sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Aprender a aprender, por Celso Ming - O Estado de S.Paulo


31 de janeiro de 2014 | 2h 21


Mais relevante do que a nova queda no desemprego, desta vez para o nível recorde de 4,3% da população ativa, é a informação de que a participação dos trabalhadores na indústria em 2013 caiu para 15,8%. Dez anos antes, eram 17,6%. (Nesse segmento estão incluídos também os empregados na indústria extrativa, distribuição de eletricidade, água e gás.)
Isso poderia ser tomado como mais uma indicação de desindustrialização. É mais consequência do forte crescimento do setor de serviços, que hoje pesa quase 70% no PIB. Em 2003, o subsetor de serviços prestados às empresas (mais aluguéis, atividades imobiliárias e intermediação financeira) empregava 13,4% da mão de obra. Hoje já são 16,2%.
O principal recado passado por essas estatísticas é o de que a indústria de transformação e também os sindicatos dos trabalhadores da área estão perdendo a capacidade de pressão, na proporção em que o setor de serviços vai absorvendo cada vez mais a força de trabalho: "A Volks vai dispensar 4 mil antes ocupados com a linha de montagem da Kombi? Ora, não é uma tragédia. O resto da economia absorverá essa gente...".
Além disso, o mais baixo índice de desocupação da série histórica do IBGE reafirma o diagnóstico do Banco Central de que o mercado de trabalho continua atuando como importante fator de aumento de custos para o setor produtivo e, nessas condições, de foco de inflação.
Economistas se perguntam o que pode ser feito para aumentar a produtividade do trabalho. As soluções definitivas são de longo prazo: implicam melhoria no nível da educação e do treinamento.
Mas há um fator cujo resultado vem sendo pouco avaliado, que é o emprego crescente de Tecnologia da Informação, com sua enorme bateria de recursos, que começa no chip, passa pelos grandes sistemas operacionais e alcança hoje a impressão em terceira dimensão (3D).
A simples transmissão de informações instantâneas dispensa recursos de todos os níveis: instalações, máquinas, almoxarifados, estoques, capital de giro e, inclusive, mão de obra. Mas são recursos que encurtam os prazos, reduzem os erros e facilitam o planejamento.
Com mais Tecnologia da Informação à sua disposição, a mão de obra, mesmo a não especializada, se torna mais eficiente e, portanto, mais produtiva. O caixa do supermercado ou o auxiliar de funilaria podem ser hoje muito mais eficientes do que trabalhadores de sua idade há apenas dez anos.
Na última terça-feira, em artigo no Estadão, o especialista em Economia do Trabalho José Pastore advertiu para impressionantes mudanças no setor de logística que começam a surgir com o emprego intensivo de drones (pequenos aviões teledirigidos) na distribuição. Em Israel, leituras automáticas a distância de consumo de água e eletricidade são feitas há anos por meio de drones.
É claro, o aumento da produtividade da mão de obra depende substancialmente da qualidade da educação e do ensino. No entanto, essas novidades sugerem que, mais do que simplesmente enfiar informações na cabeça das pessoas, o maior desafio consiste em levar a população a aprender a aprender.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Para que serve a celebridade?


ROBERTO DAMATTA
Publicado: 
Quero começar com uma nota sobre a celebrização como um problema e como um valor. A ultima besteira aprontada pelo jovem cantor Justin Bieber, que minhas netas mais novas idolatram (ou idolatravam), ajuda e, intrigantemente, coincide com o que elaborei na semana passada sobre esse tema.
Uma sociologia da modernidade avançada, globalizada e marcada pelo hiperconsumo não pode deixar de meditar sobre a celebrização e o sucesso como paradoxos. Pois como distinguir e buscar a fama que inevitavelmente leva as pessoas para cima ou para baixo numa sociedade fundada num individualismo igualitário que horizontaliza?
Deste ponto de vista, a celebrização traz à tona a hierarquia (ou um centro desejado) como um valor implícito ou até mesmo envergonhado num sistema que, idealizadamente, se pensa como descentralizado porque é feito de iguais. A celebrização revela também como o sistema oscila entre a ênfase no individual (ou nas suas peças ou partes) e em como essas partes se relacionam entre si formando um tecido ou uma totalidade. A regra é salientar a parte, mas a celebrização não nos deixa esquecer o todo. Talvez essa seja sua principal função e ela está contida na pergunta: por que ele (ou ela) e não eu?
Não se trata, como bem viu Tocqueville, de achar que o regime igualitário suprima a excelência ou a singularidade extraordinária que dimensionam o ideal da aristocracia; mas de ter suficiente lucidez para compreender que a igualdade não suprime a gradação; e que a ênfase no individuo ou na parte não acabam com o todo. O numero um em alguma esfera das artes não liquida os elos entre as pessoas. As coletividades humanas são reconhecidamente humanas, justamente porque preservam essas dimensões.
Há o momento da celebrização e o momento em que ela, como o Justin Bieber condenado, revela o jovenzinho banal, igualzinho aos nossos filhos e netos.
Num mundo igualitário, o processo de celebrização legitima a crença de que todos são iguais e alguns se diferenciam pelo talento. É o caso especifico do esporte e das artes musicais e cênicas, mas isso não exclui paternalismos, favores, preferências e familismos que marcam todos os campos, sobretudo o do poder.
O que chama a atenção hoje em dia é o acasalamento às vezes patológico entre uma hiperdistinção (caso de alguns astros da música popular e do esporte) e uma espécie de autoflagelação por meio do uso abusivo da liberdade. Um menino que fica milionário aos 15 anos e vive numa sociedade que lhe garante o espaço de ser feliz a seu modo corre o risco de ser engolido e, eventualmente, morto pelo seu tão desejado sucesso!
Como naquela famosa capa da “New Yorker”, comentada nesta coluna, na qual os Oscars comiam como sobremesa os artistas premiados. Afinal, se os cavalos não são domados, eles acabam nos guiando.
Para que serve então a celebridade? Ela agencia uma diferenciação num mundo que se deseja construído de iguais. Os seus perigos são claros: toda pessoa célebre tem uma superespecialização que se confunde com um dom. O famoso é a tela na qual as pessoas comuns projetam os que lhes falta. Os mitos das celebridades insistem em dizer como elas foram pessoas simples e pobres antes de obterem a tão desejada fama. O astro é, entre outras coisas, um especialista no que faz e um modelo do que faz. Daí a tendência a confundir o seu papel público com a sua intimidade. A suposição de uma excepcionalidade em tudo se desfaz e decepciona quando ocorre um desvio entre a figura que aparece no palco e a figura que surge — bêbado, burro, arrogante, desonesto, corrupto e, acima de tudo, infeliz como todo mundo — na vida real. Isso é acentuado pela nossa busca de coerência, a qual inventou sua tecnologia.
Do outro lado do universo das celebrizações para cima, há o conjunto de empregados e de inferiores que congrega as “celebridades para baixo”. Os garçons, engraxates, motoristas, porteiros e empregados em geral que fazem a nossa comida, lavam a nossa roupa, vigiam nosso lar e nos protegem do mundo. Esses fornecedores de amor, atenção e carinho preenchem um espaço que não ocupamos e passam a impressão de que vivem apenas para o que fazem. Para muitos, ver a empregada namorando é tão surpreendente quanto descobrir que a sua celebridade favorita tem um péssimo caráter.
Esse time de empregados: secretários, assessores e subdiretores que, na política, desculpam-se pelos seus superiores quando a Fifa ou Comité Olímpico Internacional ou uma chuvarada revela como nada está pronto e há um atraso crônico e insuportável na infraestrutura nacional.
No Brasil, as autoridades não pedem desculpas. No máximo, elas dãodesculpas por meio dos seus “peles” ou asseclas. As obras que jamais ficam prontas em tempo e o cara de pau ministro diz que as empreiteiras precisam ser mais responsáveis. Mas quem contrata essas empresas?
Se as celebridades não podem ser escusadas dos seus delitos, o mesmo deve ocorrer com a autoridade que, na maioria dos casos, lamentavelmente torna-se uma celebridade pelo que não fez; ou, pior que isso, pela sua inestimável contribuição ao atraso do país.

O rolê da ralé (sobre rolezinho - muito bom)


Para autor de 'A Ralé Brasileira', rolezinhos são vistos como tão ameaçadores porque rompem a demarcação do apartheid social

18 de janeiro de 2014 | 16h 00

Ivan Marsiglia
Grito dos quase incluídos? Flash mob da periferia? Repique das jornadas de junho? Marcha do desprezo pela cultura democrática? Ou apenas e tão somente "um rolê"?
Shopping JK com as portas fechadas para a tão falada 'inclusão pelo consumo' - Alex Silva/Estadão
Alex Silva/Estadão
Shopping JK com as portas fechadas para a tão falada 'inclusão pelo consumo'
O País discute o que vai pela cabeça daqueles rapazes de bombeta e bermudas, que se endividam para comprar um tênis Mizuno, a congestionar os corredores dos shopping centers - estes também chamados aqui e ali de "templos do consumo", "espaço privado aberto ao público" ou "única opção de lazer na quebrada", de acordo com o gosto do freguês. Os rolezinhos entraram com tudo no vocabulário político nacional e andaram nas bocas do prefeito Fernando Haddad, do governador Geraldo Alckmin e até da presidente Dilma Rousseff.
Para o sociólogo potiguar Jessé Souza, doutor pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha, e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, com todas as interpretações que se possam atribuir ao fenômeno (e, em especial, às reações da sociedade brasileira a ele), uma coisa é certa: estamos diante de "um reflexo do apartheid brasileiro que separa, como se fossem dois planetas distintos, os brasileiros ‘europeizados’, da classe média verdadeira, e os percebidos como ‘bárbaros’, das classes populares".
Autor do já clássico A Ralé Brasileira - Quem É e Como Vive, publicado em 2009, e de Os Batalhadores Brasileiros - Nova Classe Média ou Nova Classe Trabalhadora? , em 2012, ambos pela Editora UFMG, Jessé refuta o conceito de "nova classe média", exaltado no Brasil na última década. A precarização dessa camada "que trabalha muito e ganha pouco", diz, não permite definição tão positiva. Na entrevista a seguir, o sociólogo afirma ver conotação política (mas não planejada) nos rolês, alerta para o desejo de reconhecimento desses jovens e critica a visão estreita dos que, à direita ou à esquerda, concebem os sujeitos sociais "unicamente determinados e explicados por estímulos econômicos".
Para a antropóloga Alba Zaluar, o rolezinho 'é uma brincadeira, não um movimento social'. Para o escritor Paulo Lins, 'uma manifestação extremamente política e organizada'. Para a cientista social Rosana Pinheiro-Machado, 'o assunto mais caro à minha sensibilidade acadêmica e política'. E para o sr.?
Apenas estudos empíricos poderiam dar conta da questão da origem de classe desses jovens. Contudo, a fronteira entre nossos desclassificados sociais - que eu chamo provocativamente de "ralé" - e a nova classe trabalhadora precária, mal rotulada entre nós de "nova classe média", é muito fluida. O que nos permite falar de classes populares em sentido geral. Esses fatos são mais um reflexo do apartheid brasileiro que separa, como se fossem dois planetas distintos, o espaço de sociabilidade dos brasileiros "europeizados", da classe média verdadeira, e os brasileiros percebidos como "bárbaros", das classes populares. Desde que a barbárie fique restrita ao mundo das classes populares, ela não é um problema real. E a classe média finge que se choca de tempos em tempos com o que acontece nas prisões - como se todo mundo já não soubesse o que lá acontece, como os alemães com os campos de concentração na Alemanha nazista - ou com a violência nas favelas.
Muitos frequentadores se dizem chocados com a falta de segurança 'até no shopping'...
O problema só se torna sério e ameaçador quando se rompe com as linhas de demarcação implícitas do nosso apartheid real, ainda que não legal. E as classes populares passam a fazer de conta que não sabem qual é seu lugar. É isso que confere caráter político a essas aparentes brincadeiras de jovens da periferia. Eles ameaçam a fronteira de classes, vivida por todos nós de modo implícito.
Mas essa 'nova classe média', ou 'classe trabalhadora precária', como o sr. prefere, não se tornou um mercado interessante para o comércio e as instituições bancárias que oferecem crédito popular?
É verdade e esse é um ponto muito interessante. O mercado se interessa de modo crescente por essa classe ascendente porque quer saber como vender para ela. Mas fazer comércio com alguém não significa "aceitá-lo" ou "compreendê-lo", ainda que seja sem dúvida um primeiro passo.
Em uma entrevista anos antes das manifestações de junho, um dos integrantes do Movimento Passe Livre disse que mal podia esperar a chegada das classes D e E ao Facebook. A capacidade de mobilização via redes sociais dos jovens de periferia hoje, e seu intercâmbio com filhos de classe média, muda esse panorama?
Sem dúvida existem novas oportunidades para a comunicação e a ação política através da mídia digital. Como os meios digitais são mais difíceis de controlar, eles tendem a ser mais alternativos e plurais. Praticamente todos os movimentos políticos importantes nos últimos tempos tiveram participação decisiva da internet. Mas é importante ressaltar que os meios digitais são apenas "meios", não criam ou produzem uma cultura política alternativa, ainda que possam fazer circular informações.
A reação dos lojistas, impetrando liminares para impedir essas reuniões, e triagens nas portas dos shoppings, é legítima?
Os shopping centers no Brasil sempre conviveram com uma classe que vinha para comprar e outra que vinha para passear e olhar as vitrines. Especialmente nos fins de semana, o público muda, com pessoas das classes populares com poucas alternativas de lazer e jovens com consumo reduzido e concentrado nas praças de alimentação. A novidade agora é que, em vez da deferência e vergonha das classes que se sabem inferiores, entra em cena certo "protagonismo de classe popular" - um fenômeno interessante que parece ter a cidade de São Paulo como epicentro, do tipo "é nóis na fita, mano". As tentativas de restrição e o medo advêm antes de tudo dessa mudança de atitude.
Se há mesmo conotação política nos rolês, por que eles ocorrem basicamente em estabelecimentos periféricos e não nos nobres?
Afirmar que existe conotação política nesses eventos não é o mesmo que dizer que sejam politicamente planejados. Se eles vão ou não desenvolver formas mais organizadas de intervenção no espaço público antes restrito à classe média verdadeira é uma questão em aberto.
E a polícia, que repetiu o minueto das manifestações de junho: repressão indiscriminada primeiro e, após a grita nos meios de comunicação, promessa de coibir crimes e abusos?
O problema real não é, em primeiro lugar pelo menos, nem da polícia nem das autoridades. É o apartheid social entre classe média europeizada e classes populares "bárbaras" de que falei. Ele cria regras não escritas e, por causa disso mesmo, muito eficientes - uma espécie de "constituição pré-jurídica" para a manutenção do racismo de classe que é nossa verdadeira lei maior. É esse apartheid que criou o tipo de polícia e a cultura da violência que temos. Ainda que a classe média - e suas frações mais conservadoras - não decida mais eleições majoritárias no Brasil, é ela que detém a hegemonia política e cultural e influencia não só amplos setores das próprias classes populares, mas também decide o que é julgado nos tribunais, o que é publicado nos jornais, dito na TV e o que é discutido nas universidades. Ela domina a esfera pública que decide o que é certo e errado na prática cotidiana real e é por isso que temos uma agenda de "políticas públicas informais" que inclui, por exemplo, matança indiscriminada e violência contra os pobres sem que ninguém - salvo em exceções dramatizadas pela mídia como o caso de Amarildo no Rio - seja responsabilizado. A ação do Estado e de seus órgãos é muito mais decidida por essas leis não escritas da sociedade do que pelos seus estatutos escritos para inglês ver.
O chamado 'funk ostentação', trilha sonora mais comum nos encontros, mostra a adesão incondicional desses jovens à cultura do consumo ou o sr. vê alguma ironia nessa exaltação tão superlativa de símbolos de status?
Não são apenas as classes populares que praticam uma adesão incondicional ao consumo. As classes do privilégio - tanto os endinheirados que concentram em poucas mãos a riqueza nacional em proporções grotescas, se compararmos com as democracias europeias, quanto a classe média verdadeira se definem e se hierarquizam entre si pelo consumo material, antes de tudo. É necessária grande incorporação de capital cultural - ou seja, a apropriação pelo indivíduo de formas de conhecimento útil ou valorizado socialmente - para fazer frente à força do prestígio social imediato que o consumo material provoca. Acho que as classes populares só desenvolvem uma distância crítica em relação ao consumo em circunstâncias excepcionais. Certas subculturas como a do funk ou do rap podem manter uma postura ambígua, ainda que em um meio também culturalmente carente.
Defensores dos avanços sociais dos últimos anos argumentam que algum tipo de inclusão suscita novas reivindicações e avanços. Já os críticos sugerem correção de rumo urgente, que troque o paradigma do consumo pelo de cidadania. O que o sr. acha?
Apesar de considerar os avanços sociais dos últimos anos muito tímidos, eles são relevantes dentro de um contexto de uma sociedade tão conservadora e socialmente irresponsável como a nossa. Então eu me alinho com os primeiros, já que é historicamente inegável que o aprendizado político e social, que pressupõe mudança paulatina de consciência se vem para ficar, segue a lógica do desenvolvimento passo a passo. De resto, essa separação entre inclusão social por consumo e inclusão social por direitos é completamente artificial e retórica. Todas as lutas das classes populares no Ocidente nos últimos 200 anos têm sido lutas pela redistribuição da riqueza social, material ou não, as quais, quando vitoriosas e institucionalizadas, se consolidam em novos direitos.
Que medidas seriam menos tímidas?
Para responder a essa pergunta é preciso falar da extrema pobreza de nosso debate público. É tanto uma pobreza de ideias quanto uma pobreza moral e política, que se reforçam mutuamente. Há uma percepção generalizada do comportamento humano como sendo unicamente determinado e explicado por estímulos econômicos. Desconhece-se, por exemplo, que sem autoconfiança, autoestima e reconhecimento social, não existe "comportamento econômico racional". Boa parte da limitação da política do atual governo reside aí. Mas não é só o governo. A sociedade também adere a essa cegueira economicista do mundo - e culpa as vítimas por seu próprio abandono social. É o que causa o desprezo visceral de boa parte de nossa classe média pelos pobres, uma cegueira que impede sentimentos efetivos de solidariedade e de responsabilidade política pelo destino coletivo. Todas as sociedades que lograram, com grau variável de sucesso, o resgate social e econômico das grandes massas empreenderam "revoluções de consciência coletiva", das quais estamos a anos-luz de distância.
Depoimentos de jovens que participam desses encontros poderiam ser resumidos na frase: ‘É só um rolê’. Não estaríamos assistindo apenas à velha e comum inconsequência juvenil de desafiar os pais e as normas preestabelecidas para se divertir?
Sem dúvida esse aspecto me parece fundamental. Existe um corte geracional que sugere aspectos da subcultura jovem enquanto rebelião contra regras sociais e figuras de autoridade. A novidade ameaçadora é que são jovens das classes populares que se rebelam contra as regras não escritas, mas "sentidas" e percebidas por todos nós, da divisão classista dos espaços de sociabilidade. A classe média verdadeira, "europeizada" - que se percebe como estrangeira na própria terra - se sente ameaçada pelos "bárbaros" das classes populares, em um fenômeno que tende a ter diversos novos capítulos no Brasil daqui para a frente.

Footing cibernético ( sobre rolezinho- ótimo)


19 de janeiro de 2014 | 2h 10

JOSÉ GARCEZ GHIRARDI, JOSÉ GARCEZ GHIRARDI É ADVOGADO , E PROFESSOR DA DIREITO GV/SP - O Estado de S.Paulo
O roteiro tem se repetido com variações pontuais: das redes sociais emerge um movimento que, quase imperceptível a princípio, ganha corpo, invade as ruas, monopoliza a mídia e assusta os governos. Um frenesi de reuniões de emergência e de medidas mais ou menos improvisadas se seguem, ao mesmo tempo que se multiplicam as avaliações de que agora, de fato, o País acordou. Passada a efervescência, entretanto, a impressão que fica é de que a energia da manifestação coletiva se dispersou antes de amadurecer e de frutificar em mudanças capazes de fazer jus à esperança que geraram. Por meio de promessas e paliativos, o ímpeto inicial é incorporado ao sistema antigo, e, pouco a pouco, a vida volta à rotina, até que a manifestação seguinte faça lembrar as anteriores e reinstale a ideia de um novo ciclo.
Em sua dinâmica de surgimento e difusão, as recentes manifestações partilham das características de outra formas de interação surgidas em nosso tempo, como as flash mobs, as raves e as campanhas de lançamento de produtos: profusa articulação midiática, intenso potencial de impacto, duração efêmera. Nada mais natural. As formas de fazer política necessariamente refletem os valores das sociedades em que surgem, mesmo quando a eles pretendem se opor. A vida social ocorre hoje, em larga medida, dentro e a partir das várias mídias. Elas substituem em grande parte, embora não totalmente, a função antes atribuída à praça pública: permitir encontros, embates, apresentar ideias.
Os políticos profissionais sabem disso. Sua luta pela hegemonia nesse espaço ajuda a entender, por exemplo, as quantias assombrosas com que remuneram os marqueteiros eleitorais, os confrontos entre órgãos de mídia e governos em várias partes da América Latina e o peso que se dá a segundos de tempo de televisão como critério para celebrar alianças. O funcionamento das manifestações a partir das mídias não deve, assim, causar estranheza, uma vez que está em harmonia com a lógica que informa contemporaneamente as relações sociais. Mas, se o meio é a mensagem, quais mensagens vão implícitas na forma de organização das recentes manifestações?
Andy Warhol multiplicava exponencialmente a mesma imagem, por vezes com mínimas variações, de tal forma que sua repetição obsessiva e sua exposição permanente acabavam por transformar em produtos semelhantes uma sex symbol e uma lata de sopa. Acredito que Warhol buscava denunciar, já na década de 1960, o processo (que hoje se acelerou) de commoditização de tudo, isto é, de transformação de todos os elementos da vida em potenciais produtos de consumo.
No processo, as diferenças substantivas entre ideias, pessoas, valores e propostas vão ficando homogeneizadas em sua condição de mercadoria potencial. As manifestações políticas não estão livres desse risco. Como nas obras de Warhol, variações importantes entre os movimentos recentes ficam obscurecidas pelo modo como se apresentam e como são apresentados nas múltiplas mídias. Quem há de negar, por exemplo, que, embora haja conexões importantes, não há nem de longe identidade absoluta entre protestar por transporte gratuito, fim da corrupção, segurança, melhorias nos presídios e livre acesso aos shoppings, por exemplo? Que muitas das questões aí envolvidas solicitam desenhos de solução não evidentemente conciliáveis? Mas essas diferenças, que têm enorme impacto em nossa vida quotidiana, ficam amortecidas pela força da série ininterrupta e rapidíssima de imagens em que são traduzidas.
Nesse processo de substituição vertiginosa de objetos midiáticos, os movimentos arriscam paradoxalmente diluir seu potencial de contribuição de longo prazo na medida em que as ações podem tender a descolar-se da substância das reivindicações e se tornar a própria mensagem, a se tornar eventos que se justificam, se completam e se exaurem em si mesmos. Com isso, podem inadvertidamente reforçar elementos desse sistema que commoditiza tudo, enredando-se na própria lógica que procura combater.
Por isso, importa não minimizar o significado de, neste momento, os shoppings terem sido privilegiados pelos jovens como símbolo de suas aspirações de cidadania e de inclusão. Esses estabelecimentos não são apenas os ícones por excelência da sociedade de consumo, mas constituem também o lócus onde se desenvolvem novas formas de convívio entre as pessoas. O rolezinho, versão atualizada do footing na praça do coreto, é o momento em que os relacionamentos virtuais se tornam, finalmente, presenciais. Que isso se dê no espaço público/privado do consumo não é casual e é indicativo da complexidade dos valores em jogo.
O processo de reinvenção de nossa vida política vai provavelmente gerar mais episódios como os de agora, mesmo que apenas como explicitação do esgotamento de um modelo político. Eles têm assim, função importante e ajudam a repensar o que desejamos como coletividade. No entanto, como todo movimento social, eles incorporam também as agudas contradições do tempo, e elas precisam ser enfrentadas em profundidade.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Flashback (pauta Belas artes)


Pipoqueiro por 32 anos do antigo Cine Belas Artes, Josafá se prepara para voltar à cena com a reabertura do espaço

25 de janeiro de 2014 | 15h 33

Vivian Codogno - O Estado de S. Paulo
A panela está fumegante. No carrinho, palha de milho, azeite, margarina. Para adoçar o fim de tarde, coco caramelizado e amendoim com casquinha de chocolate. Tem também a castanha de caju com manteiga e azeite, receitinha caseira. O milho custa R$ 4 ou R$ 5, conforme o tamanho. O vaivém não para. A saída da Estação Paulista do metrô indica que ali, na Rua da Consolação, há muitas pernas para pouco espaço.
O paraibano que hoje vende milho cozido, quer voltar ao estou das pipocas: 'Fazia R$ 250 por dia' - Evelson de Freitas/Estadão
Evelson de Freitas/Estadão
O paraibano que hoje vende milho cozido, quer voltar ao estou das pipocas: 'Fazia R$ 250 por dia'
Se a freguesia é boa, o dono do carrinho, Josafá Batista de Sena, já viu movimento maior no ponto em que esteve durante 32 anos, a poucos passos, no número 2.423 da mesma Rua da Consolação. Lá funcionava o histórico Cine Belas Artes, nas portas do qual Josafá exerceu seu ramo de especialidade – a pipoca – e o faturamento, conta, estourava que era uma beleza.
É a reportagem do Aliás a portadora da boa nova – confirmada essa semana – da reabertura do cinema. Josafá tira o boné, olha para cima e, ainda sem acreditar muito, exclama: "Se Deus quiser!" Há quase três anos, quando o Belas Artes fechou, ele precisou mudar de ponto e, ligeiramente, de especialidade – ainda o milho, mas cozido. Seu rendimento mensal sofreu um corte seco. Hoje, diz que consegue levar para casa por volta de R$ 100 por dia. Mas nos anos de ouro da pipoca, garante que em dias bons faturava até R$ 250. Josafá nem precisa pensar muito diante da perspectiva de redobrar seu faturamento mensal: "Se eu vou voltar para lá? Lógico! Meu ramo é pipoca. Se precisar, trabalho lá das 11h às 23h", se empolga, de jaleco azul com o símbolo do Corinthians bordado atrás.
Faltam apenas alguns detalhes para que a parceria entre a Caixa Econômica Federal, o novo patrocinador, a Prefeitura de São Paulo e o diretor do Belas Artes, o cineasta André Sturm, seja firmada. Os valores dos contratos ainda não foram divulgados e a previsão para a reabertura é entre maio e junho próximos. Com o nome Caixa Belas Artes e uma sala direcionada à exibição de filmes produzidos em São Paulo, a esquina da Rua da Consolação terá novamente seu Cinema Paradiso paulistano, que tanta saudade traz a Josafá. Sturm faz questão de frisar que o cinema voltará em grande estilo, para alegria dos cinéfilos da cidade: "Estamos afinando os últimos detalhes. O prédio está razoavelmente em bom estado, mas faremos uma reforma geral para modernizá-lo".
Naquele dia 17 de março, depois de diversas tentativas de negociação, O Águia (EUA, 1925), clássico do cinema mudo dirigido por Clarence Brown e estrelado por Rodolfo Valentino, era exibido pela última vez na Sala 5 do Belas Artes. O diretor do cinema não conseguia bancar o aumento de R$ 85 mil para R$ 150 mil no aluguel do prédio, exigido pelo proprietário, e teve que entregar o imóvel. Curiosamente, foi durante os créditos finais que Josafá desempenhou seu melhor papel: "Durante todo o tempo em que trabalhei lá, a época em que mais vendi pipoca foi quando o Belas Artes estava para fechar. Um estouro! As filas chegavam até a calçada todos os dias", relembra, com brilho nos olhos.
Embora o pipoqueiro nunca tenha sido um frequentador das salas de exibição, quando sobrava um tempinho entrava e assistia a um ou outro filme, convidado pelos funcionários da bilheteria. Lembra de ter visto Pixote, de Hector Babenco, e, por duas vezes, Cidade de Deus, de Fernando Meirelles. "Cada filmão! E tudo na faixa. Mas eu não tinha muito tempo não. Minha vida é trabalhar, minha filha. Tanto que nem sei dizer se gosto mesmo de filme. E se é pra ver, que seja comédia e me faça rir."
Em 1967, quando o Belas Artes foi inaugurado, Josafá completava 5 anos de idade em Bananeiras, na Paraíba, sua cidade natal. Foi só em 1979, época em que os governos militares ainda ditavam as regras no Brasil, que o pipoqueiro estreou sua primeira sessão em frente ao Belas Artes. Havia chegado fazia pouco em São Paulo, escondido dos pais, pois sonhava conhecer a capital. Aos 17 anos, magrinho, com corte de cabelo mullet, começou vendendo doce de coco. Precisou enfrentar a concorrência dos ambulantes mais antigos, que o botavam para correr. Morava em Cotia e vinha para São Paulo todos os dias. O carrinho ficava na garagem de um prédio vizinho, por camaradagem do síndico. Hoje, com 52 anos, Josafá é zelador desse mesmo prédio e, em troca, mora em um apartamento sem pagar aluguel desde que se divorciou, em 2004. As fotos das três filhas, Isabella, de 18 anos, e as gêmeas Rafaella e Gabriella, de 15, ficam na carteira.
Nas três décadas de trabalho na Rua da Consolação, Josafá pôde testemunhar, além das mudanças que puseram fim à ditadura no País, o incêndio que destruiu duas das salas do cinema, em 1982. Nunca foi possível esclarecer a origem do fogo, mas no primeiro andar, na sala da gerência, foram encontrados um maçarico e um cofre com sinais de arrombamento, o que indica que o incêndio pode ter sido criminoso. Josafá não sabe dizer o que causou as chamas, mas à época, como agora, durante o fechamento do cinema, soube se virar: durante a reforma do prédio, vendia quentinhas para os operários. No ano seguinte, o Belas Artes foi reinaugurado com seis salas, formato com o qual permaneceu até seu fechamento.
Nos anos 1980, em uma época em que a escolha do cinema esbarrava na importância de ver e ser visto, o Belas Artes se tornou uma referência cultural para São Paulo. As filas para as sessões dobravam a esquina e muitos espectadores ficavam do lado de fora. Por causa dessa movimentação, não era difícil encontrar os próprios atores e diretores dos filmes estrelados na casa. Intelectuais, artistas e formadores de opinião também marcavam presença.
Durante os 32 anos em que trabalhou na frente do cinema, Josafá conviveu com visitas ilustres que passaram por ali. "Silvio Santos, Paulo Autran, Carla Perez, Raí. Se eu te disser para quantos famosos eu já vendi pipoca! Isso aqui era cinema de gente da alta! Até as filhas do Abílio Diniz frequentavam", conta. "Eu tinha um caderno de 120 páginas com autógrafos que peguei aqui. Pena que perdi..."
O pipoqueiro teve a honra de contracenar com alguns desses famosos na calçada da Consolação. Olhar distante, ele se recorda, com carinho, de quando vendeu pipoca para o ator Tarcísio Meira. "Quando ele chegou perto do carrinho, um monte de gente rodeou ele para pedir autógrafo. Vendi pra todo mundo. Ele até brincou que ia pedir uma comissão por ter enchido o meu carrinho de gente."
A bilheteria e a bombonière do cinema nunca aceitaram pagamento em cheque, e Josafá estava sempre a postos para a ajudar. Trocava cheques e recebia uma caixinha extra, muitas vezes de pessoas famosas. Depois, o pipoqueiro aproveitava para alimentar o imaginário afetivo dos que não tinham, como ele, a oportunidade de estar tão perto de ídolos tão distantes: "Sabe o que eu fazia? Eu não descontava os cheques e vendia aos fãs. Uma vez vendi um cheque do Raí para um são-paulino roxo. Pelo que sei, ele não descontou até hoje. Mandou até plastificar". E ri até os olhos ficarem pequenos.
Outro espetáculo à parte para Josafá era o comportamento dos frequentadores. Da calçada, o pipoqueiro se distraía a observar a fauna humana entre as filas de bilheteria e as salas de exibição. Testemunhou inícios de namoro e fins de casamento de gente que ele não conhecia. "Eu via cada coisa! Teve uma briga de casal em que a discussão começou já na fila da bilheteria. A moça tirou o sapato e bateu na cara do namorado, imagina só. Depois, ela correu para o estacionamento, que era aqui ó (aponta para a loja Pernambucanas) e ele veio atrás. Dali a pouco já estavam voltando, abraçadinhos. Cada coisa!"
O Belas Artes daqueles dias era o resultado do trabalho e da dedicação de muita gente. Antes da nova gestão, em 2005, o cinema já se encontrava a ponto de encerrar as atividades. A programação não tinha personalidade, os equipamentos eram sucateados, frequentadores buscavam alternativas na Avenida Paulista. Quando André Sturm assumiu, em parceria com a produtora O2 Filmes, do diretor Fernando Meirelles, e com o patrocínio do banco HSBC, o cinema voltou ao prumo. E as salas viviam repletas de um público ávido por filmes como Medos Privados em Lugares Públicos, do diretor francês Alain Resnais, que ficou em cartaz por dois anos no cinema.
Josafá se diz amigo dos antigos funcionários até hoje, mesmo que se refira eventualmente ao "menino", "aquele moço", "o senhor da livraria", "a mocinha da bilheteria". De Sturm, ele se lembra da despedida. "No dia em que o cinema fechou, a mãe do seu André pediu para tirar uma foto comigo." Mas é ao falar de outro deles que o pipoqueiro se emociona de verdade: o relações públicas Fernando Pereira, que também trabalhou no cinema até seu fechamento. Meses depois de o Belas Artes fechar, o funcionário cometeu suicídio. "Fernando era muito amigo meu. Ele sempre me dava conselhos quando me separei da minha mulher. Fiquei tão sentido quando descobri que ele foi embora... Era depressivo, mas um cara muito criativo. Eu falava, ‘Fernando, parece que você tem quatro cérebros’."
Já é noite e o vendedor de milho cozido decide levar seu carrinho até a esquina da Avenida Paulista, que está mais bem iluminada. Nos poucos passos até lá, ele para em frente ao Belas Artes e lamenta o abandono que toma conta do prédio. Toca com as mãos a porta de tapume escuro que hoje veda a entrada e lamenta: "Parece um banheiro público". Mas logo retoma o sorriso e, sonhando com o dia em que verá essas portas abertas novamente, segue para onde as luzes estão acesas. Os créditos não sobem, pois o filme ainda não terminou.