Uma das imagens marcantes da Copa do Qatar é a do comercial de TV em que Neymar dança ao lado de um frango de desenho animado, símbolo da marca Sadia, uma adaptação do funk Passinho do volante: “Ah, lelek lek lek lek lek lek”. Se a parceria do camisa 10 com o galináceo saiu do ar sem deixar saudade, fica sua contribuição para o entendimento de mais um malogro da seleção brasileira. Nada como uma tradição que se atualiza: a história do nosso futebol é atravessada pelo paradoxo do moleque.
Funciona assim: a mesma molecagem que nos conduz à vitória é garantia de derrota. Sempre que vencemos, acreditamos ter vencido por sermos moleques — abusados, irreverentes, diabolicamente criativos, desconcertantes. Quando perdemos, ah, pudera, é porque somos moleques — irresponsáveis, indisciplinados, desconcentrados, sem fibra, pouco sérios. Faz parte do imaginário esportivo nacional. Em mais uma demonstração do nosso caráter bipolar, o que separa a soberba do vira-latismo cabe na mesma palavra.
Sim, este é um textão sobre a Copa que se encerra amanhã com o jogaço Argentina x França — outra vez, uma final sem o Brasil. Será que devemos nos preocupar, nós que acreditamos na paixão futebolística como um dos pilares da identidade nacional, dimensão estruturante de sociabilidade e autoestima num paisão meio desconjuntado?
Há coisas demais a serem ditas sobre um Mundial que conseguiu — contra a expectativa de muitos, e fora de época — reproduzir num país sem história no futebol, autoritário e com estética de shopping center, uma Copa eletrizante como qualquer outra. A façanha histórica do Marrocos, o triste ocaso de Cristiano Ronaldo e o belíssimo crepúsculo de Messi encheriam (encherão) tomos. Sendo este um textão brasileiro, a história que conta tem como protagonista o time de amarelo — e vem de longe, embora tenha sido atualizada no Qatar.
O sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987), autor de Casa grande & senzala, exaltou nosso molequismo esportivo no prefácio que escreveu para outro clássico, O negro no futebol brasileiro, de Mario Filho. Explicou que a molecagem baiana, a capoeiragem pernambucana e a malandragem carioca tinham sido os “resíduos” com os quais “o futebol brasileiro afastou-se do bem ordenado original britânico para tornar-se a dança cheia de surpresas irracionais e de variações dionisíacas que é”.
O texto de Freyre é de 1947, o que o situa na pré-história de nossas glórias esportivas, como um dos alicerces do mito fundador do “país do futebol”. O Maracanazo, marco do lado ruim da molecagem, mal azulava no horizonte. E faltavam ainda onze anos para o primeiro título mundial na Suécia, quando o mundo seria apresentado a um gênio de 17 anos chamado Pelé e à maior contribuição — ao lado da música — que a cultura brasileira lhe daria.
Megaindústria global
Passados 75 anos, o futebol se transformou numa megaindústria bilionária globalizada que nem Freyre nem ninguém da época poderia ter antevisto. Os principais jogadores das mais diversas nacionalidades atuam juntos nas mesmas ligas europeias, o que borra e complica — sem apagar — as características outrora nítidas das velhas escolas nacionais.
Datada sob certos aspectos, a exaltação freyriana da molecagem continua capaz de nos dar uma chave de leitura da atuação brasileira numa Copa em que a seleção saiu menor do que entrou. Isso porque o paradoxo do moleque atingiu um ponto de culminância e ao mesmo tempo de saturação na figura de Neymar, a mais perfeita encarnação dessa charada — moleque bom, moleque mau — em toda a história.
Maior jogador brasileiro pós-pentacampeonato e único fora de série do país em muitos anos, o ex-“menino Ney” voltou a não confirmar num mundial o destino apoteótico que um dia se previu para ele. Individualista demais para fazer o time jogar, como faz Messi, e distante demais do auge da forma para transformar o individualismo em arma mortífera, como faz Mbappé, mesmo assim foi protagonista.
A contusão no tornozelo direito, na partida de estreia, o tirou do restante da primeira fase e estimulou discussões quentes na torcida. Precisávamos mesmo dele? Uma parcela do público achava que sim — como abrir mão de um jogador tão espetacular? Outros torcedores, em parte por não engolir o papel de cabo eleitoral de Bolsonaro assumido pelo craque na campanha recente, preferiam que o Brasil fosse campeão sem ele.
Que o time precisava do talento superior de Neymar ficou evidente para todos quando ele marcou aquele golaço contra a Croácia, seu momento de maior brilho nas três Copas que disputou. E mais uma vez seu feito foi insuficiente para o Brasil mostrar ao mundo que ainda está na prateleira mais alta de um esporte em que já foi a referência maior.
O jejum e o jejum
Como muito já se disse, a seleção brasileira igualou no Qatar seu recorde de jejum de títulos — serão 24 anos no mínimo, seis ciclos, o mesmo tempo transcorrido entre 1970 (México, a última do Rei) e 1994 (EUA, a única do Baixinho). Pouco se atenta para uma diferença crucial entre uma seca e outra: naquela, tivemos bem no meio do caminho o timaço de 1982, que perdeu mas encantou o mundo. Agora, o meio do caminho cai em 2014 e marca a maior humilhação da história do esporte brasileiro.
Então estamos mesmo em decadência? Será que dá para reverter o processo? Não se trata só de títulos. Chegar a uma semifinal no Qatar teria sido uma conquista. Serviria até ser eliminado nas quartas, mas batendo um bolão como a Inglaterra, por exemplo. O futebol tem entre seus encantos o de nunca excluir o imprevisível, a porta sempre aberta para a zebra — que, diga-se de passagem, deu as caras muitas vezes no deserto.
O problema não é o hexa não ter vindo. O problema é o Brasil apresentar há tempos em Copas do Mundo um futebol pouco convincente, com viés de baixa. Certas características da eliminação atual a tornam menos honrosa que a anterior, na Rússia, diante da Bélgica — e a Croácia, que hoje disputa o terceiro lugar da competição, não tem nada a ver com isso.
A única seleção do mundo a ter levantado a taça cinco vezes jogou no Qatar um futebol com alguns lampejos vistosos, mas no geral ralo — em mais momentos do que gostaríamos de lembrar, ruim mesmo. Parecia um tanto fora de sintonia com o espírito ultracompetitivo de uma Copa em que o Marrocos, movido a talento, disciplina, preparo físico e coração, se tornou a primeira equipe africana da história a chegar a uma semifinal.
Havia talentos de amarelo em campo, alguns até cintilantes. Nunca houve exatamente uma equipe. A seleção que já teve Didi, Gérson e Falcão não se mostrava capaz de reter a bola e alternar ritmos, mesmo porque o meio de campo era despovoado na única formação que Tite parecia conceber, qualquer que fosse o adversário. O plano de jogo também era um só: bola para os pontas, e que nossa molecagem natural fizesse o resto.
Enfrentando equipes retrancadas como Sérvia e Suíça, essa limitação ficou camuflada. Diante da ingênua Coreia do Sul, na melhor partida brasileira, a velocidade dos atacantes deu conta do recado com sobra. Bastou encontrarmos uma equipe madura e capaz de tocar a bola com lucidez, regida por um sábio chamado Modric, e deu no que deu.
Deu no que deu, mas não era para ter dado. Após o pior primeiro tempo do Brasil numa Copa desde o Mundial do Uruguai, em 1930 (a semifinal de 2014 é hors-concours), seguido por um segundo tempo melhor mas ainda fraco, o juiz apitou o início da prorrogação. Pedro rolou a bola no centro do campo e Neymar deu para trás um vistoso passe... de letra! Ah, lelek!
Mau presságio? Que nada. No último minuto do primeiro tempo, Neymar tirou da cartola aquele gol de antologia. Ah, moleque! Estávamos salvos? Que nada. O que se viu depois disso foi uma seleção carente tanto de inteligência emocional quanto de inteligência mesmo, incapaz daquilo que qualquer time municipal decente sabe fazer — segurar a vitória preciosa por uns minutos, custe o que custar.
O gol de Petkovic a quatro minutos do fim chegou a ter um retrogosto de 7 a 1, como se o Brasil estivesse condenado a reviver eternamente o dia ridículo em que os maiores vencedores da história do futebol, jogando em casa, viraram infanto-juvenis diante dos alemães, incompetentes até para fazer meia dúzia de faltas ou uma cera básica que desacelerasse o massacre. Será que desaprendemos os fundamentos?
A paz de Tite
Não se trata de encontrar um bode expiatório. A ideia aqui é, em vez de discutir tática ou técnica, esboçar um certo perfil psíquico ou ético – mas pode chamar de alma – do futebol que a seleção vem jogando há anos. Menos papo de 4-2-4 e mais aquela dimensão nebulosa que Tostão aponta quando conjectura que nossa baixa produção de bons meias e nossa fartura de atacantes habilidosos espelhem uma alta do individualismo na sociedade brasileira.
Buscar culpados é esporte popular após derrotas em Copas, mas a engenharia de obra pronta tem alcance crítico limitado. Talvez seja inevitável mesmo assim. Se fosse o caso de achar um judas para malhar, o candidato mais óbvio seria Tite. De currículo invejável nas eliminatórias sul-americanas, o agora ex-técnico do Brasil, falante do indigesto titês, merece críticas por motivos variados na Copa:
1. a convocação de um lateral (Daniel Alves) sem condições de jogo;
2. na partida fatal, a escalação equivocada, com meio de campo frágil, contra uma Croácia que era puro meio de campo e nos botou na roda;
3. a substituição precoce de Vinicius Jr., nosso atacante que mais brilhou no Qatar;
4. a distância que manteve dos comandados na hora dramática dos pênaltis;
5. a determinação (ou no mínimo aceitação) de que um talento verde como Rodrygo fosse o primeiro cobrador;
6. o rápido abandono do gramado coalhado de cadáveres de amarelo após a derrota;
7. a entrevista de eliminação pouco nobre, passivo-agressiva, em que fez questão de dividir a culpa com toda a equipe e se absolveu antes que qualquer outra pessoa o fizesse: “Derrota dolorida, mas em paz comigo mesmo”.
Deixemos Tite de lado. O treinador gaúcho não é o responsável, ou pelo menos não o único, por um quadro que o antecede. O personagem principal do futebol brasileiro no Qatar foi — como já era, tem sido e pode continuar a ser por algum tempo — o moleque lek lek. O ex-futuro-melhor-jogador-do-
Cacatua escovada
Neymar ainda tem alguns anos de carreira pela frente, mas já representa um certo fracasso de nosso futebol nos últimos 20 anos, com seu rol de promessas não cumpridas em Copas. A tese que se lança aqui é que o capítulo mais decisivo dessa história foi protagonizado pelo camisa 10 na Rússia, quatro anos e meio atrás, e o resto — Qatar inclusive — é consequência.
Naquele 17 de junho de 2018, o Brasil faria sua estreia na Copa contra a Suíça. Como nenhum narrador esportivo nos deixa esquecer, estreias são momentos complicados, todo mundo nervoso e tal. E aquela não era uma estreia qualquer, mas a primeira oportunidade que o Brasil teria de mostrar que havia superado a kriptonita do 7 a 1.
De repente, a seleção entra em campo e vemos Neymar fantasiado de — o que era aquilo? Uma cacatua escovada? Sim, ou coisa parecida. Naquela hora grave e decisiva, nosso supercraque não tinha encontrado nada melhor para fazer do que chamar o cabeleireiro e encomendar uma crista frondosa, louríssima, cruzamento de moicano com Farrah Fawcett — um penteado visível do espaço a olho nu.
Alguém pode dizer: e daí? Tanto faz o que o cara tem no topo da cabeça desde que jogue bem, estamos falando de futebol e não de moda, afinal. Sim, certíssimo: estamos falando de futebol e não de moda – exatamente! A partida terminou 1 a 1 (nosso gol foi marcado por Coutinho) e Neymar saiu derrotado. Naquele dia nasceu uma narrativa de sucesso avassalador mundo afora, a de que o principal jogador brasileiro é um farsante desprezível, o maior cai-cai da história do futebol. E de penacho.
Vale refletir um pouco sobre isso. Imagine que você é, há anos, o astro, o 10 indiscutível da seleção brasileira. Sim, aquela mesmo, a da camisa mais pesada da história do futebol. Isso deposita em seus ombros certa responsabilidade, confere? A missão de honrar a dinastia de Pelé e Garrincha, defender seu prestígio contra os rumores de decadência que corriam o mundo — sobretudo nos últimos quatro anos, desde o Mineiraço.
De repente, você se enche de brios e pondera que, contundido, não estava no Mineirão e só por isso aquela desgraça fora possível — agora, finalmente, tinha chegado a hora de mostrar ao mundo que...
Mostrar ao mundo o quê?
Jogo dos bonitos
Ora, mostrar ao mundo que Neymar, o popstar, é um tremendo de um influencer, um lançador de tendências de estilo, e está no ramo de bombar nas redes. Assim, você chega para o cabeleireiro ou cabeleireira e pede um lance superespecial — ah, lelek!
Nada a ver com conservadorismo de costumes. É claro que qualquer um pode esculpir a juba como quiser. Entre a máquina de raspar e as trancinhas, a Copa do Qatar andou bem servida de penteados criativos. Além disso, há um tipo brasileiro de alegria, também presente no astro do PSG, que parece não estar ao alcance de pessoas como Roy Keane, o ex-jogador irlandês que fez sucesso ao condenar as danças com que a rapaziada canarinho comemorava seus gols.
Goste-se ou não daquelas coreografias — ou do fato de que elas foram ensaiadas em grande número, como se uma chuva de gols fosse favas contadas –, é claro que a alegria deve ser defendida. O caso da cacatua escovada é um pouco diferente.
Pela dramaticidade do contexto, pelo exibicionismo exagerado ou por uma mistura disso tudo, havia naquela crista emplumada algo de repulsivo, de antifutebolístico até. Qualquer garoto que chegasse com um cabelo daquele pedindo vaga numa pelada no campinho estaria derrotado antes de jogar — isso se o deixassem jogar. Se fosse um campeonato sério, então... Ali ficou claro que a era Neymar marca uma mudança sutil na imagem brasileira em campo — do “jogo bonito” para o “jogo dos bonitos”.
Convém fazer uma ressalva: o apito final ainda não soou para nosso camisa 10. Após a eliminação no Qatar, ele chorou bastante e declarou não saber se continuará atuando pela equipe da CBF, que no momento está sem treinador. Caso prossiga, terá 34 anos na Copa de 2026. O corpo estará mais velho, mas tudo indica que a alma será a mesma.
Talvez — apenas talvez — tenha chegado a hora de agradecer a Neymar pelos serviços prestados e repensar algumas coisas sobre o jeito brasileiro de jogar futebol.
* Sérgio Rodrigues é escritor, jornalista e roteirista de TV. Publicou entre outros livros o romance O drible (Companhia das Letras), ambientado no mundo do futebol, vencedor do prêmio Portugal Telecom (atual Oceanos) de 2014. Lançou recentemente A vida futura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário