sábado, 29 de fevereiro de 2020

Uma inovação brasileira: o fascismo servil, Diplomatique

Fanáticos do neoliberalismo junto com fanáticos religiosos, os mais cínicos oportunistas ao lado de criacionistas, impacientes partidários da modernização tecnológica alinhados com terraplanistas… a lista se prolonga em um patético pandemônio de contradições no qual uma rara constante é o entusiasmado nacionalismo, que só confunde o olhar externo porque, no caso, a “pátria amada” são os Estados Unidos da América
Em 2002, os primeiros ministros Tony Blair e José María Aznar levaram à cúpula da União Europeia a proposta de punir com sanções econômicas os países de origem de imigrantes indesejáveis. A proposta causou escândalo porque explicitava o desejo de que governos dos países da África, por exemplo, transformassem-se em “carcereiros dos seus cidadãos”[1]. O novo modelo de Estado para o Terceiro Mundo, na proposta de Blair e Aznar, seria um que, além de cumprir a tradicional tarefa de garantir o fornecimento de matéria prima para o Primeiro Mundo a baixo custo, passaria a vigiar para que seus habitantes não tentassem escapar da miséria provocada por esse baixo custo. Nações pobres se tornariam grandes campos de trabalho forçado, com seus cidadãos impedidos de fugir.
Ainda que a proposta de Blair e Aznar tenha sido publicamente rejeitada pela maioria dos outros membros da UE (burro que sou, gosto especialmente da justificativa de um representante da Suécia: “nós queremos um equilíbrio entre a vara e a cenoura. É contra-produtivo enfatizar tanto a vara”[2]), na prática ela foi aprovada e vem sendo aplicada de maneira um pouco menos explícita, numa forma intermediária. Usando variadas cenouras e algumas varas, a União Europeia tem terceirizado para países em sua fronteira a tarefa de impedir a chegada de imigrantes. É isso que está por trás dos “campos de refugiados” em países como Turquia e Jordânia e massacres de imigrantes em países como Marrocos e Líbia. Pode-se dizer que a Europa aprendeu algo com as tragédias dos anos 1930 e 40: que não se deve fazer campos de concentração dentro de seu continente, mas fora…
Em seu famoso “Discurso sobre o Colonialismo” (1950), o poeta martiniquense Aimé Césaire demonstra que o nazismo é uma consequência do colonialismo. Descivilizado e embrutecido pelas barbaridades que comete na África, nas Américas e na Ásia, o europeu levou essa brutalidade junto com seu butim quando retornou à terra natal:
“Haveria que estudar, em primeiro lugar, como a colonização trabalha para descivilizar o colonizador, para embrutece-lo no sentido literal da palavra, para degradá-lo, para despertar seus recônditos instintos em prol da cobiça, da violência, do ódio racial, do relativismo moral; haveria mostrar depois que cada vez que no Vietnam se corta uma cabeça e se arrebenta um olho, e na França se aceita; que cada vez que se viola uma menina, e na França se aceita; que cada vez que se tortura um malgaxe, e na França se aceita, haveria que se mostrar, que quando tudo isso acontece, se está verificando uma experiência da civilização que pesa por seu peso morto, se está produzindo uma regressão universal, se está instalando uma gangrena, se está estendendo um foco infeccioso, e que depois de todos esses tratados violados, e todas essas mentiras propagadas, de todas essas expedições punitivas toleradas, de todos estes prisioneiros manietados e ‘interrogados’, de todos esses patriotas torturados, depois deste ódio racial estimulado, dessa jactância desfraldada, o que encontramos é o veneno instilado nas veias da Europa e o progresso lento, porém seguro do enselvajamento do continente ”[3].
Assim, e essa é conclusão minha a partir de Césaire, o ressurgimento do fascismo na Europa não é consequência de uma natural hostilidade à imigração, mas um dos resultados da exploração dos países da periferia do capitalismo por governos “civilizados” e modernas empresas europeias, muitas delas cheias de “sustentabilidade”, “multiculturalismo” e progressismos. O fato dessa exploração ser feita tantas vezes remotamente, por drones e algoritmos, sem sujar as mãos, não impede o envenenamento.
A conclusão de Césaire é que “a Europa é indefensável”. Mas creio que hoje ele diria o mesmo dos Estados Unidos: é indefensável o que acontece na fronteira com o México. Como suportar aquelas imagens de crianças, filhas de imigrantes, separadas à força de seus pais e aprisionadas naqueles campos de concentração? Não parece haver inspiração de Blair e Aznar na exigência que Trump faz de que o próprio México pague o muro que divide as fronteiras? O Criminal Alien Deportation Enforcement Act, projeto de lei do deputado republicano Brian Babin, prevê não apenas sanções econômicas, mas também a suspensão de vistos para residentes de países cujos governos não demonstrem competência em impedir a emigração “ilegal” de seus cidadãos.
Uma prova de que não é o imigrante que faz surgir o nazista é a existência do novo fascismo brasileiro, que apesar de racista não se sustenta na xenofobia. Ok, todos sabemos do descaso e violência com que, desde sempre, são tratados imigrantes pobres no Brasil. Vimos aquelas imagens das agressões contra médicos cubanos e também aquelas, ainda mais horríveis, contra venezuelanos em Roraima. Mas a verdade é que, talvez pelo fato de a imigração aqui não ter a dimensão que tem na Europa, os fascistas brasileiros não têm tido muitas oportunidades de exibir publicamente o lado xenofóbico de sua estupidez. É por isso também que alguns pesquisadores resistem a caracterizar essa nova extrema-direita brasileira como fascista. Que fascismo é esse que não é nacionalista? Que apesar das camisetas verde e amarelas, não demonstram raiva do estrangeiro, mas, sim, desprezo pelo próprio brasileiro. Ainda que o slogan “o melhor do Brasil é o brasileiro” seja criação de um ex-integralista, Câmara Cascudo, tal frase não faz qualquer sentido para a nova extrema-direita brasileira, para a qual o problema é justamente o brasileiro, ele é a sub-raça perniciosa. Quanto do ódio ao Lula não é por ele ter “cara de povo”?
Contra esse argumento de que o bolsonarismo não é fascista porque não é nacionalista, pode-se dizer que os diversos fascismos do início do século XX tiveram de tudo, inclusive “entreguistas”. Na Europa, roedores foram correndo abrir a porteira de seus países para a invasão nazista e depois se destacaram como os mais miseráveis colaboracionistas.
No Brasil dos anos 1920, os condes Matarazzo e Crespi talvez até financiassem uma hipotética invasão do país por Mussolini. Mas Matarazzo e Crespi, e muitos outros imigrantes italianos bem menos afortunados que eles, ficariam até ofendidos se chamados de brasileiros. Sua pátria era a Itália. Portanto, eram nacionalistas, mais fervorosos talvez justamente porque longe de seu país. E isso nada tem de incomum.
Agora veja o caso do agrupamento heterogêneo que atropelou os tucanos nas passeatas pelo Golpe e que forma a base do bolsonarismo: fanáticos do neoliberalismo junto com fanáticos religiosos, os mais cínicos oportunistas ao lado de criacionistas, impacientes partidários da modernização tecnológica alinhados com terraplanistas… a lista se prolonga em um patético pandemônio de contradições no qual uma rara constante é o entusiasmado nacionalismo, que só confunde o olhar externo porque, no caso, a “pátria amada” são os Estados Unidos da América.
As cenas de Bolsonaro batendo continência para a bandeira americana (ou qualquer americano que veja pela frente) ou de seu filho com o boné do Trump, causam constrangimento até para autoridades dos Estados Unidos, mas estão longe de perturbar seus fiéis admiradores brasileiros. A avenida Paulista foi talvez o único lugar fora dos Estados Unidos em que houve uma manifestação a favor de Trump durante a campanha dele para presidente. Foi uma manifestação bem pequena, é verdade, mas ruidosa: teve até palavra de ordem contra Hillary Clinton, chamada de “comunista”.
Do ponto de vista do governo norte-americano, a equipe de Bolsonaro é um verdadeiro dream team: na economia, que é o que importa, tem o Chicago Boy Paulo Guedes, e, como estepe do próprio capitão, no caso de ser necessário engrossar, está o general Hamilton Mourão, que só não tem diploma da Escuela de Las Americas porque chegou atrasado, mas que representa talvez a ala mais americanizada das Forças Armadas brasileiras (“Aliste-se no Exército Brasileiro, venha você também defender os interesses dos Estados Unidos”, diz o meme). Quem encabeçou a direção política da vitoriosa campanha eleitoral foi o novato Gustavo Bebianno, cuja grande experiência como empreendedor foi a criação de uma academia de jiu-jitsu na Florida. Ainda assim, apesar da competência de Bebianno, a campanha foi vitoriosa graças, é claro, a benção que Deus enviou por meio dos pastores do pentecostalismo, a mais norte-americana das religiões cristãs.
Poderíamos dizer que tal agrupamento é apenas um pitoresco bando de bucaneiros oportunistas, mas é preciso admitir que eles têm base social. Não falo aqui dos milhões que votaram no “Mito”, mas, especificamente, daqueles militantes que, muitas vezes sem serem remunerados, o defendem com entusiasmo e violência. Ativistas que brotam dos shopping centers e das igrejas, dos times de basquete e dos seminários para empreendedores, mas também dos fandoms da Marvel, do hard rock, de Star Trek e do Vin Diesel. Eles saudariam o desembarque dos marines, porque estes, além de nos proteger de uma invasão cubana ou venezuelana, talvez também expulsassem coisas estranhas à cultura brasileira, como as religiões africanas e o elitismo intelectual europeu. Nos livrariam finalmente do que o Mourão classificou como “indolência” indígena e a “malandragem oriunda do africano”. E, principalmente, esses nacionalistas norte-americanos nascidos no Brasil sonham que a chegada dos marines finalmente os liberaria da exigência do visto para entrada na Florida. Sonham um dia tornarem-se americanos brancos, e que o Brasil ainda vai cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se um imenso Porto Rico.
Por isso talvez tenham alguma razão aqueles que dizem ser um erro classificar essa gente simplesmente como fascista só porque ela parece, age, fala e rosna como os velhos fascistas. Talvez essa extrema-direita do Brasil seja uma forma nova de regressão, uma inovação brasileira: um fascismo servil, especialmente criado para países obrigados a se submeter aos fascismos dos países que mandam. Uma jabuticaba do avesso: dura dentro e mole pra fora. Um fascismo que ultrapassa os anos 1930 e avança pelo século XIX e vai mais para trás. Que usa instrumentos do século XXI e estratégias do início do século XX para defender uma situação do século XVIII.
Os fascistas italianos sonhavam reviver a Roma Imperial, os fascistas brasileiros sonham com a volta do Brasil Colonial.

*Rogério de Campos é editor, tradutor e autor dos livros Revanchismo, Dicionário do Vinho (Prêmio Jabuti) e Imageria (Prêmio HQ Mix). Seu livro mais recente, Super-Homem e o Romantismo de Aço (Ugra Press, 2018) fala da relação do gênero super-heróis com o fascismo

GOVERNO BOLSONARO A previsão furada de Geisel sobre os militares, Roberto Simon , FSP

Brasil é caso extremo, mas não isolado de volta de generais à política

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​Em uma entrevista a historiadores da FGV em 1993, o ex-presidente Ernesto Geisel argumentou que “a política entrando no Exército” havia sido algo “mais ou menos tradicional” no Brasil. “Tem raízes históricas, mas agora, com a evolução, vai acabar.”
Para ilustrar seu ponto, Geisel referiu-se ao que via como uma anomalia completa: um deputado federal que, à época, convocava militares a voltarem ao poder. “Não contemos o Bolsonaro, porque o Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar.”
Geisel foi o arquiteto do retorno dos generais à caserna, com o desmanche da ditadura ao longo de uma década. Imagine sua reação se alguém lhe dissesse o seguinte: em menos de 30 anos, o presidente será Bolsonaro, militares formarão um terço do gabinete –incluindo a chefia da Casa Civil e da articulação com Congresso–, e a imagem de quatro generais estrelados ilustrará um panfleto conclamando a uma manifestação contra Congresso, STF e imprensa. Pobre Alemão, seu apelido entre os soldados.
Claro, não há problema em um militar da reserva, em razão de suas qualificações, ocupar cargo civil ou entrar na política.
Mas a presença, em massa, de oficiais no governo –incluindo alguns da ativa– e a “política entrando no Exército” são duas faces da mesma moeda. Mentes sensatas, civis e militares, entendem que esse status quo é nocivo tanto à nossa democracia quanto às nossas Forças Armadas.
Como viemos parar aqui? Levará tempo para responder à questão, mas olhar ao nosso redor pode ser um bom começo. Afinal, em várias partes da América Latina, militares têm cada vez mais influência política.
Ver o Brasil de uma perspectiva regional permite entender que a eleição de Bolsonaro foi uma circunstância excepcional, mas há causas estruturais para a transformação nas relações civis-militares.
A última edição da Americas Quarterly –revista com a qual contribuo como editor e colunista– trata a fundo do novo papel dos militares na região. É uma história que, nos últimos meses, pode ser contada por meio de uma sequência de imagens.
Praticamente todos os presidentes que enfrentaram ondas de protesto –o equatoriano Lenín Moreno, o chileno Sebastián Piñera, o colombiano Iván Duque– apareceram cercados de generais, quando as crises estouraram.
Na Bolívia, o comandante das Forças Armadas colocou, física e simbolicamente, a faixa presidencial em Jeanine Áñez, no dia em que Evo Morales fugiu ao México. 
O Brasil é um caso extremo, mas não isolado –há causas comuns na região que estão levando os militares a entrarem no espaço da política.
Uma delas é o enfraquecimento da classe política, dos partidos e do apoio à democracia, enquanto as Forças Armadas continuam a ser uma das instituições mais respeitadas.
Uma série de escândalos de corrupção contribuiu para esse desgaste: uma pesquisa da Universidade Vanderbilt revelou que quase 40% dos latino-americanos concordam que “um golpe militar pode ser justificado quando há muita corrupção” (no Brasil, são 35,4%).
As democracias que proliferaram nos últimos 30 anos propiciaram ganhos socioeconômicos sem precedentes, mas também criaram expectativas inéditas a uma nova classe média.
Os últimos quatro anos foram os de menor crescimento em sete décadas na região, e insatisfação política toma essas jovens democracias.
Ao mesmo tempo, com o fim da Guerra Fria, as Forças Armadas passaram por uma crise de identidade. Hoje, do México ao Brasil, militares estão cada vez mais envolvidos com operações policiais e a guerra às drogas.
Todos esses fatores minaram a “evolução” que Geisel pensava ser inevitável –o “mau militar” Bolsonaro é sua consequência, e não causa.
Encará-los de frente é a única forma de reequilibrar as relações civis-militares.
Roberto Simon
É diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard e em relações internacionais pela Unesp.
As opiniões expressas acima não refletem necessariamente a posição do Council of the Americas.