quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Quem se lembra do Enéas?, Elio Gaspari, FSP

 Desde 1959, quando o rinoceronte Cacareco teve 100 mil votos para uma cadeira de vereador na eleição municipal de São Paulo, os candidatos pitorescos ganharam um espaço inédito. Só na noite de 6 de outubro se saberá se ganharam peso político. As pesquisas de outros estados mostram o contrário. Na vida real, a baixaria é alimentada por dois candidatos, só em São Paulo. No Rio, Recife, Porto Alegre e Belo Horizonte e nas outras capitais, a campanha vai bem, obrigado.

Depois de Cacareco, vieram fenômenos como Enéas Carneiro e o comediante Tiririca. Enéas disputou três vezes a Presidência da República e chegou a conseguir 1,4 milhão de votos. Em 2002, elegeu-se deputado federal por São Paulo com a maior votação da época, 1,6 milhão de votos. Reelegeu-se em 2006 e morreu no ano seguinte. Tiririca elegeu-se deputado federal por São Paulo em 2010, também como o mais votado (1,3 milhão de votos), e está até hoje na Câmara.

homem careca de farta barba preta, bigode preto e óculo preto
Enéas Carneiro na campanha presidencial de 1998 - Rosane Marinho - 1998/Folhapress

Cacareco morreu no zoológico em 1962. O quadrúpede passou pela vida pública sem deixar vestígios. Seus similares também. Ganha um archote para produzir uma queimada quem souber das contribuições de Enéas e Tiririca para a vida do país. Representaram um desconforto dos eleitores, nada mais que isso. Ninguém votou em Cacareco, Enéas ou Tiririca esperando alguma coisa. Afinal, o voto é obrigatório. Se não fosse, esse eleitor ficaria em casa.

Um cidadão que acompanhou por dez anos a Operação Lava Jato e viu seu funeral melancólico tem razões para não acreditar em coisa nenhuma. Outra coisa é entregar a administração de sua cidade ao produto de uma vaia. Os candidatos pitorescos vestem-se com mantos radicais para nada. Fanáticos sem causa, são asteriscos que acabam esquecidos.

Tudo isso pode fazer sentido, mas falta incluir no quadro o fenômeno Jair Bolsonaro, saído da avalanche eleitoral de 2018. Seu filho Eduardo quebrou o recorde de Enéas, elegendo-se para a Câmara com 1,8 milhão de votos. Quatro anos depois, quando o pai disputava a reeleição, teve menos da metade de eleitores.

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A eleição de 2018 foi única e ainda reverbera. Lula, o principal candidato, estava na cadeia, trancado por decisão do Supremo Tribunal Federal, soprada pelo comandante do Exército. Poucos países passaram por experiências semelhantes.

A maré conservadora e antipetista elegeu os Bolsonaro. No Rio, o anônimo juiz Wilson Witzel capturou o governo do estado e foi deposto em 2021. O Supremo soltou Lula, os generais voltaram aos quartéis e, no Rio, o candidato de Bolsonaro, sem a plumagem dos pitorescos, patina.

As pesquisas dos próximos dias dirão qual foi o efeito da cadeirada de domingo no debate da TV Cultura e, na noite de 6 de outubro, virá o juízo final. O candidato Pablo Marçal é qualificado como "influenciador". Trata-se de um vago anglicismo. Na mesma noite, se saberá se existe bolsonarismo, ou se ele é um vagão atrelado a um locomotiva conservadora.

O protesto encarnado por Cacareco era muito mais inteligente. O rinoceronte nunca disse besteira nem foi a debates. Para quem está a fim de jogar o voto fora, limitando-se a mostrar seu desconforto, aqui vão duas sugestões de candidaturas, de animais que alegram o Zoológico de São Paulo:

1 - Pepe é um chimpanzé, maior de idade.
2 - Sininho é uma fêmea de hipopótamo, filha da falecida Tetéia, a decana do pedaço.

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Alvaro Costa e Silva - O circo das cadeiradas, FSP

 O chamado antissistema é o próprio sistema em ação. É a maneira de fazer política que conquista eleitores pelo menos de uns 30 anos para cá, oficializando governos liderados por comediantes que se valem da sedução da cultura de massa. Com o avanço das redes sociais, o esquema se fortaleceu: personalidades inventadas, mitos forjados, eventos falsos, mentira passando por informação verdadeira. Circo sem pão.

Ao chamar Datena de "arregão" no debate, Marçal ganhou a cadeirada ao vivo. Cena típica dos mais apelativos programas de auditório. Não por acaso, o apresentador Ratinho convidou os dois para brigarem diante de suas câmeras: "Pode meter o braço".

O candidato provocador agradece a agressão, pois a baixaria o põe de novo na berlinda. Discute-se se o coach é um Bolsonaro reboot, que avança na mesma faixa de votos e ameaça jogar o capitão definitivamente para a reserva. Ou se é um Celso Russomanno reciclado, que vai perdendo gás ao longo da disputa.

Marçal, ao contrário do que se acredita, é bem tradicional em intenções e gestos. Sua campanha expõe dois pilares da política brasileira. O primeiro é o descumprimento sistemático da lei eleitoral. O segundo é a suspeita cada vez mais forte da penetração do crime organizado nas estruturas do Estado.

Para ficar em só exemplo, e dos mais comuns: os repórteres Aline Ribeiro e Rafael Soares mostraram que um candidato a vereador de Nilópolis, na Baixada Fluminense —que nas redes postava vídeos dizendo ter o sonho de ver as pessoas conversando em frente ao portão de casa sem serem assaltadas— foi condenado a mais de sete anos de prisão por integrar uma milícia.

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Com 14% da população vizinha de organizações criminosas, segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, é escancarada a interferência de facções como PCC e Comando Vermelho nas eleições municipais. As cidades com mais casos de atentados e assassinatos de lideranças comunitárias registraram uma queda acima da média nacional no volume de candidaturas. Com o tempo, só vão ficar os palhaços e os bandidos.

Vacilou, dançou, Dora Kramer FSP

 Um dos motivos entre os vários que puseram o PSDB na rota do infortúnio foi a ausência de posicionamento nítido desde que deixou o Planalto. E até antes disso, quando na eleição de 2002 os tucanos se dedicaram ao exercício do equilibrismo.

Posto em desassossego na corda bamba, o tucanato saiu derrotado. Em seguida fez oposição tímida aos governos petistas e, depois do impeachment de Dilma Rousseff (PT), apostou na lei do menor esforço, acreditando que na eleição de 2018 seria beneficiário do recall da quase vitória de Aécio Neves em 2014.

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O prefeito Ricardo Nunes (MDB), candidato à reeleição em São Paulo, e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) participam de evento no batalhão da Rota - Zanone Fraissat/Folhapress

De novo perdeu e nunca mais se recuperou. Aí o erro dialoga com falha no senso de oportunidade. Mas há equilibristas que se equivocam por excesso de oportunismo. É o caso de Jair Bolsonaro (PL). Fosse mais atento à dinâmica da política como ela é, o ex-presidente levaria em conta os ditames da história para perceber que a deposição dos pés em duas canoas dificilmente dá camisa a alguém.

Quem faz política precisa ter nitidez de posição. O muro é um lugar confortável, mas eleitoralmente ineficaz. Saber como e quando pular do barco é uma arte na qual o centrão é catedrático.

Na disputa à Prefeitura de São Paulo, o apoio errático de Bolsonaro ao prefeito Ricardo Nunes (MDB) com sinais de apreço dirigidos a Pablo Marçal (PRTB) para disfarçar a evidência de que o voto dessa direita não tem dono denota insegurança nas escolhas.

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Sobe naquela corda cujos movimentos tortuosos podem levar a derrubadas estrepitosas. Os "nítidos" nem sempre ganham, mas acumulam forças na derrota. Lula, PT e todas as suas idas e vindas são o exemplo mais notável.

Conseguiram ganhar cinco eleições presidenciais em oposição a avanços sociais e econômicos como o Plano Real, a privatização das telecomunicações e outros tantos. Como? Tendo a chamada firmeza ideológica.

Goste-se ou não do resultado, sendo o conteúdo muitas vezes para lá de questionável, fato é que o eleitorado não é dado a meios-termos. Notadamente em tempos de torcidas radicalizadas, o líder que vacila candidata-se a perder seu lugar na fila.


Quem é o eleitor evangélico de Marçal?, Juliano Spyer, FSP


Se der a lógica, haverá apenas uma vaga em disputa na eleição paulistana: a de adversário de Guilherme Boulos no segundo turno. O candidato do PSOL aparece em terceiro lugar em algumas pesquisas, mas deve ser impulsionado pelo voto útil de eleitores que, estando mais à esquerda, não querem dois representantes do bolsonarismo disputando o comando da cidade.

Marçal e Nunes, cada um a sua maneira, estão engajados em conquistar o eleitor evangélico. A estratégia do prefeito é atuar institucionalmente, dialogando com pastores e lideranças. Ele não é evangélico, mas tem o apoio da bancada evangélica na Câmara Municipal e de líderes influentes, como o pastor Silas Malafaia.

O ex-coach, por sua vez, aposta nas redes sociais para falar diretamente com os eleitores. Ele usa a visibilidade que conquistou para fazer associações que o público evangélico entende —por exemplo, apresentando a si próprio como Davi, Bolsonaro como Saul e o comunismo como Golias— e para discutir aborto, como fez na visita à Bienal do Livro na semana passada.

Se a disputa estivesse ocorrendo no início deste século, o resultado seria previsivelmente favorável ao prefeito, mas a internet mudou tudo. Hoje o termo "evangélico" se tornou mais amplo e flexível, como escreveu a antropóloga Christina Vital, em artigo nesta Folha, sobre o crescimento das "igrejas digitais".

Até recentemente, o evangélico era alguém que frequentava uma igreja física regularmente e, por isso, estava submetido à autoridade de um pastor. Esse grupo ainda existe, mas hoje temos evangélicos cuja ligação com a igreja é mais instável. Como o próprio Marçal, eles não congregam regularmente e vivem o cristianismo como um estilo de vida, não como religião.

Pablo Marçal em campanha na rua Santa Ifigênia - Rafaela Araújo/Folhapress

E quem é esse eleitor? Ele é predominantemente jovem, um "batalhador" egresso do ensino público que sonha ascender socialmente. Para ele, o cristianismo é uma ética, ou seja, um conjunto de princípios que o ajudam a sobreviver diante das dificuldades do dia a dia.

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Se frequenta uma igreja, essa igreja é possivelmente uma de bairro, para os mais pobres, ou igrejas badaladas, como a Batista da Lagoinha, ou de médio porte, como a Videira, de onde vem Marçal. Mas também há nesse grupo o crente desigrejado, que se afastou por motivos diversos, como falta de tempo ou desentendimentos, e ainda o "simpatizante", que considera suficiente o acesso à religião por meio digital.

A guerra está intensa. Apoiadores de Nunes circulam trechos de vídeos em que Marçal afirma que não paga dízimo e se compara ao rei Salomão.

O ex-coach responde constrangendo líderes. "Eu quero fazer um desafio: qualquer pastor que quiser apoiar o Nunes, que fale publicamente", provocou na sabatina d’O Antagonista, na sexta (13). "E não faça como o [apóstolo] Estevão Hernandes, que postou e apagou, porque os próprios membros não estão com ele."

Se a partir de Bolsonaro o eleitor evangélico entrou no mapa da política, visto muitas vezes como uma categoria monolítica, neste ano descobriremos como esse campo se divide. E quem é mais influente.


Com anistia, direita no Congresso nega responsabilidade individual de seus militantes, FSP

 A democracia é um regime político baseado em direitos e liberdades no qual estas são tão amplas e vigorosamente defendidas que não se podem permitir concessões que isentem as pessoas das consequências previsíveis de seus atos e da responsabilidade por suas decisões. A democracia é, essencialmente, um sistema de responsabilidades e responsabilizações —o preço da liberdade em um mundo adulto e emancipado.

Se vivêssemos sob um regime absolutista ou uma ditadura, nossa vontade política estaria submetida à do monarca ou ditador e de forma alguma poderíamos ser responsabilizados pelas consequências de decisões que nunca foram, de fato, nossas. A luta por regimes democráticos, por outro lado, parte da convicção de que todo ser humano é capaz de usar plenamente a razão e encontrar formas negociadas de convivência política, baseadas na liberdade e responsabilidade individuais. Livramo-nos do peso da obediência cega e da impossibilidade de divergir, pois nos consideramos capazes de suportar o fardo da responsabilidade por nossas decisões livres.

Por isso, tenho dificuldade com aqueles que insistem em oferecer ou requerer desculpas, imunidades, isenções, complacência e perdão aos cidadãos, ou a parte deles, como "o povo" ou "os pobres", por suas escolhas políticas. E não são poucos os que fazem isso.

A esquerda, por exemplo, que idolatra "o povo" —entendido como o conjunto das classes subalternas em sociedades divididas em classes, conforme a definição do filósofo italiano Antonio Gramsci—, tem enorme dificuldade em aceitar que esse povo nem sempre retribui esse amor.

Ser de esquerda frequentemente implica oferecer álibis que isentem essa classe social de responsabilidade por suas escolhas em eleições democráticas.

Na ilustração, um losango de papel, dobrado como uma sanfona de seis partes. A cor do papel começa amarelo, depois verde, alternando até o último.  Nas cinco primeiras partes, rostos de pessoas: de esquerda para a direita, a primeira com uma faixa acima dos olhos e a boca séria; na segunda, o olhas se vê dentre duas faixas, a boca começando a sorrir; na terceira, sem nenhuma faixa sobre os olhos, a boca mais aberta preparando a risada... na quarta, a boca aberta numa quase gargalhada... na quinta, essa sim com a boca aberta numa enorme gargalhada.  A sexta parte da sanfona de papel, tem apoiado na base um pé de cabra e fica pendurado uma cadeado aberto. Estão todos liberados (?)
Ariel Severino/Folhapress

Já a direita, nem se fala. A doutrina de Olavo de Carvalho no Brasil resume-se a uma teoria da conspiração que culpa um suposto esquema mundial envolvendo a esquerda, o comunismo, as universidades, o globalismo e jornalistas liberais pela perpetuação do esquerdismo como ideologia dominante. Retirar o véu, desvelar o código, parar a matriz —são todas formas metafóricas de afirmar que, no estado atual das coisas, as pessoas não fazem realmente escolhas livres pelas quais possam ser responsabilizadas.

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E quando é o próprio Congresso Nacional que resolve atacar o princípio da responsabilidade individual por decisões políticas? Pois parece estar decidido a conceder anistia aos que participaram dos atos do 8 de Janeiro, cujo objetivo era claramente forçar uma mudança de regime, anular o resultado das eleições e instaurar no poder o presidente derrotado nas urnas.

Milhares de militantes foram mobilizados, organizados e levados às ruas para tentar dar às Forças Armadas uma razão para violarem a vontade expressada nas urnas por 124 milhões de brasileiros.

Não foi uma banalidade nem um ato político comum. Os sediciosos do 8 de Janeiro invadiram, destruíram e tomaram o espaço físico dos Poderes da República com o intuito de tomar o poder pela força e dá-lo ao seu líder. Não foi um crime menor, foi o maior dos crimes contra a ordem democrática —uma tentativa de assaltar e derrubar o regime à força.

O fato de os militantes não acreditarem que viviam em uma democracia não serve como atenuante. As crenças que cada um alimenta livremente não se sobrepõem aos direitos coletivos. O argumento de que os sediciosos tinham boas intenções —porque estavam convencidos, como todos os militantes, de que se sacrificavam para tornar este um mundo melhor— não diminui a gravidade de suas ações. Afinal, até terroristas acreditam nas bases morais e religiosas de seus atos, mas isso não torna suas ações moralmente respeitáveis ou democraticamente aceitáveis.

Se uma anistia for concedida, a mensagem será clara: qualquer um pode tentar tomar o poder à força, desrespeitando as regras democráticas, porque, se for do nosso lado, garantimos sua impunidade. Na verdade, a direita está exercendo sua versão do "ninguém larga a mão de ninguém" para dar aos próprios militantes uma inédita imunidade política para recusar resultados eleitorais, assaltar conforme sua conveniência os Poderes constituídos da República e conceder poderes ditatoriais a seus líderes.

Isso não é anistia, é uma oferta de impunidade aos criminosos da própria facção política. É a forma mais tosca de negação da responsabilidade individual por decisões políticas, que disfarça com desculpas e justificativas a oferta de uma excludente de ilicitude democrática para os membros do próprio grupo.