sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Violência policial está ligada à cultura política da sociedade e como ela lida com a vida, diz cientista, Fapesp

 Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP – Estudo conduzido no Centro de Ciência Aplicada à Segurança Pública da Fundação Getúlio Vargas (CCAS-FGV) concluiu que o uso de câmeras instaladas nos uniformes de policiais militares de São Paulo reduziu em 57% o número de mortes decorrentes de intervenção policial, em relação à média do período anterior à implantação da tecnologia.

De acordo com o estudo, a queda corresponderia a 104 mortes evitadas somente nos primeiros 14 meses de funcionamento das câmeras, considerando apenas a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP).

“O uso das câmeras é um debate meramente tecnológico na segurança pública. No entanto, sua implantação na Polícia Militar de São Paulo trouxe à tona questões importantes sobre radicalização e violência. Como, por exemplo, se o uso excessivo da força é um problema público ou não”, disse Joana Monteiro, coordenadora da pesquisa.

E a cientista completa: “Chegou-se a um extremo de radicalização e de normalização da violência no país que uma parcela enorme da sociedade naturaliza o uso excessivo da força policial, dizendo que matar faz parte do trabalho, que intervenções podem gerar a morte de pessoas e que quem morreu não era cidadão de bem”.

A análise foi apresentada durante o seminário on-line “Violência e Radicalização”, promovido pela Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp) com o objetivo de discutir o sétimo e último capítulo do livro FAPESP 60 Anos: A Ciência no Desenvolvimento Nacional.

De acordo com os especialistas que participaram do painel, a naturalização do tratamento desigual na aplicação da lei e na garantia dos direitos fundamentais – a suposta divisão entre “pessoas de bem” e “pessoas de mal” –, embora exacerbada nos dias atuais, não se trata de uma novidade.

“A tradição jurídica liberal tem um paradoxo, no qual o mercado atua inevitavelmente desigualando materialmente os cidadãos de acordo com seus méritos e, por outro lado, o direito iguala formalmente, atribuindo um mínimo de direitos comuns a todos os cidadãos para minimizar a desigualdade necessariamente imposta pelo mercado. Nesse sentido, a desigualdade econômica é um fator natural da teoria liberal”, argumentou Roberto Kant de Lima, pesquisador do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da Universidade Federal Fluminense (InEAC-UFF).

Ele explicou que as instituições de segurança pública foram implantadas no Brasil com a vinda da família real portuguesa. “Foram implantadas as mesmas instituições da monarquia e, até hoje, a polícia se considera descendente da guarda real. Mas veja que a guarda real não era polícia, era instrumento de controle social de um rei absoluto. Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, a flâmula da polícia é a coroa do rei Dom João VI”, conta.

O pesquisador ressaltou ainda o impacto da escravidão nessa divisão. “Os escravos eram semoventes no direito civil, mas sujeitos ao direito penal. Isso tudo cria um cenário de controle social repressivo e juridicamente desigual. No Brasil, não há propriamente um sistema de justiça criminal, como na tradição anglo-saxã. O inquérito policial é atribuição da agência policial. Com isso, o inquérito policial acaba por separar as agências policiais da Justiça”, disse.

Para Sergio Adorno, professor da Universidade de São Paulo (USP) e organizador do capítulo, a narrativa de igualitarismo judicial justifica uma desigualdade de direitos que está na raiz da violência de uns contra os outros e em sua normalização.

“Violência e radicalização são temas complexos, que não se reduzem a um problema de lei e ordem, repressão, ou apenas a um problema de aplicação de novas tecnologias de controle. Tem a ver com as questões de controle da ordem pública, mas também com a cultura política da sociedade e de como ela lida com a vida. Nós aprendemos nas sociedades modernas que a vida é um patrimônio de todos, independentemente das diferenças de raça, classe, cor, propriedade e poder. Porém, na prática o que vemos é que a vida de uns não tem o mesmo valor que a de outros”, disse.

Negacionismo

De acordo com os especialistas, a normalização da violência vem também de uma cisão na sociedade e do crescimento da radicalização política que leva, entre outras ações, a um descrédito na ciência.

Monteiro contou que o estudo com as câmeras de segurança, embora tenha sido bem aceito por parte da polícia, gerou repercussão negativa entre alguns policiais, a ponto de um deles enviar um e-mail para uma das pesquisadoras questionando e desqualificando o trabalho.

“Segurança pública é a área do governo que menos usa a ciência. Trabalho com esse tema desde 2015 e é impressionante a diferença de lá pra cá. Há uma normalização da violência [morte de pessoas] e um discurso de radicalização muito fortes. As críticas levantadas ao estudo – de que ele só poderia ter sido feito por policiais e que os policiais não poderiam ser hiperfiscalizados – mostram, inclusive, um desconhecimento muito grande sobre o que é ciência e seu papel”, disse Monteiro.

Roberto Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), também destacou os ataques a cientistas. “Não é fortuito que a extrema direita tenha escolhido como alvos principais os cientistas e os jornalistas, pois são as duas áreas que mais expressam aquilo que eles mais se recusam a aceitar: os fatos. O problema é que perdemos esse ponto comum. Perdemos essa possibilidade, pois existem pessoas que negam sistematicamente os fatos, seja os resultados de uma eleição, seja um problema orçamentário”, afirmou.

Marcos Nobre, presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), afirmou que outro aspecto dessa mudança está na maneira de se informar, ou consumir mídia e entretenimento. “A ampliação do leque de escolha de mídias e de opções de fonte de informação levou a um grau mais rarefeito de informação política. Isso é paradoxal e constatado nos estudos empíricos o tempo todo.”

O pesquisador propôs que se deixasse de lado a expressão polarização para descrever o problema atual. “O que temos hoje, não só no Brasil, mas em nível global, é uma divisão entre dois mundos. A polarização envolve posições diferentes em um mesmo campo magnético, por exemplo. Porém, a situação atual envolve posições políticas que não se situam no mesmo campo. É de fato uma divisão de dois campos que não aceitam mais as mesmas regras de convivência social, não é só do jogo democrático. No caso específico da democracia, quem perde eleição não aceita a legitimidade de quem ganhou. E isso é essencial para uma democracia”, declarou Nobre.

Para o pesquisador, a situação é grave. “A violência e a radicalização entram nessa questão de uma maneira muito importante, pois, no lugar de ter uma guerra civil declarada entre dois partidos que se batem no terreno militar, isso acontece no terreno político. É, portanto, uma situação-limite, pois a ascensão da extrema direita em várias partes do mundo ameaça o solo comum, que é a democracia como regra de convivência social. E a globalização dessa divisão política é um fato incontornável. Muitos países já tomaram o caminho do autoritarismo”, disse.

De acordo com Nobre, exemplos de autoritarismo no mundo não faltam. “Provavelmente o caso da Índia é o mais preocupante. Mas é uma ameaça que já se concretizou num país como a Itália e que ronda nações como a França e os Estados Unidos, só para dar alguns exemplos”, afirmou.

O pesquisador elenca alguns aspectos e dimensões da mudança política radical. “Primeiro os sistemas partidários, como eles funcionaram até os anos 1990 e entraram em colapso. A centralidade da informação em alguns órgãos de mídia está desaparecendo, se é que já não desapareceu. As eleições em intervalos regulares estão perdendo legitimidade. Além disso, a possibilidade de ignorar a política não existe, pois ela se tornou um mediador social de enorme relevância para muitos âmbitos da vida. Por fim, é preciso levar em conta que as campanhas políticas mudaram radicalmente”, enumerou.

O sétimo capítulo do livro FAPESP 60 Anos: A Ciência no Desenvolvimento Nacional foi organizado por Sergio Adorno e escrito em parceria com Maria Hermínia Tavares Almeida (Cebrap), Renato Janine Ribeiro (FFLCH-USP), Marcos Nobre (IFCH-Unicamp/Cebrap), Roberto Kant de Lima (InEAC-UFF) e Joana da Costa Martins Monteiro (FGV).

Também participaram do seminário on-line Vanderlan S. Bolzani, presidente da Aciesp, e Adriano Andricopulo, diretor-executivo da entidade. A íntegra do evento pode ser conferida em: www.youtube.com/watch?v=1UUR7PHKs4M.

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