terça-feira, 29 de julho de 2014

A fera está solta, do Blog Frei Betto

Apesar de o dragão escancarar a bocarra, acredito que o governo não contribuirá para aumentar a sua fúria, e tomará medidas paliativas, como evitar reajustar o preço dos combustíveis


Eis que desperta o dragão da inflação! E começa a es­capar do controle do governo, livre da precária jaula das po­líticas monetaristas que se recusam a mexer nas arcaicas es­truturas que sustentam a sociedade brasileira.

A principal vítima do dragão desenjaulado é a classe média que, graças ao governo petista dos últimos 11 anos, ampliou o seu contingente. Hoje, a população brasileira é de 200 milhões, dos quais 108 milhões estão na classe média, integrada por famílias com renda mensal de R$ 1.216 a R$ 4.256.

Graças às políticas sociais, à facilidade de crédito, à de­soneração de produtos da linha branca e, sobretudo, ao aumento real do salário mínimo a cada ano, 55 milhões de brasileiros migraram, na última década, da classe po­bre para a média. Esses emergentes movimentam, por ano, R$ 1,17 trilhão.

Diante do acúmulo da inflação, que subiu 6,28% de maio de 2013 a maio deste ano e chegou a 8,99% no setor de ser­viços, a fera à solta já abocanhou, no mesmo período, R$ 73,4 bilhões. O cinto começa a apertar...

A mordida do dragão só não foi maior porque, apesar da jaula de portas abertas, a renda da classe média continua a subir. Até quando? Pelo menos 10% das pessoas que inte­gram essa faixa de renda começam a escorregar para baixo, rumo à pobreza, atraídas pela voracidade do dragão e pe­los juros altos.

O governo, mestre em pirotecnia economicista, sabe que se correr o bicho pega; se ficar, o bicho come. Se não elevar os juros (o que agora se evita), o dragão sai da jaula. Se ele­var, o dinheiro fica mais curto, pois o crédito encarece e as dívidas engordam.

O brasileiro está mais cauteloso com as compras. A farra do carro novo perdeu fôlego. É verdade que a classe média, que abrange 58% da população, ainda anda faceira: viagens ao exterior, academia de ginástica, salão de beleza, sho­pping center...

Isto é mérito do governo: dentro de qualquer barraco de favela são encontrados telefones celulares, TV em cores, ge­ladeira, máquina de lavar e fogão. E talvez, lá no pé do mor­ro, um carro estacionado. A vida dentro de casa é bem mais confortável do que fora...

Se a classe média brasileira fosse um país, ela integra­ria o G-20, o grupo das 20 nações mais ricas do mundo. Figuraria em 12º lugar em população e seria a 18ª nação em consumo. Porém, a desigualdade é gritante. Basta di­zer que 43% dessa classe emergente habitam o Sudeste do Brasil.

Se em nossos estádios reina a Fifa, em nossa gente a situa­ção não está nada fofa. Como canta Zeca Pagodinho, “quem nunca comeu melado se lambuza até o pé”. O brasileiro con­quistou direitos pessoais nessa última década. Mas cadê os direitos sociais? A saúde e a educação de qualidade, o sane­amento, a segurança?

Cada trabalhador destina 150 dias de trabalho apenas pa­ra pagar seus impostos. A mobilidade urbana está cada vez mais engessada: carros demais, ruas de menos; ônibus pre­cários e caros; metrôs curtos e superlotados, insuficientes para absorver tantos passageiros nas horas de pico.

Essa dificuldade de transporte afeta o trabalho (atrasos, perda de tempo no trânsito, greves periódicas) e a vida fa­miliar. Com menos tempo para curtir a família, o brasi­leiro exige que a escola, além de instruir, também eduque seus filhos...

Não seria mais sensato deputados e senadores defende­rem, não a redução da maioridade penal, e sim da jorna­da de trabalho, de modo que nossas crianças e jovens con­vivam mais com os pais? Medida que, aliás, multiplicaria o número de empregos.

Ora, estamos em ano eleitoral. Apesar de o dragão escan­carar a bocarra, acredito que o governo não contribuirá pa­ra aumentar a sua fúria, e tomará medidas paliativas, como evitar reajustar o preço dos combustíveis.

Contudo, terá que suportar a pressão das categorias profissionais que se julgam no direito de ver seus salá­rios corrigidos pelo Índice de Preços ao Consumidor Am­plo (IPCA). E haja manifestações, paralisações e greves! Aliás, um direito constitucional, por mais que incomo­dem. E ninguém ostenta mais pós-doutorado em greves do que o PT.

Frei Betto é escritor, autor de O que a vida me ensinou (Saraiva), entre outros livros.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Assim é se lhe parece


 Josef Barat

Na famosa peça de Pirandello, os habitantes de uma pacata cidade no interior da Itália têm a sua atenção despertada por três sobreviventes de um terremoto. O problema é que o parentesco que une os três não fica muito claro aos olhos e ouvidos das pessoas. As versões expostas causam um enorme alvoroço entre os moradores. Todos desejam saber qual é a verdade, mas como descobri-la se as coisas se apresentam não como são, mas como parecem ser? Ao final, a busca da verdade se torna invasiva e cruel.

Situação similar é a que vivemos no Brasil, nestes tempos de Copa, eleições, manifestações e vaias. Na narrativa do governo, a realidade é escamoteada pelo ufanismo exagerado e pelo jogo repetitivo (e cansativo) de “eles contra nós”. Na narrativa da oposição, a verdade vem sendo buscada com pouco empenho e um jeito blasé. Três personagens sabem, no entanto, que o pano de fundo é uma realidade áspera que temem revelar.

Todos sabem (ou deveriam saber) que, no Brasil, os níveis médios de produtividade são muito baixos; a proporção dos investimentos em relação ao PIB não sustenta um crescimento anual continuado de mais de 4%; a exacerbação do consumo e do crédito não segura o crescimento por muito tempo; e que a prescrição de um “pouquinho” de inflação, ao invés de estimular a economia, a torna adicta de algo que desagrega a produção e concentra renda. Logicamente, sabem também que os níveis de educação e qualificação dos recursos humanos são precários; que o uso predatório dos recursos naturais só gera mais pobreza; e que as infraestruturas, em geral, são insuficientes (ou deficientes) para dar suporte à carência de serviços, à produção e às exportações.

Não surpreende, portanto, que há algum tempo paire no ar um sentimento difuso de frustração e mal-estar. A narrativa segundo a qual o crescimento resolve todos os problemas a seu tempo, há muito deixou de convencer. O crescimento do PIB é, sem dúvida, condição necessária, mas não suficiente, pois sem estabilidade da moeda, sem aumento da produtividade e sem competitividade neste mundo cada vez mais integrado, não se atinge patamares mais elevados de bem estar e igualdade. A busca de reformas mais ousadas e modernas é sempre postergada e o debate das grandes questões que poderão definir o futuro do país está ausente no Congresso Nacional e no Judiciário. O Executivo, movido por marqueteiros, trata de questões que alcançam um horizonte de 4, ou no máximo de 8 anos.

Tome-se o exemplo das infraestruturas, considerando as de logística, transporte, energia, comunicações e saneamento. O debate se restringe à visão da mera execução de “obras” e se fecha no ciclo da construção em si mesma. Não se pensa em conjuntos de projetos que gerem sinergias para reforço de cadeias produtivas e consolidação de especializações regionais e, muito menos, na funcionalidade do projeto, considerada uma visão sistêmica. Este quadro é agravado, ainda, pela abordagem da “obra” como uma realização de concreto e aço, uma conquista da engenharia civil, sem levar em conta que na realidade do mundo, contam tanto ou mais os softwares, as inovações, a incorporação de tecnologias de ponta e os sistemas de gestão, monitoração e manutenção, que dão maior alcance e repercussão à sinergia de grupos de projetos. Em suma, concepção, execução e governança dos projetos de infraestrutura, no Brasil, já estão ultrapassadas há muito tempo. Surpreende como não se incorpora ao debate político esse obsoletismo e a falta de funcionalidade das infraestruturas.

Construir ou promover grandes reformas simultaneamente em 12 estádios, pode ser vista como uma narrativa de sucesso da engenharia brasileira, apesar de acidentes evitáveis. Assim é, se lhe parece... Mas a dura realidade é que teremos muitos “elefantes brancos”, fechados em si mesmos, sem funcionalidade e sujeitos à deterioração por falta de manutenção. Sem falar no malfadado “legado da Copa”, um conjunto de obras desconectadas e inacabadas, que se imaginava poderem melhorar a mobilidade, a segurança e a comunicação.
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Josef Barat – Economista, consultor de entidades públicas e privadas, é Coordenador do Núcleo de Estudos Urbanos da Associação Comercial de São Paulo.



Vamos colocar tudo a limpo na Santa Casa', diz Chioro


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Brasília - O ministro da Saúde, Arthur Chioro, quer que a auditoria que será aberta para investigar as contas da Santa Casa de São Paulo analise também o destino que foi dado aos recursos federais transferidos para a instituição. Semana passada, depois de o maior hospital filantrópico do País suspender por 30 horas o atendimento no pronto-socorro por falta de materiais, o ministério recebeu da Secretaria de Saúde paulista uma planilha com os repasses para complexo e identificou um rombo de R$ 72 milhões. "Vamos colocar tudo a limpo. Não vamos participar de uma auditoria somente para avaliar a despesas. Temos de olhar também a receita." Caso o governo de São Paulo não apresente uma explicação plausível, Chioro diz que pedirá a devolução dos recursos. Procurado na sexta-feira, o governo do Estado voltou a dizer que o ministro está equivocado.
Em entrevista ao Estado, Chioro classificou como "jogo de hipocrisia" a alegação de que a crise de Santas Casas seria resultado da falta de reajuste na tabela de procedimentos. Ele garante que ela foi alterada 37 vezes ao longo dos últimos 7 anos e que representa 50% do total de recursos que instituições recebem da pasta. Avisa que já mandou sua equipe avaliar alternativas para acabar com a tabela SUS. "Ela está com os dias contados."
Quanto a nota distribuída pelo Governo de São Paulo negando a falta de repasse dos R$ 72 milhões para Santas Casas. Chioro rebate: "Esta não é uma resposta formal para o Ministério. É uma nota da assessoria de imprensa. Vou aguardar esclarecimentos. Vamos pedir para que o assunto seja avaliado na auditoria que será feita da Santa Casa. Não vou participar de um grupo só para olhar as despesas. Temos de olhar as receitas também. Se estivermos errados, tudo bem. Mas nossa avaliação é a de que existe um rombo. O dinheiro não está chegando. Se isso for confirmado, vamos exigir que apliquem a verba. Com isso, a dívida da instituição, a curto prazo, estaria resolvida: ela é de R$ 55 milhões. E os recursos que não chegaram ao destino totalizam R$ 72 milhões."
Chioro afiram existir hipocrisia quando administradores de hospitais filantrópicos atribuem a crise pela qual estão passando à falta de reajuste da tabela do SUS. "Quando provedores vêm aqui para conversar comigo, todos mudam o tom. Eles sabem que não recebem mais por tabela. Isso acontece somente com alguns hospitais privados e lucrativos. É um jogo maroto que eles fazem. Muito mais que base de pagamento, a tabela é hoje um instrumento de informação, que nos permite saber quantos atendimentos, quantas cirurgias foram feitas. Boa parte dos recursos dessas instituições vem dos incentivos, uma lógica que vem sendo aprimorada desde 2004. A Santa Casa de São Paulo é um exemplo. Ano passado, eles receberam R$ 150 milhões referentes à produção. E outros R$ 138 milhões de incentivos."
Questionado se estão errados ao afirmar que a tabela está desatualizada, Chioro afirma: "Vou chamá-los aqui e lembrar que em 2004 eles produziram uma proposta de mudança na lógica de pagamento. Até então, administradores vinham ao ministério para perguntar: o que devo produzir, que tipo de procedimentos devo fazer para receber melhor, em vez de informar o que a população da região precisava. O pagamento por procedimentos é isso, é uma lógica perversa. Você interna pessoas que não precisam, segue em busca de atividades mais lucrativas. Com incentivos é diferente, induzimos as políticas necessárias. Isso foi aceito e colocado em prática. Ano passado, os provedores procuraram o (então) ministro Alexandre Padilha e negociaram duas coisas: aumentar o valor do IAC (Incentivo de Apoio à Contratualização) de 26% para 50% e encontrar mecanismos para perdão da dívida com o governo. Vou perguntar: vocês querem que eu acabe? Pego os R$ 2, 6 bilhões referentes ao reajuste do incentivo, dinheiro que fica concentrado para Santas Casas, e coloco na tabela, com a concessão de reajustes. Eles vão responder: de jeito nenhum."
O ministro da Saúde, diz que a crise não está relacionada só com financiamento: "Só por isso? Veja a Santa Casa de São Paulo: 40 hospitais estão sob a gestão da instituição. É muito comum apontar problemas de gestão no setor público, mas todos sabemos que é um desafio na área privada também. Só lamento que o provedor não tenha nos procurado."
Sobre o fato de não ter sido comunicado sobre a crise da Santa Casa e se o governo federal não deveria acompanhar a aplicação dos recursos, Chioro rebate: "O contrato não é feito com o governo federal. É entre o Estado de São Paulo e a instituição. Você deveria perguntar para eles."
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

O colosso da Ipiranga


A sinuosa saga do Copan
FRANCESCA ANGIOLILLORESUMO Ao longo de 22 anos, do início da venda das primeiras unidades do Copan, em 1952, até a sua conclusão, o arquiteto Carlos Lemos conduziu a construção do icônico edifício, concebido por seu colega Oscar Niemeyer. Aos 89 anos, ele lança publicação na qual narra como foi erguido o maior prédio residencial do Brasil.
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Quem vê hoje o sinuoso Copan erguendo-se no centro de uma cidade em que edifícios de porte semelhante pululam aqui e ali em questão de meses não imagina os esforços consumidos para que suas curvas passassem a dominar a avenida Ipiranga.
Foram mais de duas décadas desde que a ideia surgiu, nas dependências do Banco Nacional Imobiliário, em 1951, até que se solicitasse o último "habite-se" do edifício, em 1974.
Durante todo esse período --interrompido aqui e ali por problemas variados, indo das incertezas a respeito das fundações sobre as quais repousaria o edifício, até casos de inadimplência no pagamento das unidades habitacionais, passando por percalços na companhia empreendedora-- um homem capitaneou sua construção.
Carlos Lemos era um jovem arquiteto quando Octavio Frias de Oliveira (1912-2007), então diretor da carteira imobiliária do BNI e mais tarde publisher da Folha, sugeriu seu nome para ser braço-direito de Oscar Niemeyer (1907-2012) em São Paulo.
O carioca, autor do projeto do Copan, precisava de alguém que atuasse localmente não só nessa empreitada mas também nos outros edifícios, em diferentes etapas de andamento, que lhe haviam sido encomendados pela instituição de Octavio Orozimbo Roxo Loureiro, todos eles no centro da capital paulista.
A decoração do apartamento para onde se mudara Frias ao casar, em 1948, tinha ficado a cargo de Lemos. O rapaz, formado no Mackenzie pouco antes da concepção do Copan, acabava de projetar, também por encargo de Frias, seu primeiro grande conjunto arquitetônico, o trio de edifícios Paris, Roma e Rio, além do teatro Maria Della Costa, todos em São Paulo.
Durante o tempo em que o "s" do Copan subia, Lemos tornou-se professor na Faculdade de Arquitetura da USP, participou de exposições de arte, teve uma filha. "O primeiro ano foi bastante trabalhoso. Mas, depois de um momento, virou uma rotina", resume o arquiteto, 89, ao lembrar, em entrevista à Folha, os anos de construção, tema de livro que acaba de lançar.
"A História do Edifício Copan" [Imprensa Oficial do Estado, R$ 50, 168 págs.] é o primeiro volume da trilogia que a editora dedicará ao prédio. Os outros serão "Viver no Centro: da Colônia ao Copan" (Maria Ruth Amaral de Sampaio, Jefferson Del Rios e outros) e "Oscar Niemeyer: 34 Anotações para um Perfil", de Eric Nepomuceno.
CARÊNCIA O livro de Lemos começa com um panorama histórico da situação de moradia em São Paulo, desde o fim do século 19 até os anos do pós-Guerra, em que a classe média enfrentava um quadro de "carência habitacional", como define o autor.
A evolução das formas de morar na cidade é um dos temas de predileção do arquiteto, que até 1990 lecionou história da arquitetura na FAU-USP --hoje ainda orienta alunos na pós-graduação.
"A classe média tinha emprego, tomava bonde, ia à missa e pagava o aluguel --era parte da normalidade", explica Lemos. O aluguel permitia que esse contingente crescente de pessoas, sem recursos para investir na aquisição de um imóvel, pudesse morar perto do trabalho e do transporte.
Não havia, frisa o arquiteto, nada semelhante a pesquisas de mercado que pudessem estabelecer o que desejava essa classe, em termos de vivenda. Resistia-se bastante ainda aos apartamentos --a população considerava as construções multifamiliares promíscuas e, durante anos, floresceram os sobradinhos, feitos para aluguel, em regiões como Perdizes.
"Não se sabendo direito o que queria essa classe, Loureiro e Frias chegaram a uma conclusão que era lógica. Fazer um prédio grande, variado e ver o que vendia. Uma espécie de laboratório." Assim nasceu a ideia do Copan.
Mas não só. O nome que hoje batiza o edifício deriva de Companhia Panamericana de Hotéis e Turismo. Em 1951, pensando nas comemorações do Quarto Centenário da cidade, dali a três anos, Loureiro vislumbrou a possibilidade de criar, no terreno comprado da Santa Casa na avenida Ipiranga, um grande "maciço turístico".
Além de um hotel, em prédio separado, a ser gerido por parceiros americanos, haveria outros atrativos para visitantes, como a galeria comercial, um teatro e um cinema, estes alocados no edifício.
"O fulcro", porém, "era o hotel", recorda Lemos, dizendo que o edifício-laboratório teria inicialmente 500 apartamentos, o suficiente para definir "o quadro dos desejos da classe média".
Foi Frias, diz o arquiteto, quem viu que o negócio com a companhia americana que deveria encampar o lado turístico do empreendimento poderia não vingar. Como de fato "melou", diz Lemos. O prédio habitacional praticamente dobrou de tamanho.
No livro, Lemos recorda como Niemeyer, trancafiado numa sala do banco, refez o programa do projeto, tentando estabelecer a equação que tornasse viável a nova face do investimento. Chegaram à conclusão de que seriam necessários 900 apartamentos, divididos em seis blocos, cada um com uma tipologia --terminaram sendo 1.160 unidades habitacionais, onde vivem hoje mais de 3.000 pessoas.
DECEPÇOES Em "Viagem pela Carne" (Edusp), seu livro de memórias, Lemos fala do desgosto de Oscar Niemeyer diante da impossibilidade de ver realizada a rampa helicoidal que imaginara como acesso ao terraço-jardim do Copan. Os calculistas sugeriram, em seu lugar, uma escadaria. "Num desabafo, ele me disse: Faça você essa escada, eu não quero mais saber disso'. Obedeci", escreve Lemos no livro de 2005.
A decepção de Niemeyer veio em 1956, logo após a obra do Copan ser retomada. A construção havia ficado interrompida desde 1954, quando a Sumoc (Superintendência da Moeda e do Crédito) determinara a intervenção do Banco do Brasil na instituição de Loureiro, considerando que seus fundos em moeda eram insuficientes em comparação ao capital imobiliário --ou seja, muito imóvel para pouco caixa.
O BNI a essa altura já mudara de nome, primeiro para Banco Nacional Interamericano e, depois, para uma nova razão social, CNI, Companhia Nacional de Indústria e Construção, tentando em vão evitar a intervenção. O banco acabou liquidado extrajudicialmente, os americanos desistiram da parceria, e o Bradesco assumiu a obra em 1957 --o terreno onde se ergueria o hotel abriga um edifício do banco.
Niemeyer já não estava mais ligado à construção do Copan desde o ano anterior. Devendo se dedicar integralmente aos projetos de Brasília ("Ele ganhava um ordenado do Juscelino, você sabia?", rememora Lemos), passou de vez o bastão para o colega paulista.
Dali por diante, durante o tempo que durou a obra, a cada quinta-feira (salvo uma vez por mês, quando ia à sede do Bradesco em Osasco, para almoçar com Amador Aguiar e prestar contas ao diretor-presidente do banco), Lemos inspecionou a obra, percorrendo seus 32 andares. A pé. "Elevador era só para carga", conta.
Natural, portanto, que, como responsável pela obra, ele também tenha seu quinhão de decepções com o que realmente se erigiu, no confronto com o que foi desenhado --no caso, foram cerca de 1.200 folhas de papel vegetal, por muitas das quais passou a caneta-nanquim do próprio Lemos.
O conjunto, conta o arquiteto no livro, está sendo restaurado e digitalizado, de maneira a ficarem os desenhos "para sempre livres de manuseios indesejáveis". Uma amostra muito útil deles, porém, compõe, com outros documentos, um caderno ao final do volume, deixando ao alcance de estudiosos e curiosos plantas do Copan --tanto as originais quanto as modificadas em decorrência da obra.
Das modificações que o projeto sofreu, algumas pesaram mais para Lemos. Para ele, o "esfacelamento dos apartamentos grandes foi realmente uma decepção".
Os blocos E e F, como se pode ver nos desenhos apresentados no livro, compunham-se de apartamentos de luxo, com quatro dormitórios. Resulta, no entanto, que durante a construção esses foram os que menos venderam. Já com o projeto em execução, os que não haviam sido adquiridos foram redivididos em apartamentos de um quarto e quitinetes.
Lemos toma o livro, folheia, indica os corredores tortuosos que se formaram, dando lugar a quatro ou seis apartamentos onde deveria haver um. A mudança foi feita pelos engenheiros do Bradesco, sem que o arquiteto fosse consultado.
Outro desapontamento é de caráter ainda mais pessoal: ficou de fora do edifício o projeto do teatro, contribuição própria de Lemos, que vinha da experiência recente no Maria Della Costa.
Por fim, o arquiteto lamenta que, em lugar do terraço público previsto no projeto, ao qual se teria acesso pela tal rampa impossível, hoje haja um espaço envidraçado e privado --durante a obra, ele havia sido vendido pelo Bradesco à Companhia Telefônica Brasileira. Atualmente, o local é ocupado pelo escritório de uma loja de brinquedos.
Nessa grande área pública, uma espécie de jardim suspenso, com cafés, bancos para descanso e floricultura, haveria escadas-rolantes que levariam ao grande cinema. Este foi feito, mas sua entrada teve de ficar restrita à galeria comercial do térreo. Hoje, como tantas outras, a sala de cinema do Copan se transformou numa igreja evangélica.
PLANO DIRETOR Em teoria, o Copan parece responder ao que se desenha como modelo para a cidade no novo Plano Diretor: uma grande massa vertical, alta e densa, ao longo de um eixo viário importante, abrigando pessoas de classes sociais diferentes, com térreo destinado ao comércio.
Será que o edifício-laboratório, então, era um experimento visionário? Lemos discorda. "A cidade precisa é de transporte público eficiente, para que as pessoas possam morar de forma arejada, e não em grande densidade. O Copan é bom porque é um só."
Além do mais, o arquiteto duvida da eficácia do novo plano --como de resto, de qualquer outro. "Esquece: a cidade cresce ao léu."
E recorda que foi o descumprimento de um código normativo para a cidade, o de Prestes Maia (1896-1965), que permitiu que, afinal, o Copan existisse. O Plano de Avenidas criado pelo engenheiro em 1930, e posteriormente implantado durante suas duas gestões como prefeito da cidade, entre 1938 e 1945, fixava a altura máxima dos edifícios em 11 andares. Deu-se um jeito, e lá está o colosso.

    210 mil pessoas trocam casa por prédio em 5 anos e 1/3 de SP vive em condomínio


    Raio X mostra ainda os 21 mil condomínios residenciais paulistanos empregam 6 mil pessoas e movimentam R$ 13,2 bilhões por ano
    210 mil pessoas trocam casa por prédio em 5 anos e 1/3 de SP vive em condomínio
    "AE"
    Verticalização e adensamento são palavras-chave para explicar e entender o boom imobiliário paulistano. E novos dados ilustram isso: São Paulo ganhou mil prédios residenciais e 210 mil moradores de apartamentos nos últimos cinco anos. Esse tipo de moradia representa 37% (um em cada três) do total dos domicílios paulistanos.
    É o que aponta um levantamento realizado pela empresa de administração de condomínios Lello – obtido com exclusividade pelo Estado. Segurança e praticidade são os principais atrativos que levam o paulistano a trocar a casa por um apartamento. “Mudei principalmente por causa da segurança. Mas também acho bom não precisar me preocupar em cuidar do quintal ou da piscina”, afirma a publicitária Ana Paula da Costa Bezerra, de 44 anos, que vive em um apartamento no Morumbi com os dois filhos. 
    “A casa era grande e tinha muitas escadas. Por causa da minha idade, não posso ficar subindo e descendo o tempo todo. Sem contar que a casa dava muito trabalho. Como as escadas viraram um problema, a mudança serviu como um ajuste para esta fase da minha vida”, justifica a dona de casa Heliana Correa Carvalho, de 70 anos, que vive em um apartamento na Granja Julieta, na zona sul, há três anos. 
    “Segurança. A principal vantagem em morar em apartamento é poder ficar em casa sozinha sem medo”, resume a escriturária Daniela Martins Ortega, de 34 anos, que se mudou com marido e filho para um apartamento no Butantã, na zona oeste. 
    O raio X mostra ainda que os 21 mil condomínios residenciais paulistanos – considerando apenas os com mais de três andares e orçamento superior a R$ 24 mil por ano – empregam 6 mil pessoas como zeladores, porteiros, faxineiros e garagistas e movimentam R$ 13,2 bilhões por ano, valor superior ao orçamento anual de capitais brasileiras como Curitiba e Porto Alegre. 
    Desse total, R$ 5,9 bilhões são destinados ao pagamento de funcionários e encargos trabalhistas e outros R$ 2,3 bilhões são gastos com o consumo de água. Os outros principais gastos de um condomínio são com energia elétrica e contratos de manutenção e conservação.
    Geografia.O levantamento da empresa também mostra a distribuição dos imóveis. Do total de condomínios residenciais na cidade, 47,3% ficam na zona sul. Outros 33,4% estão localizados na zona oeste, 11,5% na zona leste e 7,8% na região norte. 
    Em média, cada prédio tem 70 apartamentos. Do total, 15,1 mil condomínios são os chamados “clássicos”, com taxa média mensal de R$ 487. Outros 2,5 mil prédios são de médio para alto padrão, com condomínio mensal médio de R$ 718. Os condomínios denominados “grandes conjuntos”, com três ou mais torres, somam 1.350. Nesses locais a cota média é de R$ 250 por mês. 
    São considerados de alto padrão 830 empreendimentos, com taxa média mensal de R$ 1,3 mil. Há 650 do tipo “clube” (com taxa média de R$ 586 por mês) e 120 “econômicos” (R$ 95 por mês).
    Para especialistas, a verticalização é um processo irreversível, que se acentuará ainda mais nos próximos anos. “O fenômeno existe porque tem demanda: as pessoas querem morar em bairros com melhor estrutura e, aí, o único jeito é adensar”, explica o arquiteto e urbanista Pedro Paes Lira, diretor para o Brasil da empresa de Arquitetura, Engenharia e Consultoria espanhola. “A concorrência pelo espaço é o que faz com que os novos lançamentos sejam verticalizados.” 
    A pesquisa também mostra que são duas as principais dúvidas dos novatos na vida de condomínio: como funciona a divisão das despesas em um prédio e qual é o sistema de utilização das vagas de garagem. A empresa de administração afirma que, nos últimos anos, esse tipo de questionamento tem sido “mais intenso”, justamente por causa desse fenômeno que leva cada vez mais paulistanos a trocar casa por apartamento. “Para estes, é uma vida totalmente nova e diferente, com regras estabelecidas”, comenta Angélica Arbex, gerente da Lello. 
    Entretanto, na contramão dessas dúvidas vem outro dado, que reflete a baixa atuação dos moradores na política do prédio onde moram: 60% dos paulistanos que vivem em condomínio simplesmente ignoram as reuniões. Em média, um prédio realiza duas assembleias por ano. São encontros importantes – apesar de muitas vezes cansativos, com duração de até três horas – porque definem desde mudanças nas regras até se o dinheiro do condomínio será investido em uma reforma, por exemplo. “Esse baixo quórum é verificado até mesmo nas assembleias para a eleição do síndico e a aprovação das contas”, afirma a gerente. 
    A publicitária Ana Paula, por exemplo, admite que não participa das reuniões – mas reconhece que são nelas que acabam determinadas as prioridades para o condomínio. “Nem todos participam. Então, a minoria decide”, comenta. 
    “Eu participo das assembleias. Acho que me ajuda com algumas coisas”, afirma a dona de casa Heliana. A escriturária Daniela diz que também costuma ir às reuniões – porém, tem uma opinião crítica. “Não acredito que resolva alguma coisa. A síndica do meu prédio está no cargo há oito anos. Ela fica falando e as pessoas concordam com ela”, diz. 
    As assembleias “campeãs de audiência”, quando o número de presentes chega a 80% dos condôminos, são aquelas que têm em sua pauta sorteio de vagas de garagem. Nesse caso, as regras são claras: quem não comparece acaba ficando com os piores lugares para estacionar os veículos no condomínio. 
    Para realizar o levantamento, a Lello divide a cidade em 180 “quarteirões” – conjuntos de 100 a 200 condomínios. Todos os meses, essas regiões são percorridas, a pé, por funcionários da empresa. Com questionários na mão, eles abordam porteiros e síndicos. Os dados são checados por telefone por uma equipe de teleatendimento. “A nossa amostragem abrange 96% dos condomínios paulistanos”, afirma Angélica. 

    Crise da água cai nas agências reguladoras


    ANDRÉ BORGES - O ESTADO DE S. PAULO
    26 Julho 2014 | 17h 51

    Antaq acusa ANA de omissão na função de equilibrar uso da água que, por sua vez, diz que a primeira nunca apresentou uma solução

    BRASÍLIA - A escassez de água na Região Sudeste começou a causar fissuras dentro do governo federal. A crise, que até agora era tratada como um problema restrito ao governo de São Paulo, sendo observada à distância pela União, acabou desembocando em troca de acusações e desentendimentos entre as agências reguladoras. 
    A Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), responsável pela administração do transporte fluvial no País, acusa a Agência Nacional de Águas (ANA) de ser omissa em sua função de garantir o equilíbrio no uso da água para diferentes propósitos: abastecimento, geração de energia e transporte de carga. A Antaq também disparou críticas contra o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), acusado de privilegiar apenas o plano de geração de energia e ignorar o resto.
    Chico Siqueira/Estadão
    Hidrovia Tiête-Paraná, que era usada para receber barcaças com cinco mil toneladas de grãos, serve agora para diversão de pescadores
    “A ANA não faz o básico, que é garantir o uso múltiplo da água. Nem a ANA nem o ONS respeitam essa regra. Não somos consultados em nada, quem decide tudo são eles. Ficamos sabendo das decisões de vazão do Tietê-Paraná na última hora. Todos simplesmente ignoram a navegação”, disse ao Estado o diretor da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), Adalberto Tokarski. 
    O diretor da ANA, Vicente Andreu, reagiu às acusações. “A Antaq reclama, mas a verdade é que eles nunca apresentaram uma solução. Uso múltiplo da água não significa uso equivalente. O departamento hidroviário de São Paulo apresentou duas propostas para o ONS para resolver o problema. A Antaq nunca apresentou uma proposta”, afirmou.
    O ONS afirma que as decisões sobre a vazão dos rios são técnicas e decididas pelos membros do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico, ligado ao Ministério de Minas e Energia.
    Rusgas. O clima na Antaq é de indignação. As rusgas entre as agências reguladoras começaram a surgir em maio, com a redução de vazão de água nas hidrelétricas do sistema Tietê-Paraná. A medida afetou diretamente o tráfego de barcaças na hidrovia, que é a mais movimentada do País. Há quase um mês, as operações foram completamente paralisadas. 
    O diretor da agência, Adalberto Tokarski, fez um levantamento sobre o reflexo da retenção de água na Tietê-Paraná para a movimentação de carga. “Entre maio e novembro do ano passado, 2 milhões de toneladas de soja e milho passaram por essa hidrovia. Neste ano, se ela permanecer intrafegável nesse período, serão colocados 45 mil caminhões a mais nas estradas da região, para causar, mais uma vez, aquelas filas imensas nos portos do Sudeste. Isso é um absurdo.”
    Questionada sobre o assunto, a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, saiu em defesa da ANA. Em entrevista ao Estado, disse que a Antaq não propõe soluções para a situação. “A ANA tem uma proposta clara sobre hidrovia, e é verdade que o ONS tem uma certa resistência a isso. Mas a Antaq nunca soube discutir esse assunto. Ela não está preparada para esse debate político”, disse Izabella. “Por que a Antaq não constrói o diálogo? Por que não procura o seu ministro para discutir o tema? Se a situação está no limite, em vez de ficar acusando, o que ela deveria fazer é provocar o debate e tentar construir o marco regulatório que viabilize isso.” Para a diretoria da Antaq, as suas propostas são constantemente rejeitadas. Adalberto Tokarski diz que os problemas de navegação também começaram a afetar operações no rio São Francisco, onde empresas estão paralisando o transporte de carga e demitindo funcionários. A queixa foi levada à Comissão de Infraestrutura do Senado. “Ninguém está dizendo que não se deve gerar energia ou abastecer a população com água. O que está em questão é a forma de gestão. O uso da água é mal feito”, disse o diretor da agência.

    Fundação Casa


    JOSÉ DE SOUZA MARTINS - O ESTADO DE S. PAULO
    19 Julho 2014 | 16h 00

    Escritor mudava de romancista para jornalista com a prontidão do intelectual completo



    Arquivo pessoal
    Havana, 1981. Márcio Souza, João Ubaldo, Guarnieri e Martins no Prêmio Casa de las Américas

    “Zé, me arruma um lápis e um pedaço de papel” - disse-me João Ubaldo, um pouco afobado, depois de apalpar-se à procura de um e outro. Eu também não tinha nem lápis nem papel. Tínhamos sido levados em ônibus especial do Habana Riviera, onde estávamos hospedados, para aquela casa, sem que soubéssemos do que se tratava. Lá, ficamos sabendo que era a casa de Armando Hart, ministro da Cultura de Cuba. Tratava-se de um encontro social de encerramento das atividades do júri do Prêmio Casa de las Américas, no início de 1981, para o qual cinco brasileiros haviam sido convidados: Antonio Candido, João Ubaldo Ribeiro, Gianfrancesco Guarnieri, Márcio Souza e eu. 
    Em cadeiras de plástico, no jardim da casa, sentei-me ao lado de João Ubaldo e de Berenice, sua mulher, que estava grávida do primeiro filho de ambos. Pelo canto do olho, vi que um carro preto parara na entrada da casa e dele saía Fidel Castro. Disse a João Ubaldo: Fidel chegou. Ele ria de mim, como se eu estivesse fazendo troça, quando Fidel entrou no jardim, nos cumprimentou e sentou bem perto de nós. Ubaldo saiu por um instante à procura de papel e lápis e voltou com um exemplar do Granma, o jornal do Partido Comunista Cubano, e um lápis. Na margem branca anotava o que Fidel dizia no bate-papo que ali começava e duraria umas três horas e o tempo de consumo de dois charutos. Numa surpreendente informalidade, Fidel discorreu sobre as relações de Cuba com os diferentes países da América Latina, contou o que os cubanos “andaram aprontando” na Venezuela, pintou um retrato de Cuba naquele momento. Pouco depois de nossa volta ao Brasil, João Ubaldo publicou a “reportagem” inesperada nas páginas do Pasquim. Vi a metamorfose do romancista e contador de casos em jornalista na minha frente, uma transfiguração súbita a denotar a prontidão de um intelectual completo. 
    Nós nos conhecemos em Havana, no aeroporto, chegando. Brincalhão, juntava os diferentes e os desconhecidos, que éramos quase todos ali, mas um brincalhão sério. Deixou isso claro na noite de nosso último jantar no pequeno hotel em que fomos alojados, na Ilha de Pinos, para fazer a leitura dos numerosos originais de livros em língua portuguesa que concorriam ao prêmio. Sairíamos de lá para Havana com o nome da vencedora brasileira, Ana Maria Machado, pelo belo livro De Olho nas Penas. 
    Estávamos conversando quando Ubaldo pegou uma laranja da mesa e cortou-a ao meio. De relance, o vimos tirar de dentro dela uma nota de um dólar, ainda molhada de sumo. Escritor fazendo mágica? “Não é mágica”, explicou. Cortou outra, e outra nota de dólar saiu de dentro. Os dois cicerones que nos acompanhavam, e se soube serem do serviço secreto, alarmados, queriam saber como se fazia aquilo. “Aqui dólar dá nas laranjeiras”, explicou com malícia. “Vocês estão perdendo dinheiro.” Provavelmente, não dormiram naquela noite. 
    Depois da volta, sobretudo depois de 2000, com a internet, trocamos muitas mensagens em torno de um interesse comum, o uso popular das palavras “novas” que, através da publicidade, do rádio e da TV chegam ao cotidiano das pessoas comuns. Ele tinha uma besteiroteca de fotos de propaganda e avisos que documentam o uso popular da língua portuguesa, como o escrito num bolo: “Parabéns grassa você é muito espessial”, “Deus potrêja esta casa”, “Vende-se filhote de lavrador” (num canil), “Vende-se cochão altopédico”. Acrescentava pequenos comentários, como se fosse coisa séria.
    Certa vez, decidi escrever um artigo para minha coluna no caderno Metrópole sobre a casa da marquesa de Santos. Um colega vira na Academia Brasileira de Letras cartas de amor trocadas entre d. Pedro I e sua amante. Ele se assinava “Imperador” e ao lado da assinatura colava alguns dos seus pelos pubianos. Escrevi a João Ubaldo pedindo socorro. Na mensagem à bibliotecária da Academia, ele explicou que um amigo precisava de informações sobre d. Pedro I. Mas formal, para evitar a suspeita de malícia, foi logo esclarecendo: “Não é minha intenção envolver a senhora com as trapalhadas amorosas de Sua Majestade”. Não sei como ele fez, porém em pouco tempo alguém me escrevia dizendo mais ou menos o seguinte: “Professor, encontrei as cartas, mas não encontrei os pelos. Tenho uma amiga que é bibliotecária na Biblioteca Nacional, onde também há cartas de d. Pedro. Vou pedir a ela que faça uma busca”. Mais adiante uma simpática pessoa da BN me escrevia: “Professor, não achei as cartas, mas achei os pelos numa caixinha”.
    *
    José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros, de 'uma arqueologia da memória social - autobiografia de um moleque de fábrica' (Ateliê)

    Padrão Máfia


    WÁLTER FANGANIELLO MAIEROVITCH - O ESTADO DE S. PAULO
    19 Julho 2014 | 16h 00

    Esquema desbaratado pela Operação Jules Rimet aponta para responsabilidade da Fifa, por conivência ou negligência

    UANDERSON FERNANDES/AGÊNCIA O DIA
    Investigação. Ingressos apreendidos com Paul Whelan, filho do CEO da Match
    Certa vez, sobre o fenômeno representado pela criminalidade organizada transnacional, a pesquisadora escocesa Alison Jamieson sustentou que as máfias tinham trocado, fazia muito tempo, a metralhadora pelo mouse do computador. 
    Em outras palavras, nas internacionais criminosas de matriz mafiosa a ideologia dominante é a do lucro. E, diante disso, as máfias passaram a privilegiar - em vez dos crimes de sangue espetaculares - o emprego de tecnologia de ponta, a infiltração nos órgãos de poder e corporações. Mais ainda - isto está no DNA mafioso -, tendem a submeter as instituições financeiras a que se tornem dependentes das movimentações financeiras de suas atividades ilegais.
    Com efeito, na Convenção das Nações Unidas de 1988 contra o tráfico ilícito de drogas, concluiu-se que estava o crime organizado utilizando o sistema bancário-financeiro para lavar dinheiro e reciclar capitais em atividades formalmente ilícitas.
    Por outro lado, na abertura da Convenção das ONU sobre crime organizado sem fronteiras, em dezembro de 2000 na cidade italiana de Palermo, o então secretário-geral Kofi Annan advertiu sobre a forma de atuar do crime organizado, ou seja, de maneira reticular, e isso estava a gerar lucro a crescer 40% ao ano. Para o ex-czar antidrogas da ONU Antonio Maria Costa, na crise econômica norte-americana o sistema interbancário de compensações não quebrou porque circulava o capital movimentado pela criminalidade organizada. E a supracitada Convenção de Palermo de 2000 - único instrumento jurídico internacional de contraste às associações criminosas transnacionais - preconizou, além da cooperação internacional, a adoção de um tipo penal comum, minimalista e abrangente a ponto de alcançar também associações de doleiros, lavadores de dinheiro sujo, traficantes, cambistas e quejandos.
    Diante desse quadro criminal preocupante, com evasões e sonegações fiscais continuadas de permeio, não podem ser consideradas surpresas as recentes ações de cambistas a operar no Brasil redes criminosas transnacionais, empenhadas na venda de ingressos para os jogos da Copa da Fifa. Na disputa da África do Sul ocorreu o mesmo e a Fifa, com seu secretário-geral, Jérôme Valcke,- agora no Brasil e sem corar num discurso do agrado apenas à criminalidade organizada-, sustentou a impossibilidade de se colocar um fim a esse sistema criminoso. Só que os cambistas associados criminosamente não contavam com a eficiência da Polícia Civil do Rio de Janeiro e o empenho do Ministério Público desse Estado federado.
    Pelo que se percebe, a Fifa terceirizou, para o mundial no Brasil, a venda de ingressos e a distribuição de “pacotes de hospitalidade” (jogo com mordomias). O terceiro comprometeu-se a vender pelo preço de face, mas, sem honrar o compromisso e sem construir um mecanismo eficaz de controle, os bilhetes viraram uma espécie de título ao portador, negociáveis por tradição: de mão em mão.
    No caso de maior repercussão na mídia, a empresa terceirizada de razão Match Services, cujo sócio-proprietário afirmou prestar serviços à Fifa desde 1999, enviou ao Brasil seu CEO (Chief Executive Officer), Raymond Whelan. Por seu turno, Whelan teria revendido ingressos e pacotes de hospitalidade a um notório cambista internacional, o argelino Lamine Fofana. Segundo a polícia do Rio, Fofana, que ingressou no Brasil como turista e se apresenta como proprietário de uma empresa de nome Atlanta, ligou 900 vezes para um celular da Fifa e tentou subornar policiais que investigavam sua organização criminosa.
    Conforme as investigações - já existe uma ação judicial penal em curso promovida pelo Ministério Público -, Fofana operava uma rede abastecida de ingressos por Whelan. O tal Whelan e seu cunhado - também sócio-proprietário da terceirizada Match, sediada na Suíça - negam as increpações e alertam que as vendas a Fofana foram por uns trocados acima do preço de face. Nada falaram sobre a divisão de lucros ilícitos após a revenda por parte do argelino.
    A organização criminosa operada por Fofana restou desbaratada na operação policial Jules Rimet. A eventual coautoria Raymond-Fofana será objeto, no devido processo, de decisão judicial de mérito. Dados investigatórios recentes apontam para um esquema ilícito de revenda, no câmbio negro, de mais de mil ingressos por partida disputada na Copa. Pelos cálculos policiais, o ganho ilegal líquido teria, por baixo, alcançado R$ 200 milhões.
    Pano rápido. Não dá para engolir a “cara de paisagem” do presidente da Fifa, como se a entidade não tivesse nenhuma responsabilidade no caso, quer por negligência, quer por conivência. Terceirizar, muitas vezes, é uma forma mafiosa de colocação de laranjas e posterior recebimento por fora. E a terceirização da Fifa é feita, como admitiu o secretário-geral Jérôme Valcke, com a ciência de que seria impossível evitar a revenda criminosa no câmbio negro. No particular, o padrão Fifa copia objetivamente, no quesito terceirizações, o padrão Máfia.
    *
    Walter Fanganiello Maierovitch é desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e presidente do Instituto Brasileiro Giovanni Falcone de Ciências Criminais

    Novidade faisandée,no Aliás



    Renovação do carcomido une tanto a ‘nova’ candidatura oficial quanto os ‘novos’ oposicionistas

    Paulo Uchôa/Leia Já Imagens; Robson Fernajdes/Estadão; e Andre Dusek/Estadão
    Evasivas. Todo debate que exige firmeza e competência é afastado pelos candidatos
    Em sabatina realizada essa semana um candidato à Presidência da República, que se apresenta como arauto do novo na política, justificou suas alianças com políticos regionais retrógrados. Ele afirmou, sem titubear, ser preciso atingir o domínio do poder central que alimenta os mesmos coronéis para… acabar com os oligarcas! O enunciado doura a velha pílula distribuída a mancheias em eleições majoritárias do Brasil. Nada foi dito pelo candidato sobre o preço a ser pago aos velhos políticos pelo apoio recebido. A fuga, na campanha, de temas polêmicos em termos éticos, como no caso do aborto, é um verdadeiro lip service aos vetustos donos de votos. Modo geral, todos os itens dos debates que exigem firmeza e competência são afastados pelos candidatos, para não perder nas urnas. Temos aí o nó górdio do presidencialismo brasileiro. A vagueza dos programas de governo, requentados e postos ao dispor da Justiça Eleitoral, vem da ausência de ideologia, doutrina, política consistente, o que gera acertos esdrúxulos como os defendidos pelo candidato sob a capa do “realismo”. O exemplo torna evidente a crise de legitimidade que corrói o Estado brasileiro. A hipertrofia do Executivo federal é paga com trocas de cargos, atraso, controle dos eleitores, venalidade parlamentar, olhos cegos da Justiça. 
    Nossa desordem institucional segue a ampla crise do Estado no âmbito planetário. A máquina de governar, firmada nos séculos 16 e 17 na Europa, mostra claros sinais de exaustão. Tomemos os famosos monopólios do Estado expostos por Max Weber. Durante séculos os engenheiros do poder civil tentaram impor aqueles monopólios usando a mentira (a raison d’État), a dissimulação, o segredo, a força desabrida contra os direitos da cidadania. Hoje, mesmo para Estados poderosos, é difícil a imposição legítima da força física (na polícia e na guerra). Finanças predatórias impedem arrecadar o suficiente para manter políticas públicas (saúde, educação, lazer, ciência e tecnologia). Quadrilhas ligadas ao comércio de drogas, tráfico de escravos, prostituição lavam dinheiro e desafiam sistemas penais. Até o Vaticano precisou suspender a nada santa lavanderia nele instalada, como muitos governos laicos. Os monopólios da força física, da norma jurídica e da captação dos impostos são ineficientes para atender às necessidades de uma população planetária que migrou para as grandes cidades. 
    Políticas públicas exigem grandes recursos humanos e financeiros. Impossível garantir o controle urbano e dos elementos (solo, água, ar, por exemplo) sem gastos estratosféricos em formação de pessoas especializadas, laboratórios, máquinas. A ciência e a técnica precisam mover recursos em escala macrológica para atingir em parte os objetivos de fornecer água, energia elétrica, comunicação social, saúde pública, esgotos, vias públicas, empregos. A previdência social resume todos esses aspectos, pois deve garantir o futuro do idoso em ambiente urbano, inseguro, ameaçado por epidemias. 
    Apenas um exemplo: a Darpa (Defense Advanced Research Projects Agency) dos EUA recebia há tempos cerca de US$ 3 bilhões para aplicar em pesquisa universitária sobre pontos vitais, como serviços e investigações médicas. Hoje, seu orçamento cresceu. Mas o incentivo monetário, naquele país, é bem maior no campo da defesa: em 1990, apenas em fundos “secretos” (que garantem a espionagem e outros itens da segurança nacional), o estimado pelos especialistas era de US$ 30 bilhões. Para manter o caixa em situação precária, naquele país ocorre uma guerra perene entre Executivo e Legislativo, guerra que se amplia ao plano da saúde pública, educacional, etc. Mesmo com eficaz política de taxação, a crise de 2008 abalou a economia e a ordem nacional. Municípios antes prósperos, como Detroit, encontram-se à beira da falência. Algo similar ocorre na Europa: a França, a Inglaterra e a Alemanha enfrentam de maneiras diferentes os desafios de manter políticas públicas estáveis. Outras nações, como a Espanha, a Itália e a Grécia, sofrem uma tempestade no plano fiscal e cortam direitos sociais antes garantidos. 
    Se voltarmos os olhos ao Brasil, percebemos a fenda aberta diante da sociedade e dos poderes públicos. Quase atingindo a cifra de 200 milhões de habitantes, não possuímos meios para lhes garantir as condições básicas de existência moderna. O gasto nacional em ciência e tecnologia é de 1,74% do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto nos EUA, China e Japão é de 3% a 4%. O sr. Luiz Inácio da Silva afirmou que, ao final do seu primeiro mandato, a aplicação em ciência e tecnologia seria de 4% do PIB. A desmesura da promessa mostra que os problemas mais prementes são tratados com superficialidade pelos partidos e líderes políticos. 
    Sem ciência e técnica proporcionais ao tamanho de nossa população urbana, impossível propor ações que garantam direitos estáveis à cidadania. Num país em que cerca de 60% das coletividades não têm água e esgoto dignos do nome, é clara a camuflagem dos problemas operada pelos programas de governo, não só dos que habitam hoje os palácios como das oposições. 
    Daí a retórica oca que fala em “mais novidade” e do “novo na política” e silencia sobre os meios e recursos a serem movidos para se estabelecer ou ampliar a infraestrutura necessária à técnica, à mobilidade urbana, etc. O palavrório da propaganda, em todos os partidos de grande porte, cala os projetos sérios nas políticas públicas. 
    No que diz respeito à garrulice sobre o “novo”, Joe Klein, abalizado analista da propaganda e dos fatos eleitorais nos EUA, mostra que o truque de alardear a superioridade de uma candidatura surgiu com o gasto e conservador Richard Nixon em 1968. Como fazer votar numa pessoa que, diziam seus adversários democratas, não era fiável sequer para garantir a qualidade de um carro usado? Fácil: os marqueteiros idealizaram um “new Nixon” ao gosto do mercado. O truque deu certo, o que levou Daniel Boorstin a escrever (no livro The Image) que líderes inventados pelo marketing são “uma nova categoria do vazio”. A mágica de renovar o carcomido, no Brasil de hoje, é usada servilmente e causou a coincidência entre a “nova” candidatura oficial e as “novas” candidaturas oposicionistas, que se ocupam em preservar “o que está bom” sem ousar dizer o quê. Outros exemplos de cópia canhestra do marketing político norte-americano pela propaganda brasileira podem ser rastreados no livro de Joe Klein Politics Lost - From RFK to W: How Politicians Have Become Less Courageous and more Interested in Keeping Power than in Doing what’s Right for America. 
    Nossa história escancara o controle férreo das províncias, depois Estados, pelo poder central. É como se as regiões, sobretudo as que se levantaram em armas (Rio Grande do Sul, Pernambuco, Pará, Bahia, São Paulo, para recordar apenas algumas), fossem submetidas ao butim permanente dos que dirigem o todo nacional. Resulta que a nossa “federação” concede pouquíssima autonomia aos Estados e municípios, em todas as políticas públicas. A partir de Brasília, regras uniformes determinam até os detalhes da ordem nacional. Do Oiapoque ao Chuí há uma uniformização gigantesca que obriga os poderes regionais a se pautar pelo tempo longo da enorme burocracia federativa, perdendo tempo precioso para o experimento e modificações das políticas públicas em plano local. 
    Em outras federações, como a norte-americana, vigoram leis diversas nos setores penais, educacionais, tecnológicos. No Brasil, a mão de ferro da Presidência controla, dirige, pune e premia os Estados, segundo sustentem os interesses dos ocupantes temporários do Planalto. Nesse controle, os vetustos oligarcas regionais surgem como operadores de face dupla: servem para trazer os planos do poder central aos Estados e para levar ao mesmo poder as aspirações de Estados e municípios. O lugar onde ocorrem as negociações entre os dois níveis (central e estadual) normalmente é o Congresso. Ali, Presidência e ministérios buscam apoio a seus alvos, inclusive e sobretudo na proposição de leis. É impossível conseguir recursos orçamentários sem as “negociações”. Assim, os planos de inclusão social e democratização societária patinam na enorme lama do “grande Brasil”, enquanto as unidades federadas aguardam as “providências” de uma burocracia lenta, incapaz de entender os vários ritmos e formas de vida e pensamento regionais. 
    No âmbito fiscal, a concentração de poderes deixa Estados e municípios à míngua. Verbas provenientes de impostos ou a eles ligadas, como no caso das exportações, não são repassadas às unidades menores ou não são repassadas em tempo certo, permanecendo nos ministérios econômicos. Governadores e prefeitos são reduzidos à mendicância junto ao poder central. É praticamente impossível democratizar a sociedade sem a efetiva federalização do Brasil. Testemunhamos, todos os anos, a caminhada de prefeitos do país inteiro rumo ao Congresso para reclamar recursos, autonomia, modificações em leis eleitorais e de estruturas burocráticas. Enquanto tal situação permanecer, a fábrica de manobras corruptas (nas duas pontas, nos municípios e na capital da República) estará em pleno funcionamento. Uma Presidência limitada no tempo tenta pressionar o Legislativo para que ele emita leis favoráveis às pretensões do Executivo. De modo idêntico, vêm as pressões sobre o Judiciário para que reconheça a legitimidade das mesmas leis. 
    Os compromissos com a república dos coronéis diminuem o ímpeto do planejamento sóbrio, da chamada às competências técnicas, do diálogo efetivo com os eleitores. As linhas frouxas dos programas partidários tocam superficialmente nas reformas (outro mantra que se repete há pelo menos 50 anos) necessárias. Fala-se em reforma política sem tocar na atual estrutura dos partidos: oligarquizada, nada receptiva para com os eleitores da base, pois consultas aos votantes do partidos deixaram de existir e jamais tivemos eleições primárias entre nós. O caixa do fundo partidário e os programas televisivos são propriedade dos dirigentes, ninguém é candidato sem o baciamano e a bênção dos donos de partido, que permanecem nas direções ad eternum. Tais posseiros da política mandam nos partidos, mesmo quando presos por sentença do STF. Falar em reforma sem democratizar as agremiações é puro escárnio. Para atender os financiadores de campanha, nenhum problema grave da economia, do urbanismo, dos transportes é tratado nos programas com rigor e profundidade. Para agradar à massa, nenhum tema controverso é discutido. A ladainha entoada por todas as candidaturas importantes vem de Poliana: tudo será róseo, se formos eleitos. Lembram o Fura-Fila, que ajudou um prefeito complicado a vencer eleições para a Prefeitura de São Paulo? Agora, o canto das sereias é ainda mais onírico, mais mentiroso, mais lesivo aos interesses do País.
    É preciso apurar as noções de democracia, de união federal, sociedade livre, etc., se quisermos pensar o Brasil. Aqui, o modo de unir os Estados tem pouco de “federalismo”. Segundo a jurista Anna Gamper, “o federalismo combina o princípio da unidade e da diversidade. As partes constituintes devem ter poderes próprios e devem ser admitidas a participar do nível federal”. Mas Brasília controla os Estados, para que sustentem os interesses de quem ocupa a Presidência. As oligarquias regionais trazem os planos do Executivo nacional aos Estados e levam ao mesmo poder as pautas das regiões. 
    Voltemos às alianças defendidas pelo “novo”candidato à Presidência (ele não é único a advogar tais acertos com velhos oligarcas): é no mercado entre candidaturas e coronéis que se evidencia o atraso do Estado brasileiro. Defender estratégias fundamentadas em acordos com políticos ultrapassados é propor ao eleitor um oxímoro conhecido, o de uma “novidade faisandée”, que cheira mal. Assim, os “programas de governo” exalam populismo sem descer aos problemas concretos do mundo e da nossa terra. Os candidatos e partidos sabem que a urna, por enquanto, é apenas a licença concedida para o arbítrio. Os príncipes absolutistas não precisam prestar contas a ninguém. Pior para a saúde, a educação, a segurança, os bolsos da cidadania. 
    *
    Roberto Romando é filósofo e professor de Ética na Unicamp