Cresci morando no centro de São Paulo. Meu quintal eram as ruas do entorno da praça da República, do largo do Arouche, do então jardim e hoje Parque da Luz. A vida me levou por outras latitudes, longitudes e destinos, até que, há seis anos, reneguei as ruas chiques dos Jardins e mudei de mala, cuia e marido, para a efervescente Praça Roosevelt. A lógica era simples: além do custo de vida ser bem menor, havia o diferencial de a praça estar sempre cheia de gente atraída pelos teatros, bares, e pelo clima descolado do pedaço, passar uma sensação de maior segurança que a escuridão das alamedas elegantes do lado de lá da avenida Paulista.
Aí veio a pandemia de Covid-19.
Espiar pela janela a praça deserta era uma tristeza, mas pior era ter que sair para alguma compra básica e perceber que aumentava exponencialmente, a cada excursão mascarada, o número de moradores em situação de rua para os quais o isolamento social tinha um significado bem diferente do que pregavam as autoridades. Eles eram (e são) os grandes isolados, isolamento raiz, mesmo: os excluídos.
Findas as restrições, voltamos às ruas e, de alguma forma, nada mais foi o mesmo. Ainda não é. Provavelmente não será. Porque, aproveitando que estávamos todos ainda desnorteados, tendo que reaprender tateando os caminhos de nossas roças antes tão familiares, as gestões municipais aproveitaram para ampliar o apartheid urbano, um tipo de passa-boiada citadino, lembrando aquele um que um dia foi ministro.
O primeiro front, em nome da sempre invocada e nunca implementada revitalização do centro, botou para correr, do único modo que as autoridades conhecem, ou seja, na porrada, as tristes almas penadas que se aglomeravam na cracolândia, nas imediações da praça Princesa Isabel. O pretexto era pegar uns traficantes e, de passagem, meter grades no que passou a se chamar parque Princesa Isabel —a diferença, para a administração, entre praça e parque é, principalmente, o gradeamento que fecha o acesso aos espaços depois de determinado horário.
Desde que promoveram o barata-voa da cracô, o fluxo de dependentes químicos tem se mudado periodicamente pelas ruas da vizinhança, tocando terror entre moradores, comerciantes e transeuntes, sem que alguém pare para pensar que a política de enxugar gelo não funcionou até agora e não vai funcionar nunca como medida social. Resultado: como a grande população que ali se reunia não consegue se fixar em um único local mais, por causa dos também compreensíveis protestos dos quarteirões afetados da vez, acabaram surgindo várias mini-cracolândias. Contra elas, vêm na calada da noite as grades da municipalidade.
Na semana passada, foi a vez da praça Marechal Deodoro, em Santa Cecília, que segue o caminho já percorrido pela praça (será que já chama parque?) Princesa Isabel há dois meses e a 1,5 quilômetro de distância dali. E já começou também na quinta-feira (1), a reforma da praça do Patriarca, em frente à Prefeitura, que a gestão Ricardo Nunes (MDB) diz que vai incluir a sinalização turística do triângulo histórico, entre a praça da Sé, o largo São Bento e o largo São Francisco. Por enquanto, só estão lá tapumes tirando os sem-teto de sob a cobertura (de resto bem esquisita, totalmente dissonante do entorno) que protege as escadas rolantes da galeria Prestes Maia.
A teoria, nos projetos da burocracia urbanista, sempre vem acompanhada de belos discursos das melhores intenções, daquelas de que o inferno anda abarrotado. Mas o verniz de melhorias não sobrevive à realidade representada pelos números de pessoas sem-teto, que, pelas últimas contas da própria Prefeitura, passou de 24.344 para 31.884 nos últimos dois anos. Que se saiba, não houve um programa eficaz de realocação desse contingente brutal de desvalidos. A informação formal da administração passada à Folha divulga que "somente no mês de novembro, as equipes de Seas que atuam na região realizaram 1.687 abordagens, que resultaram em 955 encaminhamentos para serviços de acolhimento, 87 encaminhamentos para serviços da rede socio-assistencial e 645 orientações". Tá, e os outros 30 mil, onde ficam? Se não ficam, para onde vão?
Enxotados de praça em praça, banidos para debaixo dos viadutos (um deles, o Minhocão, outro espaço que finge ser um parque e sonha com a High Line novaiorquina), eles esfregam na cara de cada cidadão, cotidianamente, que esse planejamento não funciona. De quebra, bane também quem tem saudades das praças do centro, do luxo de ir, vir e caminhar tranquilamente pelas ruas de nossa cidade. Saudades que só serão sanadas no dia em que a municipalidade olhar para todos e buscar, efetivamente, uma solução não cosmética nem higienista, sem tiro, porrada ou bomba, mas cidadã.
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