domingo, 31 de maio de 2020

A disputa, Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo, OESP


31 de maio de 2020 | 03h00

Drusila Camargo e Maria Antônia Palhares são duas excelentes filósofas. Cursaram a graduação quase ao mesmo tempo na USP. Ambas realizaram dissertação e tese na mesma instituição e terminaram por morar na França para estudos de pós-doutorado. Drusila tornou-se referência na obra do matemático e lógico brasileiro Newton Carneiro Affonso da Costa. Maria Antônia abraçou o empirismo inglês e virou a mais abalizada tradutora do escocês David Hume na língua portuguesa.

Quase a mesma idade, mesma alma mater, proximidade acadêmica: tudo levaria a supor que o rio da amizade fluiria solto entre as duas ilhas de sólido conhecimento. Nada mais falso. Por vários motivos, desde a graduação, ambas desenvolveram poderosa ojeriza. Odiavam-se, seria mais correto afirmar. Os orientandos sabiam que não poderiam fazer curso com a rival. Os dois grupos formaram partidos distintos, mutuamente excludentes e que desconfiavam dos neutros. Os próximos a Maria Antônia batizavam os seguidores da outra como “drusílios”. Os que eram orientados por Drusila passaram a usar a personagem “Tonha da Lua” (da novela Mulheres de Areia) para descrever Maria Antônia. Despontava nos corredores da FFLCH da USP uma verdadeira escola teatral: os grupos imitavam a rival, ora com frases formadas de absurdos lógicos ou com a voz de Marcos Frota na segunda versão da novela, simulando alguém com problemas cognitivos. Os orientandos formaram um exército de haters. Não havia chance de conciliação. Drusila era Cartago e Maria Antônia encarnava Roma: só haveria espaço para um império do Mediterrâneo Ocidental na Cidade Universitária. Delenda!

Curioso: ambas eram produtivas como autoras e pesquisadoras e, igualmente, apreciadas como professoras. As duas escreviam para os maiores jornais de São Paulo em louvados artigos de divulgação científica. O único inconveniente era quando alguém tocava no nome da outra. Despontava a deusa Nêmesis. Parecia que a inteligência e a filosofia eram afogadas em uma lama sulfurosa. Os olhos se transformavam, as mãos se crispavam e a voz de ambas perdia o equilíbrio emocional. 

O tempo passou e surgiu a aposentadoria. Duas brilhantes carreiras coroadas de conquistas e agraciadas com o título final de professoras eméritas da USP. Cerimônias lindas e, como manda o bom senso, realizadas em datas e prédios bem distantes. 

O destino é sempre bizarro. Depois de reuniões no antigo prédio da reitoria, aconteceu de uma pegar o elevador do quarto andar e a outra no terceiro. Hora do lusco-fusco, pressa: nenhuma percebeu até ser tarde demais. Constrangimento profundo, quase físico. Mas... eu falava de destino bizarro. Não há acidente que não possa ser piorado. Segundos após a constatação constrangedora, a energia entrou em colapso no edifício. Agora, no escuro, as rivais estavam condenadas a desfrutar da companhia uma da outra. Drusila soltou a primeira frase com verbo: “Ocorrer uma desgraça assim em uma sexta-feira!”. A outra vociferou: “Eu não sou uma desgraça! Você que é vergonha da Filosofia brasileira”. As primeiras frases foram seguidas de 20 minutos de acusações, ou melhor, insultos. Ambas temiam pelo momento em que uma delas partisse para o ataque físico. Cada uma se encostou em um canto do breu. Maria Antônia segurava livros junto ao rosto para evitar um soco furtivo. Drusila retirou os óculos com a mesma preocupação. No meio da torrente de ódio, uma delas fez a pergunta que não queria calar: “Por que você me odeia tanto?”. Instalou-se súbito silêncio. Odiavam-se há décadas, riam-se uma da outra, ironizaram tudo, porém, confrontadas com a questão original, não tinham clareza do primo mobile, o primeiro motor que colocara todo o sistema da raiva em movimento. Por que se odiaram? O silêncio foi ainda mais constrangedor. Duas mulheres brilhantes, de imenso sucesso e com vida amorosa satisfatória. Não poderia ser inveja ou cobiça, ambas tinham em grau próximo o que era notável na outra. As mães do ódio não sabiam quem era o pai. Partenogênese?

A pane elétrica seguia criando circunstâncias. Maria Antônia refletiu muito e proferiu a frase, honesta enfim: “Você é uma mulher brilhante. Eu sempre invejei seu... cabelo. Como você pode chegar a essa idade com esse cabelo”? Drusila foi alvejada pela sinceridade e disse que o seio da rival era impecável. Ali estava o não dito, o recalcado de tantos anos. Surgira um pai envergonhado. Sim, o cabelo de Drusila era de um brilho intenso. O seio da outra teria feito Hume entrar em combustão espontânea. Depois das frases, silêncio absoluto.

Quando, enfim, a energia voltou, ambas saíram em silêncio. Combateram estereótipos do feminino toda a vida. Na rua, preocupados, os maridos estavam nos carros aguardando. Ao chegar junto ao titular de medicina da USP, a esposa ouviu o dr. Palhares reclamar da reunião de departamento. “Aquele canalha do Paul Gustavo, o careca da nefrologia, fez outra piadinha em sala sobre mim.” Maria Antônia sorriu ao imaginar qual a parte do corpo do rival que incomodava ao marido. Boa semana para aqueles que não invejam ninguém.

 

Newton da Costa, um lógico em busca da quase-verdade, FSP 25/12/2016

ilustríssima

Newton da Costa, um lógico em busca da quase-verdade

FERNANDO TADEU MORAES
ILUSTRAÇÃO FELIPPE MORAES

25/12/2016 02h01

RESUMO Reconhecido internacionalmente por ter desenvolvido a lógica paraconsistente, o curitibano Newton da Costa, talvez o mais destacado brasileiro no campo da filosofia e da lógica, fala nesta entrevista sobre sua carreira e a continuidade de seus esforços no esclarecimento do que é o conhecimento científico.

Felippe Moraes

Aos 87 anos, o lógico e filósofo Newton Carneiro Affonso da Costa não cogita parar de pesquisar e de ensinar: "Se me tirarem isso, vão me tirar tudo".

Mais intimidado pela envergadura de da Costa como pensador do que impressionado pelo seu vigor intelectual, este repórter reencontra seu antigo mestre –foi seu orientando no mestrado até 2011– para uma conversa de cerca de duas horas. Há seis décadas, o pesquisador dedica-se integralmente à construção de uma obra que, para muitos, é a mais relevante da filosofia brasileira.

Caio Cezar/Folhapress
Newton da Costa
Newton da Costa

Autor de títulos de referência como "Ensaio sobre os Fundamentos da Lógica" (Hucitec) e "O Conhecimento Científico" (Fapesp), ele é também o criador da chamada lógica paraconsistente, teoria considerada como um dos maiores desenvolvimentos no campo da lógica na segunda metade do século 20.

Nascido em 1929, em Curitiba, Newton da Costa fez toda a sua carreira dentro de universidades brasileiras, embora tenha passado por instituições de Austrália, França, EUA, Polônia, Itália, Argentina, México e Peru como professor visitante ou pesquisador.

Inicialmente, trabalhou na Universidade Federal do Paraná, onde também se formou e fez doutorado. Transferiu-se para a Universidade de São Paulo no final dos anos 1960, tendo lecionado primeiro no Instituto de Matemática e Estatística e, depois, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas –sempre como professor titular.

Aposentado e cansado de São Paulo, mudou-se com a companheira de seis décadas, Neusa, para Florianópolis, onde moram dois de seus três filhos. Desde 2002, é professor voluntário no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina e ministra toda semana um seminário para a pós-graduação. Concomitantemente, mantém sua pesquisa –atualmente voltada para os fundamentos da mecânica quântica–, publicando nas mais importantes revistas de filosofia do mundo.

Da Costa é reconhecido sobretudo pelo desenvolvimento de um tipo de lógica diferente da clássica, a paraconsistente, hoje amplamente estudada. Seu trabalho, em resumo, põe em xeque o princípio da não contradição –segundo o qual uma sentença qualquer e sua negação não podem ser ambas verdadeiras–, um dos pilares da lógica clássica.

O filósofo paranaense mostrou que é possível construir sistemas lógicos que admitam contradições sem por isso se tornarem triviais, isto é, sem que a verdade e a falsidade se tornem indistinguíveis dentro deles. Suas ideias, divulgadas em mais de 250 trabalhos, estendem-se para a filosofia da ciência, a filosofia da física, as teorias da verdade, os fundamentos da matemática, a economia, a teoria da computação e o direito, entre outros campos.

Apesar da abrangência e da importância de sua obra, o professor afirma que gostaria de deixar como legado sobretudo dois traços que, segundo ele, pautaram sua jornada intelectual: a independência de espírito e a autocrítica.

*

Como era o ambiente intelectual na sua casa, durante a infância e a adolescência?

Newton da Costa - Eu tive muita sorte, pois minha mãe era professora de francês. Com ela eu li vários autores franceses, e começou uma grande admiração pela filosofia, pela literatura e pela França em geral. Convivi muito também com duas tias, uma que era professora de inglês, e outra de história da música, que me ensinaram muita coisa nesses campos. Houve ainda a influência do meu tio Milton Carneiro, que era professor na Federal do Paraná. Ele foi uma verdadeira mola propulsora para mim.

Por quê?

Ele tinha uma biblioteca impressionante e me incentivou a pensar e a ler filosofia. Quando eu completei 15 anos, ele me chamou para almoçar e, durante a refeição, me perguntou: "Newton, você é capaz de provar que existe?". Eu disse, "bom, eu estou aqui, então eu existo". Ele me respondeu, "isso pode ser sonho". Aí eu digo, "penso, logo existo", e ele, "isso mostra que existe pensamento", e assim foi indo. Então eu percebi que, na verdade, você não pode provar que existe. A existência é uma coisa contingente. Aí começou o meu interesse por filosofia e, depois, pela matemática.

E, no entanto, o senhor primeiro foi estudar engenharia civil. Por quê?

Eu gostava de matemática. Na época, pareceu-me que a escola de engenharia tinha mais possibilidades de me oferecer alguma coisa. Já existia a faculdade de matemática, mas os professores ganhavam muito mal. Então optei pela engenharia, mas quando cheguei ao terceiro ano, já não queria saber de engenharia. No fim das contas, o curso serviu para algumas coisas, como mostrar aplicações da matemática. Hoje, no entanto, eu teria entrado diretamente, como depois fiz, no curso de matemática.

Como foi no curso de matemática?

Na matemática foi diferente. No início dos anos 1950, estava no Paraná o professor João Remy Teixeira Freire, um português que conhecia bem matemática, e ficamos muito amigos. Ele me colocou em contato com matemáticos de São Paulo e do exterior, e foi o impulso final que fez com que eu me dedicasse exclusivamente à lógica, à matemática e à filosofia.

No início dos anos 1960, o senhor se tornou professor da Universidade Federal do Paraná. Como era o ambiente acadêmico naquela época?

A Universidade do Paraná, naquele momento, era uma escola que ensinava, mas não havia pesquisa. E o pior era que, com algumas exceções, a maioria dos professores não tinha consciência do que significava uma universidade. Então eu me esforçava enormemente em fazer alguma coisa pela instituição, mas chegou um ponto em que percebi que não era possível, que se eu quisesse ficar no Brasil, a única possibilidade era ir para São Paulo.

Por que São Paulo?

Ah, lá o ambiente era totalmente diferente. A Universidade de São Paulo sistematicamente entrava em contato com pesquisadores de outros centros, havia gente de outros países e realmente se fazia pesquisa matemática por lá.

Na USP, o senhor passou primeiro pelo Instituto de Matemática e Estatística e, depois, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Como foi a sua experiência nesses locais?

No Instituto de Matemática, minha convivência com alguns colegas era muito boa, mas com outros havia certo atrito. Aliás, até hoje, quando converso com gente de lá, dizem que é uma brigalhada. Uma vez, eu fui convidado para ir à Polônia para ajudar na produção de um número de uma revista em minha homenagem. Quando voltei, alguns colegas acharam ruim, porque eu vivia viajando para receber prêmios e fazer conferências, e criaram um problema enorme para mim. Essa foi uma das razões pelas quais eu me aposentei e saí do IME. Fui para os Estados Unidos. Depois de um período, a Marilena Chaui e o João Paulo Gomes Monteiro me convidaram para voltar ao Brasil para criar um grupo de lógica na filosofia da USP.

Na filosofia foi melhor?

Muito melhor, totalmente diferente, porque lá ninguém se metia na vida do outro. Eu conseguia fazer o que queria: trabalhar, produzir e publicar.

E depois o senhor veio parar em Florianópolis...

A vida estava muito difícil em São Paulo. O dia a dia era complicado; o trânsito, horrível. Grandes amigos, como Edison Farah, haviam morrido. E como meus filhos viviam aqui e alguns ex-alunos eram professores por aqui, após me aposentar, resolvi vir.

Gosta daqui?

Muito. Aqui, pelo menos, você tem vida. Porque em São Paulo... Eu estive lá recentemente, até atravessar uma rua é complicado.

O senhor gosta de música, literatura?

Sempre adorei música, mas, lastimavelmente, apenas música de um certo tipo. Não aprecio música popular, talvez por falta de gosto. Considero genial as coisas feitas por Chopin, Beethoven, Bach... Cheguei a estudar música e composição, mas nunca fiz nada. Quando eu estou meio deprimido, uma coisa que me faz muito bem é escutar música clássica, sobretudo, dos românticos alemães, como Mendelssohn e Schumann.

E literatura?

Gosto muito, sobretudo da literatura francesa, Victor Hugo, [Paul] Valéry, por exemplo. Já li muita coisa e até cheguei a compor alguns versos.

O senhor também escreve poesia?

Eu escrevo por uma espécie de força interior. Sempre achei que, por meio de ciência, matemática, lógica, você só vai até certo ponto. Se quiser ir além disso, tem de ser de outro modo. Para mim, a parte artística preenche um vácuo. Mas eu só publiquei um trabalho [assinado com um pseudônimo], por insistência de um amigo. Eu adoro poesia como uma saída, um complemento da ciência e da filosofia.

Com 87 anos, o senhor continua dando aulas e produzindo artigos. Como explica esse vigor?

Não tem muita explicação. Quando eu não puder fazer mais essas coisas, aí sim eu morri. Eu fico entusiasmado quando consigo ajudar alguém. É uma distração, me faz bem. Se me tirarem isso, vão me tirar tudo.

O senhor sente os efeitos da passagem do tempo sobre o seu intelecto, sobre a sua criatividade?

A memória eu sinto que vem caindo. O vigor também diminuiu. Fisicamente eu sinto que a coisa está cada vez pior, mas a parte intelectual, no sentido de ter senso crítico, continua intacta. Eu percebo que minhas aulas não são como eram quando eu era mais jovem, mas, mesmo assim, ainda sinto que posso transmitir ideias, coisas novas.

Quais foram os filósofos que mais o influenciaram?

Acredito que o filósofo que mais li e que mais me influenciou foi Bertrand Russell, sobretudo pela sua atitude, sempre rebelde, embora sua obra seja grandiosa.

Outros são [Rudolf] Carnap, Marcel Guillaume, [Willard van Orman] Quine, de quem eu era amigo. Tenho uma grande admiração também por dois filósofos, ambos assassinados pelos alemães na Segunda Guerra, Jean Cavaillès e Albert Lautman, além de [Léon] Brunschvicg, de [Henri] Poincaré e [Federigo] Enriques. Mas isso não quer dizer que eu aceite "ipsis litteris" todas as coisas que esses pensadores fizeram ou escreveram. Todos esses filósofos me influenciaram muito, mas não no sentido de eu ser um filhote deles, por assim dizer, alguém que siga suas ideias.

Essa não é a maneira mais sensata de exercer influência. Você deve dar as diretrizes, chamar a atenção para grandes problemas, o resto é com os outros. Detesto esse negócio de cabresto. Nunca fui conduzido e nem quero conduzir ninguém assim.

Quanto à sua obra, o sr. é conhecido sobretudo pelo desenvolvimento da lógica paraconsistente. Considera-a seu trabalho mais importante?

Pelo menos é o que mais sacudiu as pessoas. Hoje em dia, falar de lógica paraconsistente é uma coisa meio pacífica, mas no começo a situação era muito diferente. Lembro que, enquanto ainda estava no Paraná, comentei sobre a lógica paraconsistente com um padre, que era professor da universidade, e ele me disse que achava que eu estava ficando maluco. De fato, na época, era algo quase impensável. Hoje, o desenvolvimento da lógica paraconsistente é uma loucura, com aplicações em controle de tráfego aéreo, medicina, economia, por exemplo. Há umas histórias engraçadas do começo da lógica paraconsistente.

Poderia contar alguma?

Um dos meus grandes amigos, Jayme Machado Cardoso, professor de geometria, uma vez me disse que achava que a lógica paraconsistente era uma grande tapeação. Quando meus primeiros trabalhos começaram a sair na Academia de Ciências de Paris, fui mostrar para o Jayme. Ele então me disse: "Newton, eu tiro o chapéu para você. Para tapear nesse nível, você tem que ser muito inteligente!".

Que outros trabalhos o sr. destacaria na sua carreira?

Outro trabalho importante, que vem logo em seguida, é a teoria da quase-verdade. Muitas pessoas pensam que a ciência busca a verdade, mas não é isso. Você a busca, mas nunca a atinge. Então vamos deixar de lado um pouco a verdade e dizer que a ciência, sobretudo no caso da física, busca a quase-verdade. Ela busca teorias que salvam as aparências. No fundo, tudo se passa como se determinada teoria fosse verdadeira naquele domínio de aplicação. A mecânica clássica de Newton não é verdadeira, pois a mecânica relativística de Einstein é mais precisa. Mas muita gente ainda usa a mecânica clássica, sobretudo engenheiros, para fazer aviões e pontes, pois a mecânica clássica funciona bem nesses casos, ela é quase-verdadeira.

E no que o sr. vem trabalhando nos últimos tempos?

Hoje eu trabalho com fundamentos da mecânica quântica, inclusive com um grupo de pesquisadores da Argentina, e tenho publicado sistematicamente nessa área. Estamos tentando entender o significado da mecânica quântica, uma teoria completamente fora das normas usuais da física clássica, e de modo especial, a teoria quântica de campos.

Acha que sua obra é mais conhecida fora do Brasil do que aqui dentro? Ressente-se disso?

É difícil dizer, mas tenho a impressão que sim. Não [me ressinto], porque esse desconhecimento se dá com relação a quase todas as coisas boas feitas em ciência e filosofia no Brasil.

Há algum problema que resume as suas reflexões filosóficas?

Uma questão que me acompanha desde o começo é a pergunta "o que é o conhecimento?", especialmente o conhecimento científico. É o problema da minha vida.

O senhor chegou a uma conclusão?

Entendo o conhecimento científico como uma atividade de busca da quase-verdade. Uma busca racional da quase-verdade, de acordo com uma lógica. Essas verdades parciais, daqui a um tempo, talvez se transformem em verdades, mas isso é outro problema.

Que legado gostaria de deixar para a filosofia brasileira?

Mais do que as minhas obras, eu gostaria de deixar o meu exemplo como legado. Que a pessoa trabalhe e erre por conta própria, ou seja, que tenha independência de espírito, e acho que essa é também a mensagem de Russell. Independência de espírito e autocrítica são as coisas mais importantes que existem para o pensamento. A filosofia consiste em investigar, investigar, investigar e provavelmente nunca chegar à certeza absoluta de nada.

Um destino trágico, não?

Mas a vida toda é trágica. Quando você chegar na minha idade, vai ver: mesmo com quase 90 anos, não sei o que é a vida. Não sei nem por que estou aqui.

Mudando de assunto, como vê, de maneira geral, a pesquisa em filosofia feita no Brasil?

A minha impressão é que não se faz filosofia propriamente no Brasil, e acho que vai demorar bastante para isso acontecer. Aqui se faz sobretudo exegese. A pesquisa é muito concentrada em autores, na exegese de alguns filósofos.

No começo, o argumento era o de que todo estudante de filosofia deve fazer a exegese de algum autor para depois pensar sozinho, mas, pelo menos em lógica e filosofia da ciência, isso não faz sentido. Você pode fazer grandes contribuições sem precisar estudar [Karl] Popper, por exemplo. E aqui, pior ainda, não se tem o hábito de publicar nem em espanhol. Não se vê praticamente nada em inglês. Assim, mesmo se a pessoa fizer um grande trabalho, ninguém vai saber se ela só publicar em português.

Qual é a razão disso?

Não sei, o Brasil tem essa tendência histórica de focar na história da filosofia. Essa parte vai bem por aqui, há pessoas que fizeram coisas muito bonitas nesse campo. Mas não há muito incentivo para o pensamento independente. Parece que o Brasil, desde que foi descoberto, vive de reflexos, e não de produzir luz própria. Esse, porém, é um problema da América Latina inteira, e mesmo nos Estados Unidos, o máximo que eles fizeram lá de novidade foi o pragmatismo, com [William] James, [Charles] Peirce. É difícil você transformar isso aqui numa Alemanha, é enrolado. Precisaria mudar tudo, a começar pelas nossas universidades.

Como acha que a formação universitária em filosofia no Brasil deveria ser?

Na minha área, pelo menos, de lógica e filosofia da ciência, precisa mudar completamente. É preciso que o aluno tenha logo bons cursos de lógica, alguns cursos de matemática e de física. Ou talvez separar. Na Inglaterra, se não me engano, em alguns lugares você faz uma divisão entre aqueles que se interessam por filosofia da ciência e coisas correlatas, os que se interessam por ética, os [entusiastas] da metafísica, os da estética etc. Assim você prepara melhor a pessoa. Como você vai falar de mecânica quântica se você não conhece isso? O complicado aqui no Brasil é que você vê gente que se intitula filósofo da física e não sabe física. É uma coisa no mínimo estranha.

O que é fazer filosofia para o sr.?

Significa produzir, nas áreas usualmente consideradas partes da filosofia, como estética, ética, lógica e fundamentos da ciência, ideias originais. E elas precisam existir, o que quer dizer, ser publicadas e estar abertas à discussão e à crítica.

O sr. gosta de ser chamado de filósofo?

Gosto de ser chamado de lógico e filósofo da ciência. É isso que eu sou.

FERNANDO TADEU MORAES, 32, é jornalista da Folha.

FELIPPE MORAES, 28, artista, pesquisador e curador, é fundador do projeto Humanitarian Art Research Platform, que orienta a pesquisa visual de artistas refugiados de Síria, Congo e Colômbia.

Sem rivais, capitalismo se divide entre modelos de EUA e China, Celso Rocha de Barros, FSP


Celso Rocha de Barros

[RESUMO] Em "Capitalismo sem Rivais", Branko Milanović aborda as duas grandes modalidades capitalistas contemporâneas, a liberal-meritocrática, dos EUA, e a política, da China. O economista não descarta que respostas ao coronavírus influenciem o futuro da disputa e avalia que os chineses vivem momento análogo ao da URSS quando lançou o satélite Sputnik.

O que aconteceu com o capitalismo desde que ele ficou sozinho no mundo, desde que o único outro “game in town”, o comunismo, desmoronou? Branko Milanović tenta responder a essa questão em seu livro mais recente, “Capitalismo sem Rivais”, sobre o qual conversou com a Folha em entrevista por email. A editora Todavia lança a obra no país na quarta-feira (3).

Economista, especialista em estudos sobre desigualdade, o autor trabalhou no Banco Mundial e hoje é professor da City University de Nova York.

Embora radicado nos Estados Unidos há muitos anos, Milanović é sérvio e viveu as primeiras décadas de sua vida na antiga Iugoslávia. Ao menos por algum tempo, observou o capitalismo ocidental de fora. Um de seus primeiros trabalhos de destaque, publicado em 1998, enquanto ainda trabalhava no Banco Mundial, foi um estudo importante sobre pobreza e desigualdade nas transições pós-socialistas dos anos 1990.

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Branko Milanović, economista sérvio-americano e professor da City University de Nova York, em fórum da OCDE - OCDE - 29.mai.2018/Divulgação

Nas últimas duas décadas, Milanović se consagrou como um dos principais nomes no debate mundial sobre desigualdade —mais especificamente, no debate sobre a desigualdade global.

Nessas pesquisas, produziu com Christoph Lakner seu achado mais popular, o “gráfico do elefante”. Trata-se de uma imagem que ilustra o crescimento da renda de diferentes grupos da população mundial entre 1988 (próximo do início da atual onda de globalização) e 2008 (o ano do crash).

Para entender o gráfico, imagine que todos os seres humanos estão enfileirados, com os mais pobres à esquerda e os mais ricos à direita. Agora imagine uma linha passando por cima deles, tendo essa linha a altura da porcentagem em que a renda de cada um melhorou entre 1988 e 2008.

Olhando da esquerda para a direita, a linha vai subindo por sobre as cabeças de boa parte dos pobres do mundo e dos que escaparam da pobreza em países como China, Índia e Brasil. Mais ou menos quando chega na faixa de renda em que estão os operários do Primeiro Mundo (que são muito, muito mais ricos que os pobres de outros lugares), ela desaba. Esse pessoal ganhou muito menos com a globalização.

Continuando da esquerda para a direita, a linha volta a disparar para o alto: chegamos nos ricos do mundo (em especial, mas não só, os dos países desenvolvidos), que se deram muito bem com a globalização.

A linha parece desenhar um elefante: um monte alto, como o corpo do elefante, que desce abruptamente para formar a base de uma tromba que, logo depois, se projeta para o alto.

O gráfico do elefante ganhou notoriedade com a ascensão de governos populistas nos últimos anos no primeiro mundo. A Londres global, onde mora a ponta da tromba, votou contra o brexit; as antigas cidades industriais da Inglaterra, velhos redutos operários, votaram a favor.

Regiões industriais dos países ricos que votavam na esquerda havia muitas décadas viraram para a direita nacionalista. A globalização pode ter trancado, dentro das fronteiras das democracias ricas, quem mais perdeu e quem mais ganhou, em termos relativos, com o processo.

No novo livro, Milanović volta a falar de desigualdade e de países que já foram comunistas, mas agora olha para a Ásia. Logo após sua vitória contra o comunismo, o capitalismo se dividiu em duas grandes modalidades, cada uma com sua superpotência: o “capitalismo liberal-meritocrático”, cujo representante paradigmático são os Estados Unidos, e o “capitalismo político”, cujo representante paradigmático é a China.

“Penso que é cada vez mais evidente que existe um conflito de interesses real entre a China e os Estados Unidos”, diz ele. “Em algum momento deste século, a China pode alcançar um desenvolvimento tecnológico inigualável, o que a tornaria o poder econômico supremo.”

A ênfase nos casos paradigmáticos ajuda Milanović a ser didático, mas é difícil não ficar curioso a respeito do que ele diria sobre os casos menos bem-sucedidos de cada modelo (América Latina e Rússia, por exemplo).

A decisão de incluir Singapura entre os exemplos de capitalismo político também é discutível, embora a cidade-estado, com autoritarismo e liberalismo plenamente desenvolvido, seja mesmo um híbrido difícil de classificar.

O capitalismo liberal-meritocrático não é igual ao capitalismo “clássico”, uma vez que sua elite é rica tanto em termos de patrimônio (empresas, imóveis, ações, investimentos etc.) quanto em termos de trabalho (recebe altos salários).

A velha elite incluía, sobretudo, proprietários. A nova também inclui executivos, advogados, engenheiros de software e outros profissionais altamente qualificados que, além disso, são os principais detentores de patrimônio.

Os membros dessa nova elite tendem a se casar entre si, o que dá a seus filhos uma enorme vantagem no mercado de trabalho e perpetua a desigualdade. Note-se que o “meritocrático” aqui não quer dizer “justo”, apenas algo na linha de “baseado em desempenho”, sem julgamento, neste momento da análise, sobre a distribuição dos variados fatores que influenciam o desempenho.

Em sua versão moderna, criada pelo líder chinês Deng Xiaoping, o capitalismo político é gerido por uma burocracia tecnicamente competente, sem, entretanto, o contraponto democrático ou a separação de Poderes característica das democracias modernas.

O modelo tem sucessos espetaculares para apresentar em sua defesa (China e Vietnã pós-reformas), mas gera contradições agudas: sem garantias de direito, é difícil para a gestão tecnocrática se proteger da captura política.

E o capitalismo político, como o liberal-meritocrático, tem seus próprios mecanismos de geração de desigualdade: embora um Estado forte possa, em tese, refrear as assimetrias geradas pelo mercado, a proximidade entre riqueza e poder pode maximizá-las. Nenhuma das duas formas de capitalismo em disputa é particularmente igualitária.

Milanović, a propósito, não tem a menor dúvida de que a China é capitalista: a grande maioria das decisões econômicas são tomadas de maneira descentralizada, e tanto capital quanto trabalho são alocados pelo mercado.

O regime comunista, o “gestor” do capitalismo político, é um legado da trajetória histórica chinesa, mas atua como promotor ativo do desenvolvimento capitalista nacional. O capitalismo político é diferente do capitalismo liberal, mas não por ser anticapitalista.

Milanović, afinal, considera que os regimes comunistas, a despeito das intenções e esperanças de seus fundadores e líderes, acabaram atuando como “equivalentes funcionais” de uma burguesia dinâmica, facilitando a transição de sociedades pobres para o capitalismo.

Essa é uma das discussões mais interessantes do livro —e certamente vai servir de ponto de partida para debates animados. Para o leitor brasileiro, há uma curiosidade adicional: uma hipótese semelhante sobre essa “equivalência funcional” foi formulada na dissertação de mestrado de Fernando Haddad, candidato a presidente em 2018 pelo PT.

É tentador ver a relação entre as variedades de capitalismo, a rivalidade dentro do capitalismo sem rivais, como análoga às disputas travadas na Guerra Fria. Entretanto, a comparação nem sempre funciona. China e Estados Unidos estão profundamente integrados ao mercado global, o que não era o caso da União Soviética, diz Milanović na entrevista.

Seria interessante explorar a possibilidade de que essa integração imponha ao capitalismo político pressões por eficiência às quais o socialismo soviético não estava exposto (a não ser na área militar, em que sempre foi eficiente).

A integração econômica, por sua vez, pode enfraquecer a capacidade de os países ocidentais administrarem suas contradições, como vimos na discussão do gráfico do elefante. Mas, no geral, Estados Unidos e China estão entre os vencedores da economia global, com grande interdependência entre ambos, e formam o “G2” da geopolítica mundial.

Por outro lado, é sempre bom lembrar que a Primeira Guerra Mundial foi desencadeada por países economicamente interdependentes —e antes de o capitalismo ter “rivais”. O desastre de 1914 desmoralizou bastante a ideia de que a integração econômica seria suficiente para evitar guerras.

“Capitalismo sem Rivais” foi publicado no mercado de língua inglesa em setembro do ano passado, portanto em um mundo ainda pré-pandemia, mas suas reflexões ficaram ainda mais pertinentes no cenário atual.

Milanović escreveu recentemente na revista Foreign Affairs que a pandemia de Covid-19 pode ser o “momento Sputnik” da China, análogo ao salto de prestígio internacional que a União Soviética conseguiu quando tomou, por um curto período, a dianteira da corrida espacial.

O satélite artificial Sputnik deu ao comunismo imenso prestígio internacional, ensinou o jovem Stephen King o que era sentir terror de verdade e obrigou o Ocidente a se mobilizar para realizar o esforço educacional e científico necessário para retomar a liderança da exploração espacial.

É inegável que a China está lidando com a pandemia muito melhor do que os Estados Unidos. A falta de transparência das autoridades chinesas no início da crise expôs uma falha sistêmica que poderia ter tido consequências graves, o que talvez não seja contornável em crises futuras. No entanto, o Estado chinês se mostrou mais capaz de tomar decisões difíceis e de mobilizar recursos em larga escala.

Por sua vez, a atual liderança norte-americana não tem parecido preparada para explorar o potencial de flexibilidade e inventividade que uma sociedade democrática deveria demonstrar em uma crise, mesmo que com atraso (como aconteceu na reação ao Sputnik).

O que nos traz ao nosso argumento final. A Covid-19 pegou a democracia ocidental em um momento particularmente ruim —e isso pode influir tanto na disputa dos dois modelos por legitimidade global quanto nos exercícios teóricos de comparação dos mesmos.

Outra liderança americana que não Trump teria sido tão insatisfatória no combate à epidemia? Provavelmente não, mas a resposta não é óbvia, pois as disfuncionalidades da política dos EUA —e, em especial, da direita americana— já vêm de algum tempo.

Entretanto, também é possível que a crise atual das democracias ocidentais seja passageira, superável, por exemplo, pela adoção das políticas reformistas que Milanović recomenda no final do livro.

“Capitalismo sem Rivais” tem tudo isso e muito mais: discussões muito interessantes sobre as formas de legitimação de cada modelo de capitalismo (a do liberal é mais “interiorizada”), sobre teorias da crise em países capitalistas e as relações entre globalização e corrupção.

Vários pontos podem ser fortemente criticados e discutidos —mais difícil é fazer isso no mesmo alto nível em que foram formulados. É uma obra ambiciosa executada por um dos poucos autores que poderia escrevê-la com rigor.

Leia a entrevista completa com o economista Branko Milanović.

CAPITALISMO SEM RIVAIS

  • Preço R$ 84,90 (376 págs); R$ 39,90 (ebook)
  • Autor Branko Milanović
  • Editora Todavia