quarta-feira, 31 de maio de 2023

Muitos progressistas de hoje apenas copiam os espíritos totalitários de ontem, João Pereira Coutinho FSP

 Amsterdam, três da tarde. Entro no American Book Center, deambulo pelas estantes e lá encontro um livro de ensaios de Milan Kundera, velho companheiro de leituras mil, em tradução inglesa recente.

O título é "A Kidnapped West" e é uma descoberta luminosa: são dois textos curtos, de 1967 e 1983, que nos interpelam diretamente em 2023.

O primeiro texto, sobre a literatura das pequenas nações, é um discurso de Kundera ao Congresso dos Escritores Tchecos. Mas é, sobretudo, um ataque direto ao regime comunista que censurava, ou cancelava, certas obras de arte que não se ajustavam ao código soviético.

Estamos na presença de "vândalos", escreve Kundera, embora o termo se preste a confusões. Um vândalo não é apenas um ignorante simplório que resolve destruir o patrimônio de terceiros.

Os vândalos de que fala Kundera são pessoas educadas (no sentido acadêmico do termo), muito contentes com elas próprias, socialmente integradas, com capacidade de decisão política ou econômica —e que têm por hábito demolir o que não entendem ou aquilo de que não gostam.

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O vândalo, ao contrário de uma pessoa civilizada, não aceita que o mundo possa ser diferente da sua própria cabeça. O mundo deve ser idêntico à sua cabeça, o que muitas vezes implica a destruição do que é dissonante.

Cena de 'Fahrenheit 451', filme de 1966 de François Truffaut baseado em livro de Ray Bradbury - Reprodução

E acrescenta Milan Kundera:

"Quando um comitê de cidadãos ou burocratas que gerencia um projeto decreta que alguma estátua (ou castelo, igreja ou uma tília milenar) é inútil e deve ser eliminada, isso é apenas outra forma de vandalismo."

Sorri. Em 1967, os vândalos estavam no poder em Praga, respaldados pelo Kremlin do camarada Brejnev. Hoje, mil kremlins se multiplicaram nas academias e nas bolhas culturais, sem precisarem de um farol em Moscou.

Mas a atitude é a mesma: produzir um mundo "sem história nem memória" –e, por irônico que pareça, sem possibilidade de progresso moral.

Milan Kundera, que sempre se apresentou como um homem de esquerda, tem inteira razão ao lembrar que "nenhuma era progressista foi alguma vez definida pelos seus limites".

Pelo contrário: os avanços históricos e morais só foram possíveis pelo desafio a esses limites, pelo cruzamento dessas fronteiras artificialmente impostas pelos poderes instituídos.

Muitos progressistas de hoje apenas copiam os espíritos totalitários de ontem.

Se esse primeiro texto arrepia pela sua atualidade, que dizer do segundo, que dá título à coletânea?

Foi publicado em 1983, na revista "Le Débat", e começa com uma história notável: em 1956, quando os russos invadem Budapeste para reprimir a revolta popular contra a ditadura comunista no país, o então diretor da Agência de Notícias da Hungria envia um derradeiro telex com as seguintes palavras: "Vamos morrer pela Hungria e pela Europa".

Morrer pela Hungria, pela sua liberdade, pela sua autodeterminação, seria compreensível. Mas pela Europa?

Em Budapeste (Hungria), em 2006, polícia reprime manifestantes que tomaram um tanque T34 da Segunda Guerra que estava sendo usado na comemoração de 50 anos do levante de 1956 contra o domínio soviético no país - Zoltan Kovacs - 23.out.06/AFP

Como observa Kundera, seria impensável que Alexander Soljenítsin, o escritor russo ferozmente anticomunista, escrevesse o mesmo. Os valores que o conservador Soljenítsin defendia não eram propriamente os "valores europeus" que vigoravam em Londres, Paris ou Berlim (Ocidental).

Mas eram esses os valores dos húngaros, e dos tchecos, e dos romenos, e de todos os países do centro da Europa que, temporariamente libertados em 1945 dos nazistas, foram novamente escravizados por Stálin depois de 1945.

Eis a catástrofe: apesar de, culturalmente, serem ocidentais, os povos da Europa Central foram remetidos, politicamente, para a Europa de Leste. Não apenas pelos novos colonizadores, mas pela própria Europa Ocidental, que se esqueceu desse membro da família "sequestrado".

E esqueceu-se por um motivo: durante séculos, a Europa foi partilhando certos valores que lhe conferiam uma unidade. Durante a Idade Média, o cristianismo. Na Idade Moderna, a aspiração do Iluminismo. Havia, digamos assim, uma linguagem comum.

Essa linguagem foi estilhaçada no século 20, e a cultura, entendida aqui em sentido amplo e espiritualmente elevado, foi substituída pelo materialismo, pela banalidade e pelo ruído da cultura de massas.

Concordo com Kundera –até certo ponto. Não sou um nostálgico das unidades perdidas, que podem ser tão perversas (e foram-no) quanto a dispersão moral e epistemológica da pós-modernidade. A Inquisição, o Terror de Robespierre, Auschwitz e o Gulag também são produtos dessa unidade levada até suas últimas consequências.

Mas não nego a importância de um chão comum de decência humana que escapa aos utilitarismos fétidos do presente. Nesse sentido, o ensaio de Kundera evoca, quase de imediato, o destino da Ucrânia diante da invasão brutal de Vladimir Putin.

Os ucranianos, como eles próprios afirmam vezes sem conta, não estão apenas a lutar pela Ucrânia. Também lutam pela Europa, ou seja, pela possibilidade de serem um dia parte de uma comunidade de nações onde a lei, a liberdade e o respeito pelos direitos dos indivíduos não sejam uma quimera.

Nem todos os europeus os escutam. Ou os compreendem. Como se dizia durante a Guerra Fria sobre a Europa Central, a Ucrânia fica longe e sempre fez parte da órbita imperial da Rússia. São outra gente. Não são como a gente.

Quem fala assim já se esqueceu do privilégio em que vive, optando por cálculos mais imediatos sobre o conforto econômico ameaçado. A guerra é um "incômodo", um "despropósito", um "aborrecimento".

Pobrezinhos. Não saberão eles que o privilégio e o conforto só são possíveis porque há valores de liberdade e humanidade que os sustentam?

Os ucranianos, tal como o pobre jornalista húngaro em 1956, sabem disso. Só espero que os primeiros não tenham o mesmo destino do segundo.


Vladimir Putin é o idiota mais perigoso do mundo, Thomas L. Friedman, FSP

 Não tenho escrito muito sobre a Guerra da Ucrânia recentemente porque muito pouco mudou em termos de estratégia desde os meses iniciais deste conflito, quando três fatos abrangentes foram responsáveis por praticamente tudo. E ainda são.

Fato número 1: Quando uma guerra desta magnitude começa, a pergunta crucial que um colunista de assuntos internacionais se coloca é simples: onde preciso estar? Preciso estar em Kiev, no Donbass, na Crimeia, em Moscou, em Varsóvia, em Berlim, em Bruxelas ou em Washington?

Em Kiev, homem tira selfie em frente a painel com ilustração de Vladimir Putin sendo preso após condenação no Tribunal de Haia, com Valerii Zaluzhnii, chefe das Forças Armadas da Ucrânia, comemorando
Em Kiev, homem tira selfie em frente a painel com ilustração de Vladimir Putin sendo preso após condenação no Tribunal de Haia, com Valerii Zaluzhnii, chefe das Forças Armadas da Ucrânia, comemorando - Serguei Supinski - 11.mar.23/AFP

Desde o início desta guerra, só há um lugar onde estar para entender o timing e o rumo dela: dentro da cabeça de Vladimir Putin. Infelizmente, Putin não concede visto para seu cérebro.

Esse é um problema real, porque a guerra nasceu inteiramente de sua cabeça –praticamente sem qualquer contribuição de seu gabinete ou de seus comandantes militares, como sabemos agora— e certamente sem qualquer desejo expresso pela maioria do povo russo. Por isso mesmo, a Rússia será freada na Ucrânia, quer esteja ganhando ou perdendo, apenas quando Putin decidir parar.

Isso nos conduz ao fato número 2: Putin nunca teve um plano B. Está claro que ele achou que entraria em Kiev sem dificuldade, tomaria a cidade em uma semana, instalaria um lacaio como presidente, enfiaria a Ucrânia em seu bolso e acabaria com qualquer expansão adicional da União Europeia, Otan ou da cultura ocidental em direção à Rússia. Em seguida ele lançaria sua sombra sobre toda a Europa.

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E isso nos leva ao fato número 3: Putin se colocou numa situação em que não tem como ganhar, não tem como perder e não tem como parar. Não há mais como dominar a Ucrânia inteira. Mas ele não pode se dar ao luxo de ser derrotado após todas as vidas e os recursos russos que consumiu. Por isso, não pode parar.

Para explicar em outras palavras, pelo fato de nunca ter tido um plano B, Putin adotou como padrão o bombardeio punitivo e muitas vezes indiscriminado de cidades e infraestrutura civil ucranianas, na esperança de que ele vá de alguma maneira conseguir drenar sangue suficiente dos ucranianos e deixar os aliados ocidentais de Kiev exaustos para que lhe entreguem uma fatia suficientemente grande da Ucrânia oriental, onde se fala russo, para que ele possa apresentar isso como uma grande vitória.

O plano B de Putin consiste em disfarçar que seu plano A fracassou. Se esta operação militar tivesse um nome honesto, seria chamada Operação Evitar Minha Humilhação. Por isso mesmo ela é uma das guerras mais doentias, mais sem sentido dos tempos modernos: um líder destruindo a infraestrutura civil de outro país até que consiga ocultar o fato de que tem sido um imbecil absoluto.

Dá para ver pelo discurso de Putin no Dia da Vitória, em Moscou, na terça-feira (9), que ele está buscando qualquer fiapo de explicação para justificar uma guerra que deslanchou de sua fantasia pessoal de que a Ucrânia não é um país de verdade, mas parte da Rússia. Putin disse que sua invasão foi provocada por "globalistas e elites" ocidentais que "falam de sua exclusividade, colocam pessoas umas contra as outras, dividem a sociedade, provocam turbulência e conflitos sangrentos, semeiam o ódio, a russofobia, o nacionalismo agressivo e destroem os valores familiares tradicionais".

Uau. Putin invadiu a Ucrânia para preservar os valores familiares russos. Quem diria? Esse é um líder buscando um jeito de explicar a seu povo por que lançou uma guerra contra um vizinho insignificante que segundo ele não é um país de verdade.

Seria o caso de perguntar: por que um ditador como Putin acha que precisa de um disfarce? Ele não consegue fazer seu povo acreditar no que ele quer? Creio que não. Se você olhar o comportamento dele, parece que Putin hoje está assustado com duas disciplinas: a aritmética e a história russa.

Uma das maiores lições que aprendi escrevendo sobre países autocráticos é que, por mais rigidamente controlado seja um lugar, por mais brutal e férreo que seja seu ditador, todo mundo fala.

As pessoas sabem quem está roubando, quem está enganando, quem está mentindo, quem está tendo um caso com quem. Começa com um cochicho e muitas vezes não passa disso, mas todo o mundo fala. Está claro que também Putin tem consciência disso. Ele sabe que, mesmo que consiga dominar mais alguns quilômetros da Ucrânia oriental e conservar a Crimeia, no instante que ele suspender esta guerra seu povo vai fazer todos os cálculos aritméticos cruéis de seu plano B, a começar pela subtração.

A Casa Branca informou na semana passada que estimados 100 mil combatentes russos foram mortos ou feridos na Ucrânia apenas nos últimos cinco meses e aproximadamente 200 mil morreram ou ficaram feridos desde que Putin lançou esta guerra, em fevereiro de 2022.

É um número grande de baixas, mesmo para um país grande, e Putin está preocupado com o fato de seu povo falar disso, porque, além de criminalizar qualquer forma de dissensão, em abril ele aprovou às pressas uma nova lei que pune a evasão do alistamento militar obrigatório. Agora, qualquer pessoa convocada que não comparecer terá dificuldades para realizar operações bancárias, vender bens ou mesmo conseguir uma carteira de motorista.

Putin não estaria fazendo tudo isso se não temesse que todo o mundo está cochichando sobre como a guerra está indo mal e como evitar participar dela. Leia o artigo recente de Leon Aron, historiador da Rússia de Putin e estudioso do American Enterprise Institute, publicado pelo Washington Post sobre a visita de Putin em março à cidade ucraniana de Mariupol, ocupada pelos russos.

"Dois dias após o Tribunal Penal Internacional ter acusado Putin de crimes de guerra e emitido um mandado de prisão", escreveu, "o presidente russo foi a Mariupol por algumas horas". "Foi filmado visitando o ‘microdistrito de Nevski’, inspecionando um apartamento e ouvindo os ocupantes gratos por alguns minutos. Quando deixava o local, uma voz é ouvida com dificuldade no vídeo: ‘É tudo mentira!"

Aron me disse que a mídia russa mais tarde deletou o "é tudo mentira" do áudio, mas o fato de isso ter sido deixado inicialmente pode ter sido um ato de subversão de alguém na hierarquia da mídia oficial russa. Todo o mundo fala. E isso me conduz à outra coisa da qual Putin tem consciência: "Os deuses da história russa não perdoam a derrota militar", disse o historiador.

Na era moderna, "quando um líder russo encerra uma guerra claramente derrotado, geralmente há uma troca de regime". "Vimos isso após a primeira Guerra da Crimeia, após a Guerra Russo-Japonesa, após os reveses da Rússia na Primeira Guerra Mundial, após a retirada de Kruschev de Cuba em 1962 e após o atoleiro em que Brezhnev e companhia se meteram no Afeganistão, que acelerou a chegada da revolução da perestroika e da glasnost de Gorbachov. O povo russo tolera muita coisa, mas, apesar de sua paciência renomada, ele não perdoa uma derrota militar".

É por essas razões que Aron, que acaba de escrever um livro sobre a Rússia de Putin, argumenta que este conflito está longe de acabar e que ainda pode se agravar muito antes de terminar. "Neste momento há duas maneiras de Putin encerrar esta guerra que ele não tem como vencer nem pode abandonar. Uma delas é continuar até a exsanguinação da Ucrânia e/ou até o Ocidente se cansar de apoiar a Ucrânia."

E a outra, argumentou, "é forçar um confronto direto com os EUA –nos trazer até a beira do precipício de um duelo nuclear— e então recuar um passo e propor a um Ocidente assustado um acordo abrangente que incluiria uma Ucrânia neutra e desarmada e o controle russo contínuo da Crimeia e do Donbass".

É impossível entrar na cabeça de Putin e prever qual será seu próximo passo, mas estou preocupado. Sabemos que ele sabe que seu plano A fracassou. Agora ele fará qualquer coisa para produzir um plano B para justificar as perdas que acumulou em nome de um país onde todos falam e onde líderes derrotados não se aposentam pacificamente.

Tradução de Clara Allain