Como reagirão os juízes do Trabalho chamados a decidir entre o artigo 444 e o novo § único?
30 Novembro 2017 | 03h01
Diz o artigo 1.º do Código Civil: “Toda pessoa é capaz de direitos e obrigações na órbita civil”. E “a personalidade começa do nascimento com vida”, completa o artigo 2.º. Entre o nascimento e a maioridade, adquirida aos 18 anos, o homem passa por duas fases: a da incapacidade absoluta, encerrada aos 16 anos, e a da incapacidade relativa, perdurável dos 16 aos 18.
São incapazes, “relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer”, os maiores de 16 e menores de 18 anos, os ébrios habituais, os viciados em tóxicos e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido, “os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo” e “os pródigos” (Código Civil, artigos 3.º e 4.º). O artigo 5.º conclui: “A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil”.
Nem sempre foi assim. Segundo o Código de 1916, apenas aos 21 anos a menoridade tinha fim. O passar do tempo e a evolução dos costumes levaram o legislador a admitir bastarem 18 anos para que o cidadão, homem ou mulher, se torne apto a tomar conta da própria vida. A plena capacidade para atos da vida civil poderá ser conquistada, por maior de 16 anos, pela emancipação, pelo casamento, por colação de grau em curso superior de ensino ou pelo estabelecimento civil ou comercial, se o fizer com economia própria (Código Civil, artigo 5.º).
Válidas para a vida civil, as normas de Direito Civil perdem eficácia quando o homem, ou a mulher, passa a participar da vida econômica na posição de empregado. O paradoxo legal é evidente: torna-se capaz aos 16 anos para ser patrão, mas continua incapaz enquanto empregado.
A expressão hipossuficiente não é encontrada na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), pois se oculta no interior do artigo 3.º, que traz a seguinte definição: “Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”. O perigo consiste no termo “dependência”. O dispositivo estaria melhor dizendo: “Empregado é a pessoa que trabalha de maneira não eventual para empregador, mediante salário pago por hora, dia, semana ou mês”.
A CLT, conforme revelado na Exposição de Motivos, adota o princípio da superioridade da ordem estatutária sobre os contratos, “porque a liberdade contratual pressupõe a igualdade dos contratantes enquanto o Direito Social reconhece, como um fato real, a situação desfavorável do trabalhador e promove a sua proteção legal”. Levando ao extremo a visão tutelar do mundo do trabalho, equiparou os empregadores no artigo 2.º, parágrafo 1.º, e os empregados no artigo 3.º, de tal sorte a não reconhecer distinções “relativas à espécie de emprego e à condição do trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual”. O manto tutelar do Estado cobre os assalariados, independentemente da qualificação, da função, da posição hierárquica e do salário. Houvesse igualdade, prevaleceria o contrato; como a lei presume dependência, predomina a tutela.
Hipossuficiente, segundo o Dicionário Aurélio, “diz-se de, ou pessoa que é economicamente fraca, que não é autossuficiente”. O termo não é privativo de empregado. O microempresário pode ser hipossuficiente, o mesmo sucede com o pequeno agricultor, o profissional liberal, a dona de casa, o aposentado pelo INSS, cujos proventos mal lhe permitem comprar medicamentos. Nem todo trabalhador, entretanto, deve integrar a classe ou categoria dos hipossuficientes, só pelo fato de ser empregado. O diretor empregado de instituição financeira, de indústria automotiva, de estatal ou sociedade de economia mista por certo goza de condições de vida distintas de alguém economicamente fraco.
Conquanto seja invisível no texto, a presunção da hipossuficiência é forte o bastante para influir em milhões de contratos, alimentar a doutrina e fundamentar decisões da Justiça do Trabalho. Muita tinta se gastou no debate sobre a respectiva natureza jurídica, se jurídica, econômica, técnica ou social. Prevaleceu, afinal, a doutrina da natureza jurídica. Na prática, todavia, em qualquer relação contratual as partes adquirem direitos e contraem obrigações. Do mesmo modo que o empregado é obrigado a trabalhar, o empregador tem o dever de lhe pagar e de lhe assegurar o conjunto de direitos previstos em lei ou norma coletiva. Afinal, quem se subordina a quem? Ambos estão reciprocamente ligados por vínculos de direitos e obrigações, sendo incorreto presumir-se a hipossuficiência como estado natural e necessário de todo e qualquer empregado.
A Lei n.º 13.467/2017 adotou dois requisitos para limitar a hipossuficiência trabalhista. Segundo a redação do parágrafo único acrescido ao artigo 444 da CLT, ganha capacidade contratual plena o “empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral da Previdência Social” (R$ 11.062,00). Preenchidas ambas as exigências, deixaria de ser hipo e passaria a plenamente capaz, como no Código Civil, habilitando-se à livre estipulação das relações individuais de trabalho. O contrato que celebrar, ou as alterações contratuais que porventura negociar com o empregador, com fundamento no citado parágrafo único, sobrepor-se-ão “às disposições (legais) de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos e às decisões das autoridades competentes”, como prescreve o artigo 444? Estamos diante de radical mudança de orientação legal, aparentemente contrária ao espírito tutelar da CLT. Como reagirão os juízes do Trabalho ao serem chamados a decidir entre o artigo 444 e o novo parágrafo único?
Em Direito, escreveu experiente jurista, nada pior do que o mal definido.
*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho