessoa estranha tinha acesso aos registros mais privados da minha família, aos momentos mais preciosos dos meus filhos, foi como se tivessem entrado na minha casa e dormido na minha cama.

No Data Amigos —novamente ele, minha grande fonte de informação— realizado pós-assalto uma reação foi comum a todos os entrevistados que já haviam passado pelo mesmo: a sensação de invasão. Segundo uma pesquisa, esta realizada por fontes críveis e confiáveis, cerca de metade das pessoas chora ao perceber que teve seu telefone roubado. Está aí uma estatística da qual faço parte. Chorei copiosamente em ambas as ocasiões em que o mesmo aconteceu comigo. Outra pesquisa aponta o Brasil como o quarto país com o maior número de viciados em celulares. Dessa, sem dúvida, também faço parte (apesar de não morar mais no Brasil).

A verdade é esses pequenos aparelhos ganharam tanto protagonismo nas nossas vidas que é difícil imaginar uma hora, que dirá um dia, sem eles. Ter meu telefone roubado foi como ser internada à força numa clínica de reabilitação. E como viciada ainda em estado de negação do meu próprio vício, tratei de me dar alta rapidamente e saí no dia seguinte para comprar outro.

Saí da loja com um novo telefone em mãos. Mais tecnológico, com mais funções e megapixels, perfeito para ocupar ainda mais terreno na minha vida. Mas depois dessa última internação compulsória a uma vida sem celular, me prometi tentar fazer certas mudanças. E, se ainda não estou preparada para um tratamento de choque para o meu vício, pelo menos tenho tentado colocá-lo no modo avião na hora de dormir.