quarta-feira, 31 de março de 2021

Antonio Delfim Netto - A história precisa de documentos, FSP

 Para a tristeza de alguns cérebros peregrinos que continuam a tentar "organizá-la", a história não obedece a relações de causalidade. Empiricamente, ela conforma-se mais com uma sucessão de acidentes aleatórios para os quais, posteriormente, nosso cérebro, treinado para nos enganar, arquiteta causalidades para que a narrativa proporcione algum conforto.

Nos idos dos anos 40 do século passado, um pequeno acidente (um preconceito de gênero) presenteou a recém-criada FEA-USP com a professora de história econômica Alice Piffer Canabrava. Sua honestidade profissional, seu comportamento espartano, sua enorme capacidade de trabalho e sua dedicação a quem mostrava interesse estimularam o crescimento de toda uma "escola" que rejeita o "achismo" e vai buscar os fatos nos documentos. Um dia (creio que em 1955), Alice me confidenciou que "até aqui, tudo o que sabemos sobre a história da Colônia é obra de imaginosos romancistas".

Por isso iniciara uma pesquisa que pretendia revelar o que, empiricamente, se poderia dizer sobre a Colônia. Exigente consigo mesma, não chegou a pôr ordem no imenso material que colheu ao longo de décadas. Ele se encontra sob a guarda do Instituto FHC: um tesouro à espera de um investigador inteligente e ambicioso que fará com ele o seu nome.

A história recente carece, também, de mais cuidado do que os "clichês" que supõem que a política de substituição de importações vigorou no Brasil de 1950 até a "abertura" de Collor. Toma o período 1950-1984 como único, quando teve pelo menos três políticas distintas. Ignora a grande mudança da política de exportação enfatizada a partir de 1967 com: 1. reforma das tarifas efetivas; 2. a nova política cambial; 3. a completa desoneração das importações dos insumos das exportações; 4. a devolução total dos impostos internos nas exportações; 5. a agilização do crédito às exportações.

Os resultados foram muito bons. As exportações cresceram à taxa de 25% ao ano, a de produtos industriais brasileiros/exportações industriais do mundo, à taxa de 15% ao ano, e o Brasil, a 7% ao ano.

Os fatos podem ser encontrados num velho livro da insuspeitíssima Anne O. Krueger, "Liberalization Attempts and its Consequences", de 1978 (págs. 277-296). Isso reduzirá o nível de fantasia que envolvem as comparações ligeiras entre Brasil e Coreia do Sul, que ignoram o papel da abertura comercial americana a ela para conter o avanço da URSS. No nosso caso, por exemplo, os EUA nunca se conformaram nem aceitaram a indústria de café solúvel brasileira, "porque ela faria concorrência desleal à americana". Ah, essa história sem documentos!


Ruy Castro 'O meu Exército', cuspiu Bolsonaro, FSP

 Em outubro último, o Brasil assistiu ao então general da Saúde, Eduardo Pazuello, dizer a frase "É simples assim. Um manda e o outro obedece". A seu lado, um salivante Jair Bolsonaro. Dias antes, Pazuello autorizara a compra de 46 milhões de doses da vacina chinesa Coronavac pelo Butantan. Mas Bolsonaro, por razões eleitorais, não queria saber da China nem do Butantan. "Já mandei cancelar", invectivou. "O presidente sou eu e não abro mão da minha autoridade". Se quisesse honrar as cuecas que vestia —estava internado com a Covid num hospital—, Pazuello teria se demitido assim que foi desautorizado. Mas preferiu abaixá-las para Bolsonaro.

Ali se transpôs uma linha na hierarquia militar. Ao contrário dos quartéis, onde a obediência é essencial, a razão deve primar no mundo civil —principalmente quando há vidas em jogo. Naquele dia, 155 mil brasileiros já tinham morrido do vírus. Desde então, contando os que morreram por Bolsonaro ter cancelado aquelas vacinas, perdemos outros . Sendo Pazuello, co-autor dessa chacina, um general da ativa, deveria juntar uma medalha às tampinhas de Coca-Cola em sua farda.

Bolsonaro quer pazuellar as Forças Armadas. Sua estratégia de afrontar, submeter, desacatar, subjugar, jungir, domar, humilhar, acoelhar e, em última análise, pôr na linha —na sua linha— o comando da Defesa e das três Armas é uma continuação de outras duas políticas que vem se empenhando em implantar: sublevar as polícias militares, como no gravíssimo episódio em curso na Bahia, e armar a população. Em 31 de março de 1964, o nome disso era subversão.

Nada mal para quem começou condecorando matadores de aluguel. Hoje Bolsonaro tem procuradores e juízes infiltrados nas instituições para lhe dar apoio legal. Já é muita bala a seu favor. Mas ele sabe que precisa controlar a instituição maior.

"O meu Exército", como vive cuspindo. É dele e ninguém tasca.

Bob Odenkirk diz que usou raiva pessoal em 'Anônimo' após ter casa invadida, F5 FSP

 Na série “Better Call Saul” (Netflix), Bob Odenkirk, 58, caminha cuidadosamente entre a comédia irônica e o drama dilacerante. Ao longo das cinco temporadas, ele interpretou o inescrupuloso advogado Jimmy McGill em sua trajetória descendente de transformação no venal Saul Goodman, o personagem que ele apresentou aos espectadores em “Breaking Bad”.

O papel é uma virada de trajeto profissional que continua a deliciar Odenkirk e as pessoas que o acompanham há muito tempo, desde seus tempos como roteirista e intérprete de quadros cômicos absurdos em Saturday Night LiveThe Ben Stiller Show e Mr. Show With Bob and David.

Agora, o ator busca uma nova mudança de trajetória, igualmente ou até mais surpreendente, ao estrelar o filme de ação “Anônimo”.

O filme, que o estúdio Universal lançou sexta-feira (26) nos cinemas e que estreia dia 16 de abril nos serviços de vídeo on demand, escala Odenkirk como Hutch Mansell, um pai suburbano aparentemente anódino que vê sua vida abalada por uma invasão à sua casa, incidente que o leva a uma vingança violenta e a um acerto de contas com seu próprio passado.

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Em meio a trocas de socos, ossos quebrados, perseguições motorizadas e explosões, “Anônimo” tem o nível de humor que veio a ser esperado dos filmes de ação. Mas o filme, dirigido por Ilya Naishuller (de “Hardcore: Missão Extrema”) e roteirizado por Derek Kolstad (dos filmes “John Wick”), não é uma comédia ou paródia.

Como Odenkirk me explicou em uma entrevista por vídeo em fevereiro, “a intenção era fazer um filme de gênero –puro, escancarado, sem ironia. A esperança é que tenhamos levado a coisa a tal extremo que ele se torne uma explosão cinematográfica de fúria e raiva elementar”.

Além de seus esforços sinceros para determinar se as audiências vão aceita-lo nesse papel –que exigiu meses de condicionamento físico e de coreografia de combate– Odenkirk também está usando “Anônimo” como uma forma de extravasar construtivamente sua experiência pessoal como vítima de invasões de domicílio.

Falando de sua casa em Los Angeles, Odenkirk discorreu sobre a produção de “Anônimo” e sobre como sua experiência humorística veio a calhar para planejar cenas de ação. Confira trechos editados dessa conversa.

Interpretar um herói de ação foi tão divertido quanto todos nós imaginamos que deve ser?
Eu não tinha certeza de que seria satisfatório ou se seria só um desafio bizarro que não fazia sentido para mim quando enfim me decidi a aceitá-lo. Eu não sabia se, no set, não me apanharia pensando que aquilo era completamente absurdo e não era satisfatório de maneira alguma. Mas foi satisfatório e muito divertido.

Qual é o próximo passo lógico para você depois de “Breaking Bad” e “Better Call Saul”?
Não é fácil compreender o que conecta esse projeto a tudo mais que fiz em minha carreira, e não sei se consigo encontrar uma explicação fácil para você. Quando comecei a pensar na ideia, minha mente me dizia que eu talvez pudesse fazer um filme de ação. Estou em boa forma; e talvez eu conseguisse aprender, se tivesse tempo. E acho que tenho os componentes que caracterizam um papel central de ação em “Better Call Saul”. Ele tem foco. Ele é infatigável. Encontra uma maneira de superar tudo. Muda sua abordagem constantemente a fim de tentar resolver até o último enrosco as complicações que existem diante dele. A única coisa que ele não faz é lutar.

Você se inspirou a fazer o filme, em parte, por algumas experiências pessoais assustadoras. Isso é algo que você se sinta confortável em contar?
[A voz de Odenkirk se abranda.] Consigo falar um pouco sobre o assunto. Minha família teve nossa casa invadida duas vezes, aqui em Los Angeles, e a primeira das invasões foi especialmente traumática. Foram coisas que imaginei que poderia usar a fim de construir esse personagem. Os sentimentos residuais de frustração e de raiva são reais e continuam a existir. Sei que a violência não resolve coisa alguma. Mas pode acreditar que você sente vontade de ferir a pessoa que fere sua família.

No filme, o personagem sente vergonha por não ter tentado subjugar as pessoas que invadiram sua casa. Um policial disse alguma coisa a você parecida com o que o policial do filme diz ao personagem?
“Não é o que eu teria feito”. Sim –dando a entender que teria feito algo violento ou combativo. Meu pensamento imediato foi o de que “todo mundo precisa manter a calma para tirar essa pessoa da casa o mais rápido possível, e todos vamos ficar bem”. Mas não ficamos todos bem. E a violação acontecida, o dano causado por aquilo –honestamente, há partes da experiência sobre as quais não consigo falar. Eu diria que é algo que ecoa em nossas vidas. A sensação de ser vítima de alguma coisa sobre a qual não há o que você possa fazer não há como reagir. Isso ficou comigo, de verdade, e ainda sinto a mesma coisa. Mas gostei de poder colocar minha raiva em prática no filme. É tudo falso e exagerado, mas muito divertido.

Quando você começou a tomar providências concretas para transformar isso em filme?
Foi depois da segunda temporada de “Better Call Saul” [que foi ao ar em 2016]. Meu cunhado me enviou uma imagem de tela de “Better Call Saul” usada em um comercial da série na China. Eu já tinha ido à Europa duas vezes e conversado com fãs da série lá. Fiquei imaginando se existia a possibilidade de eu fazer um filme para ser visto no mundo inteiro.

Você antecipava que encontraria resistência à ideia?
Oh, eu imaginava que as pessoas diriam não, e logo de primeira. Conversei com um dos meus empresários e lhe falei sobre minha lógica. Ele respondeu que “acho que você talvez tenha razão”. Ele fez a mesma pergunta a diversas pessoas e a resposta que obteve foi a mesma. As pessoas diziam que sim, a ideia fazia sentido.

Sua carreira como humorista foi de alguma maneira um obstáculo para esse objetivo?
Se você assistia Mr. Show fica realmente difícil dar o salto para o novo filme. Mas a maioria das pessoas nunca ouviu falar daquela série. Só conhecem Saul Goodman e Jimmy McGill.

Você interpretou alguns personagens memoravelmente explosivos em sua passagem por Mr. Show, se bem me lembro.
Eu consigo ir de 0 a 80 na escala da raiva, e isso é algo que fiz muitas vezes com intenções cômicas. E era algo que meu pai também fazia, mas não era engraçado no caso dele. Mas é algo com que você precisa tomar cuidado, o talento de fazer essa transição. Porque muitas vezes ela é interpretada do jeito errado.

Antes desse papel você era fã dos filmes de ação...
Eu sempre gostei dos filmes de Charles Bronson e de todos os filmes da série “Dirty Harry”. Meu favorito é “Police Story”, com Jackie Chan. Se meu filme funcionar, ou seja, se as pessoas gostarem dele e ele criar boa vontade, eu adoraria fazer um filme que tivesse um tom de comédia de ação. Ainda que eu espere que meus amigos do mundo da comédia curtam o que fiz aqui, se eu não conquistar os fãs dos filmes de ação não terei realizado o que me propus a realizar. Sinto que preciso avançar nessa direção até o fim do caminho.

Quando você começou seu treinamento físico para o papel?
Fevereiro de 2017. Eu faço cardio. Era meu único exercício antes disso. E eu nunca tinha sofrido lesões nas costas, nos joelhos. Meu físico estava mais ou menos em ordem, tudo funcionava. Ir de carro para o local de treino era um estresse –70 minutos, às vezes mais, no meio do trânsito de Los Angeles--, e eu pensando que “você está perdendo tempo treinando para um filme que nunca vai acontecer. O que há de errado com você? Você está passando por uma crise de meia-idade?” Mas eu também pensava que, bem, se o filme não acontecer, pelo menos eu estaria em boa forma. E terei aprendido alguma coisa sobre o meu corpo.

Sua capacidade como comediante ajudou quando você e seus companheiros do filme planejaram as cenas de ação?
Vou contar minha contribuição para a cena da briga no ônibus [na qual o personagem de Odenkirk encara um bando de arruaceiros em um coletivo]. Sempre quisemos que fosse uma cena grande e brutal –para chacoalhar a audiência e fazer com que as pessoas percebam que é um filme de ação mesmo. Eu disse que “o personagem precisa se machucar”. A primeira coisa que ele faz é errar um golpe e bater a cabeça. Eu disse que queria ser jogado para fora do ônibus e voltar a entrar para continuar a briga. Aliás, muitos dos momentos da cena poderiam ser transpostos para a vida normal de um pai se a intensidade fosse reduzida um pouco.

O que acontece se “Anônimo” fizer sucesso suficiente para que esse tipo de filme de ação se torne o próximo capítulo de sua história?
Não é algo que me preocupe. Porque estou no show business. Se me procurarem com mais dez propostas de filmes de ação, eu posso responder “não, obrigado”, a todas elas. A decisão é minha. Amanhã vamos propor uma série de animação cômica com meu amigo [e colaborador em Mr. Show] Dino Stamatopoulos. É um trabalho no qual tenho muita presença. Estou mais velho agora e fiz muita coisa. Sei que, de qualquer jeito, nunca fico feliz em fazer sempre o mesmo trabalho. Não fico preocupado com me ver encurralado.

É justo dizer que você está se divertindo com o inesperado dessa situação?
Parte de mim quer que existam dois Bob Odenkirk. Para eu ter uma lápide reversível. De um lado, “ele triturava”; do outro, “meu Deus, que cara engraçado”. Será que alguém já fez isso? Uma lápide com duas inscrições? De um lado, “marido querido, pai devotado”, e do outro “ex-marido desprezado, pai omisso”?

Você está começando a trabalhar na temporada final de “Better Call Saul”. O fato de que o fim está próximo já começou a pesar para você?
Ainda não. Tenho coisas demais para fazer e não há tempo para pensar nisso. Vou me preocupar com esse assunto mais adiante. Por enquanto, tenho trabalho demais a fazer.

Não sabemos como as coisas acabam para Saul Goodman, mas sabemos que seu caminho, até agora, o levou a um emprego mixo na [cadeia de padarias] Cinnabon. Você visitou alguma loja da Cinnabon recentemente para ver o que acontece?
Não, mas sei o que acontece em uma Cinnabon. E o cara que cuida do meu treinamento para os filmes de ação não gostaria de me ver curtindo uma Cinnabon. Mas há muita coisa boa lá. Curtam a Cinnabon, pessoal, enquanto podem. Um dia alguém vai querer que vocês façam um filme de ação e vocês vão passar o resto da vida comendo abacate e ovo.

Tradução de Paulo Migliacci