Na terça-feira, a Câmara aprovou em menos de dois minutos a regulação do lobby, que resultou da fusão dos Projetos de Lei 4.391/21, 1.202/07 e 1.961/15. O que, em princípio, parecia caminhar bem, com a aparente incorporação das dez emendas apresentadas pela sociedade civil (rede de advocacy colaborativa – RAC), desandou e deteriorou-se. Aproveitando-se da percepção consolidada de que seria positiva tal regulação, utilizou-se do expediente – que vem sendo banalizado – da urgência de votação, que notoriamente sacrifica a maturação do debate de um projeto de lei.
Alguns explicam o surgimento da expressão lobby a partir de fatos que remontam à época do mandato de Ulysses Grant (1869-1877), ex-presidente estadunidense, que, fumando charutos no lobby de certo hotel, era abordado por pessoas e grupos para a exposição de reivindicações para ter sobre ele influência em decisões. O fato começou a se tornar habitual, ao ponto de Grant adquirir o hábito de chamar os lobistas até lá para ouvir seus pontos de vista.
Agora, fez-se uso oportunista do clima de transição política e da Copa do Mundo no Catar, sacrificando “de boiada”, mais uma vez, a necessária discussão democrática e a sadia e imprescindível escuta da sociedade civil e dos especialistas em relação à versão final do texto, após o apensamento de dois projetos velhos, um deles datado de 15 anos atrás.
Infelizmente, isso está se tornando verdadeiro método político, devendo-se lembrar o episódio da reforma política, quando se pretendeu aprovar no “tratoraço” uma mega-alteração que ensejou reação da sociedade civil, unida e organizada no movimento Freio na Reforma, que obteve êxito na contenção da iniciativa. No segundo semestre do ano passado, chegou-se a cogitar aprovar PEC que subjugaria o Supremo Tribunal Federal (STF) ao Legislativo em decisões não unânimes do tribunal, a chamada PEC do golpe do Centrão, de óbvia inconstitucionalidade.
Para ter uma ideia dos riscos a que estamos chegando no tema do lobby, aprovou-se a absurda legitimação da oferta de presentes caros a agentes públicos, bem como sua participação em seminários e feiras luxuosas, por iniciativa de empresários, que poderão legalmente convidar parlamentares e outros agentes públicos, naturalizando essas práticas como se inexistisse conflito de interesses. Temos aí forma disfarçada e requintada de legalizar a corrupção.
O texto aprovado abre brecha indevida para a aplicação de sigilos sobre dados de interesse público, além de desconsiderar o lobby que não ocorra de forma presencial (por telefone ou redes sociais). Deixa de fora a imperiosa necessidade de divulgação da agenda de agentes públicos, obstruindo a transparência e a fiscalização, e não garante o direito à participação social no processo de tomada de decisão.
Além disso, é absolutamente imprescindível o registro dos documentos trocados nas tratativas mantidas ao longo das relações institucionais ora reguladas. Não é suficiente garantir acesso paritário – é vital registrar os respectivos documentos trocados nessas tratativas. O projeto aprovado não contempla essa questão vital, e isso é gravíssimo.
Dialogar é exercício absolutamente imprescindível no Estado Democrático de Direito. E, a meu ver, fazer lobby nada mais é do que construir diálogo limpo. Mas as abordagens e os documentos correlatos devem ser necessariamente registrados, o direito a abordar deve ser equilibrado, justo, e deve haver ética e transparência total e abrangente nesta prática.
O Brasil assumiu sérias responsabilidades perante o mundo ao se tornar subscritor do Pacto dos Governos Abertos, em 2011, ao lado de Estados Unidos, Grã-Bretanha, Noruega, África do Sul, México, Filipinas e Indonésia. Deve ser sempre modelo internacional de transparência e governança aberta.
Afinal, sempre existiu lobby em prol de interesses nobres, feito de maneira honrada, em busca da paz, por exemplo, assim como existem lobistas que fazem trabalhos escusos por baixo do pano, o que torna evidente que é positiva a ideia da regulação.
Mas a sociedade civil não vem sendo respeitada no debate democrático, não lhe sendo assegurados espaços de escuta na construção desta regulação, como deveria. Isso gera perdas no aperfeiçoamento do sistema, em direção à governança aberta, ética, acessível ao povo, republicana e transparente, que nada deve ter a esconder, como se fez no Chile, cujo modelo de regulamentação do lobby é um bom exemplo e ponto de partida a ser seguido por nós, fazendo os ajustes necessários de adaptação à nossa realidade.
Sem dúvida, há elementos positivos no projeto aprovado, mas a forma açodada da tramitação, mais uma vez, desrespeitou os valores republicanos e democráticos. Há ajustes importantes a serem feitos no âmbito do Senado, para que não se ignorem temas de alta relevância, objeto de recomendações da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), na qual o Brasil postula assento.
É grave que a lei não exija registro de documentos trocados em tratativas de relações institucionais, não coíba conflitos de interesses, não preserve a transparência e institucionalize a aceitação, por agentes públicos, de presentes luxuosos e convites para feiras e seminários nababescos como algo natural, que implica legalizar a corrupção.
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PROCURADOR DE JUSTIÇA NO MPSP, DOUTOR EM DIREITO PELA USP, ESCRITOR, PROFESSOR, PALESTRANTE, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO ‘NÃO ACEITO CORRUPÇÃO’
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