quinta-feira, 30 de novembro de 2023

O QUE A FOLHA PENSA - O legado de Kissinger,

 

Henry Kissinger, diplomata e ex-secretário de Estado dos EUA - Brendan Smialowski/AFP

Gênio da diplomacia. Manipulador inescrupuloso. Maestro da Guerra Fria e pai da disputa geopolítica entre China e Estados Unidos. Criminoso responsável por ditaduras e políticas de extermínio.

Morto aos 100 anos, Heinz Alfred Kissinger era um dos poucos homens que podiam receber todas as qualificações acima. Ao mesmo tempo, como gostava de dizer, ser vilão e herói no fluxo histórico.

Kissinger, um judeu alemão cuja família fugiu do nazismo, tornou-se o americano Henry e avançou uma brilhante carreira acadêmica.

No seu doutorado em Harvard, publicado em 1957 como livro sobre a paz do Congresso de Viena no século 19, encontra-se seu modelo presumido: o príncipe austríaco Klemens von Metternich, artífice do longo período de relativa estabilidade europeia pós-Napoleão.

O nobre, escreveu Kissinger, destacou-se pela manipulação e pela sutileza. Da mesma forma, como acadêmico, diplomata, alto funcionário e consultor milionário, foi ouvido por 12 presidentes americanos, notavelmente o antissemita Richard Nixon, a quem desprezava.

E não só, como a recente visita do "velho amigo da China" a Xi Jinping provou. O país asiático é talvez o zênite da carreira de Kissinger. Como conselheiro de Segurança Nacional e secretário de Estado, estabeleceu os laços que levaram Pequim a ser o chão de fábrica do Ocidente por várias décadas.

Como a paz de Metternich desaguou no primeiro conflito mundial cem anos depois, o objetivo inicial de Kissinger com a China, de minar o poderio soviético nos anos 1970, gestou a segunda Guerra Fria entre Pequim e Washington.

A lista de eventos do fim do século 20 com a mão do diplomata é infindável, como a aceitação enrustida da derrota no Vietnã que lhe rendeu um Nobel da Paz e a instalação dos EUA como vetor central no Oriente Médio por décadas.

Aqui, as tintas do legado se tornam sombrias, quando não enrubescem pelo sangue derramado de 50 mil cambodjanos mortos numa campanha aérea brutal e ilegal dos EUA, ou das vítimas da ditadura de Augusto Pinochet, cuja ascensão patrocinou em 1973 no Chile.

Como todo colosso, Kissinger tinha fraturas e áreas de sombra. Defini-lo só por uma coisa ou outra é negar a complexidade inerente às grandes figuras históricas.

editoriais@grupofolha.com.br

MÁRIO SCHEFFER E CAIO ROSENTHAL - Temos tudo para acabar com a doença, FSP

 

Mário Scheffer

Professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP

Caio Rosenthal

Médico infectologista do Hospital do Servidor Público Estadual (São Paulo)

País com mais de 1 milhão de pessoas vivendo com HIV, o Brasil voltou a registrar boas notícias na luta contra a Aids.

Neste ano houve maior investimento do governo federal, novos medicamentos para o HIV foram incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS) e pacientes poderão diminuir de dois para um a quantidade de comprimidos tomados diariamente, reduzindo efeitos adversos.

O Ministério da Saúde reconheceu enfaticamente que, se a carga viral de uma pessoa em tratamento se mantém indetectável, o vírus não é transmitido nas relações sexuais.

Foto mostra um frasco de medicamento sob uma mesa e, logo à sua frente, os próprios comprimidos; esses de cor azul escuro
Comprimidos de PrEP, distribuídos gratuitamente pelo SUS; medicamento tem sido usado como solução para prevenção de Aids - Ludmilla Souza/Agência Brasil

A recomendação agora é iniciar o uso de antirretrovirais no mesmo dia ou, no máximo, uma semana depois do teste positivo.

Interrompida em 2019, foi retomada na rede pública a distribuição de gel lubrificante, que evita o rompimento do preservativo. A profilaxia pré-exposição (PrEP) está disponível às pessoas em situações de risco aumentado para a infecção, incluindo adolescentes acima de 15 anos. Também foi recriada a comissão nacional sobre a Aids, com participação de representantes de ONGs e dos mais afetados pela epidemia.

Há muito tempo o Brasil combina camisinha, testagem rápida, indicação de medicamentos antes ou depois do sexo inseguro, prevenção da transmissão durante a gravidez, redução de danos para usuários de drogas e maior atenção a hepatites e sífilis, além do tratamento universal assegurado pelo SUS.

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Por que, então, o país dificilmente cumprirá a meta da ONU de eliminar a Aids como problema de saúde pública até o ano de 2030?

Enquanto prevaleciam o discurso da epidemia controlada, a negligência de governos e o desinteresse da mídia, o HIV não dava trégua e interagia com questões geracionais, de identidade sexual e de gênero, classe social e cor da pele.

Ao estigma que alimentou a epidemia nos seus anos mais sombrios somou-se a discriminação contra pessoas e comunidades, que são também aquelas desproporcionalmente atingidas pela Aids.

A descoberta do vírus ainda gera espanto e sofrimento, e o que chamamos de história passada é para muitos uma jornada de sobrevivência.

A atual ofensiva conservadora no Congresso Nacional, assim como foi a pauta moralista durante o governo Jair Bolsonaro (PL), representa ameaça adicional às medidas necessárias para o país dar um salto no controle do HIV.

Das infecções recentes no Brasil, 42% ocorreram em jovens entre 15 e 29 anos, mas as ações de prevenção continuam totalmente inadequadas às tecnologias digitais e aos valores, comportamentos e sexualidade das novas gerações.

Dentre os casos de HIV na gestação, 68% são de mulheres pretas e pardas, flagrante exemplo das falhas de acesso aos serviços de saúde.

O horizonte de acabar com a Aids somente será alcançável quando o Brasil superar as desigualdades que continuam a violar os direitos humanos e minar as oportunidades de vencer o HIV.