segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Chef brasileira nascida no Vidigal leva a coxinha a Paris, FSP

 Teté Ribeiro

Se a história de Alessandra Montagne fosse contada num longa-metragem, era capaz de o roteirista ser demitido por ter carregado demais no drama. Mas a vida real não precisa ser verossímil, e, muitas vezes, não é.

Quem a conhece —mesmo em uma conversa por Zoom, como foi o caso desta entrevista— também não imagina que por trás daquela presença leve, calorosa e do sorriso largo que ela abre com frequência exista uma trajetória tão cheia de dor.

Aos 45 anos de idade, Alessandra é dona de três restaurantes em Paris. Mas ela não é apenas uma empresária do ramo. É uma chef de cozinha e mestre confeiteira graduada, que leva para os pratos que prepara tanto o que aprendeu na escola quanto o que colheu de melhor da vida.

"Minha cozinha tem zero desperdício. Faço questão de trabalhar com produtores que eu conheço, só uso produtos da estação e não compro nada que vem de muito longe", afirma. "Sempre vou privilegiar a agricultura local. Cresci em cidade pequena e sei o valor das coisas, dos legumes que estão sendo plantados para alimentar as galinhas, que vão botar os ovos que também vão servir de alimento."

A chef Alessandra Montagne no restaurante Nosso, em Paris, na França - Anne Claire Heraud/Divulgação

Alessandra nasceu com outro sobrenome, filha de uma empregada doméstica no Vidigal, no Rio de Janeiro. Aos oito dias de vida, foi entregue pela mãe para os avós paternos, que a criaram na cidadezinha de Poté, no interior de Minas Gerais.

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"Quando me perguntam onde fica Poté eu digo que é perto de Teófilo Otoni [município de MG]. Se nem isso ajuda a localizar, eu digo que Teófilo Otoni é perto de Governador Valadares", diz. Não tinha nem água encanada nem luz elétrica em Poté. Telefone, então, muito menos.

Os avós paternos de Alessandra tiveram nove filhos, a casa vivia cheia de gente, os mais velhos passando as roupas que ficavam pequenas para os mais novos. E Alessandra passou toda a infância lá, brincando na rua, de pé no chão. No Dia de Finados, ela e sua avó acendiam uma vela para a mãe, que acreditavam que já tinha morrido.

Mas, um dia, quando tinha 12 anos, um carro preto, novo e chamativo estacionou na porta da casa de seus avós. Carro em Poté era coisa rara, e a cidade inteira parou para ver quem estava chegando. O motorista desceu e abriu a porta de trás. "Eu só vi uma perna que saiu assim do carro, ela tava de bota, me lembro como se fosse hoje. Meu coração disparou", contou Alessandra.

"Eu não lembrava do rosto, mas sabia que era ela. E fiquei com muita vergonha, eu era uma menina magrela, descabelada, toda suja de poeira. E ela aquela mulher arrumada, cheirosa, bem-vestida."

Alessandra se emociona quando me conta que nunca teve coragem de perguntar para a mãe por onde ela andou e o que ela fez durante aqueles 12 anos. A mãe já morava em Paris quando fez essa visita. Era casada com um francês e não tinha ido a Poté para pegar a filha, mas sim para reencontrá-la e avaliar se ela estaria educada o suficiente para se mudar para a França.

Passados 15 dias, chegou à conclusão de que não. Matriculou Alessandra em um internato em Campinas, chamado Instituto Adventista de São Paulo. "Lá eu vivi as piores situações de racismo no Brasil", diz Alessandra. "As outras meninas me perguntavam por que o meu nariz era tão largo, por que o meu cabelo era desse jeito, diziam que eu era muito feia."

E, ao contrário dos colegas, todos de famílias ricas, Alessandra não tinha ninguém que a buscasse no internato nos feriados prolongados ou nas férias. Ficava na escola nessas datas. Muitas vezes sozinha. "Eu ligava para a minha mãe pedindo pelo amor de Deus, deixa eu voltar para você, pelo amor de Deus. Mas ela não queria que eu voltasse, e eu não sabia o que fazer."

A chef Alessandra Montagne no restaurante Nosso, em Paris, na França - Anne Claire Heraud/Divulgação

Num final de ano, Alessandra pegou um ônibus e foi para Poté. Tinha 16 anos, era virgem. Na cidade de dois mil habitantes onde passou a infância, nesse verão, teve sua primeira relação sexual. E engravidou. Os avós, envergonhados com a situação, forçaram Alessandra a se casar com o pai do bebê, um homem que se revelou cruel e violento.

Alessandra teve o filho, André, que hoje tem 29 anos e mora com ela em Paris. "O André foi o motor que eu precisava, sabe? Ele salvou a minha vida, o meu filho. É meu melhor amigo", afirma.

Depois do nascimento do bebê, Alessandra percebeu que precisava dar um jeito de trabalhar, produzir dinheiro e, mais que tudo na vida, traçar um plano de fuga. "Você não tem vontade de abraçar, de beijar, uma pessoa que te machuca."

Então, foi para a cozinha, coisa que fazia desde pequena junto da avó. Começou a fazer coxinhas para vender na porta da escola. "Os alunos sentiam o cheiro da minha coxinha e pulavam o muro pra comprar, era uma loucura", lembra. O diretor da escola acabou dando autorização para que ela vendesse os salgadinhos do lado de dentro do muro, para evitar acidentes.

O dinheiro que ganhava, guardava. Demorou quatro anos, mas Alessandra conseguiu juntar o que precisava para fugir daquela situação. "Peguei um ônibus de Poté para São Paulo, onde uma tia minha morava, em Itaquera. Foram 22 horas de viagem, eu, meu filho, uma garrafinha de água para ele, o dinheirinho da coxinha e uma mochila nas costas", conta.

De São Paulo, fez contato com a mãe, em Paris, e juntas resolveram que Alessandra iria para a França arrumar um emprego e aprender a língua para depois levar o filho. "Deixei o André com minha tia e entrei em um avião pela primeira vez na vida."

Quando desembarcou em Paris, o padrasto francês foi buscá-la no aeroporto e, antes de levá-la para casa, parou o carro pertinho da Torre Eiffel e disse: "Alessandra, olha para cima". Sem saber muito bem o que esperar, mas sem querer correr o risco de parecer antipática, Alessandra fez como o padrasto pediu.

"E assim que vi aquela torre de baixo, o céu azul lá em cima, ficou claro para mim que essa era a cidade onde eu iria morar, esse era o meu destino." Precisava trabalhar, estudar e trazer o filho. "Só tinha isso na cabeça, tudo que eu fiz dali pra frente foi com o objetivo de trazer o André para morar comigo."

A chef Alessandra Montagne no restaurante Nosso, em Paris, na França - Anne Claire Heraud/Divulgação

Mas Paris tem lá suas distrações. Alessandra começou a sentir cheiros que nunca tinha sentido antes, perceber sabores que não conhecia. "Comecei a descobrir o gosto, o aroma das frutas vermelhas na época da colheita, é tão diferente colher uma framboesa ou um morango na hora certa. Há muitas variedades de morango, quatro ou cinco, cada uma com um cheiro e um gosto diferente. Os tomates, então, têm umas 20 variedades diferentes."

E foi experimentando misturas, testando receitas, comprando panelas e livros de culinária, trazendo o que tinha aprendido na cozinha da casa da avó para a comida francesa. Trabalhava o dia inteiro em uma empresa de insumos médicos como assistente, abrindo pacotes, conferindo correspondência, atendendo telefones.

Na França, existe uma política de aperfeiçoamento profissional bem diferente do que há no Brasil. Lá, se um funcionário for aceito em uma escola concorrida, e o chefe concordar, ele tira uma licença para estudar o que quiser e continua recebendo o salário integral durante o tempo que o curso durar.

E Alessandra foi aceita em um curso de culinária de um ano na escola Médéric, em que se dedicou completamente, de corpo e alma. No final do ano letivo, a escola ofereceu a ela um curso de confeitaria com a mesma duração, que ela também fez. Saiu dos dois anos de estudo com emprego em um restaurante, como chef confeiteira.

Demorou um bom tempo até conseguir trazer o filho para Paris, mas conseguiu. Quando André chegou, Alessandra já morava com um francês que conheceu e por quem se apaixonou, e com quem, em 2006, teve sua segunda filha, Thaís.

Em 2012, com algum dinheiro guardado e a vida pessoal num momento mais tranquilo, decidiu abrir seu próprio restaurante. "Queria um lugar onde todo mundo pudesse comer bem. Um lugar simples, mas com comida boa, de qualidade. E uma cozinha aberta, para o cliente ver o que eu estivesse fazendo."

O restaurante se chamava Tempero, e ficava em um bairro longe da rota turística da cidade. A ideia de Alessandra era ficar fora mesmo do radar dos críticos gastronômicos da cidade enquanto pegava traquejo e experiência no negócio. Mas não deu tempo.

"Tinha fila na porta no primeiro dia. Não tinha comida suficiente para todo mundo. Eu não fiz uma publicidade, até hoje não sei de onde saiu toda aquela gente. E nunca esvaziou, foi sempre assim", lembra. "E acho que não teve um jornalista francês que não entrou ali no primeiro mês."

E não foram só jornalistas. Alain Ducasse, um dos chefs franceses mais renomados do mundo, não só foi conhecer o Tempero logo no começo como aprovou a comida e incentivou Alessandra a se estabelecer em uma área de mais prestígio.

A chef Alessandra Montagne no restaurante Nosso, em Paris, na França - Anne Claire Heraud/Divulgação

Hoje, a brasileira tem três restaurantes em Paris e está escrevendo um livro sobre sua vida. O Tempero continua lá, desde que nasceu, dez anos atrás, mas virou uma épicerie, um mercado de produtos de alta qualidade e uma adega de vinhos naturais. Aí tem o Dana, um bistrô dentro de um prédio comercial luxuoso que mais parece um hotel cinco estrelas, onde os executivos alugam suítes para trabalhar e onde ela serve almoços super caprichados.

E, em 2020, inaugurou o Nosso, sua casa mais autoral, em que, no jantar, faz um menu degustação que conta parte da sua história. "A primeira coisa que você come é uma coxinha, claro, porque foi a primeira coisa que eu vendi e o que me fez perceber que eu podia ter orgulho de mim."

"Coxinha é uma parte muito importante da minha história. Foi a primeira pedrinha que eu botei para fazer o edifício que construí depois".

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