sexta-feira, 31 de julho de 2020

O MAL QUE NOS COLONIZA Leandro Sarmatz, Gama

A forma como o meio ambiente, as populações indígenas, as minorias e os menos favorecidos são atualmente tratados só pode ser compreendida como uma estratégia colonial

27 de Julho de 2020

“Não me ocorre nada sobre Hitler”, escreveu Karl Kraus em 1933. Isso era bastante incomum. Kraus, um jornalista e satirista austríaco de origem judaica, passara as primeiras décadas do século 20 fustigando toda e qualquer autoridade em sua revista Die Fackel (que editava sozinho e escrevia a maior parte dos artigos). Não sobrava para ninguém: políticos, celebridades, autores cheios de pose, estrelas do teatro. Enfim, qualquer um que andasse se pavoneando pelas calçadas da cultura germânica corria o risco de escorregar na casca de banana do autor. Mas em 33 ele ficou mudo. A aparição de Adolf Hitler no cenário político ia além de qualquer chiste. Era o indizível, o terror puro, inarticulado e paralisante. Kraus via em Hitler muito mais do que o bufão agressivo que se projetava na imprensa da época e arrastava multidões para seus comícios. De alguma forma ele intuiu a chegada do horror em estado bruto. Algo que nosso vocabulário usual não tem como dar conta.

A estética bolsonarista parece buscar esse mesmo grau de indizível. Desde a campanha para a presidência, em 2018, Jair Bolsonaro e seus asseclas procuram minar toda a tentativa de racionalizar o processo de autodestruição – ético, social, cultural – levado a cabo no Brasil. A saraivada diuturna de notícias falsas, memes, declarações peremptórias, iconografia repulsiva e desmentidos (todos com origem na gramática do gangsterismo fluminense) parece barrar qualquer vislumbre de humanidade. Poucas vezes na história contemporânea um círculo de poder (o presidente, seus filhos, um bando de políticos oportunistas) adotou esse nível de comportamento sobre seu próprio povo. Só é possível entender o processo por meio de duas analogias (que não são excludentes, muito antes pelo contrário): o colonialismo e o câncer.

A forma como o meio ambiente, as populações indígenas, as minorias e os menos favorecidos são atualmente tratados só pode ser compreendida como uma estratégia colonial. Explorar, deixar por terra, abandonar. A economia colonial sempre foi, em qualquer lugar, a busca da precarização local. A maneira como o corpo da nação vem sendo degradado dia após dia, a progressão alucinante com que o Brasil vem sendo roído por dentro, só encontra paralelo no processo metastático. É o país, são os corpos, são as nossas mentes. Experimentamos várias mortes nas 24 horas do dia. E a pandemia se mostrou a oportunidade perfeita para essa autodestruição coletiva, de dentro para dentro.

É possível imaginá-lo arrastando o par de Rider pelos salões enquanto encaminha alguma notícia falsa no WhatsApp para sua claque

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Jair Bolsonaro, com sua franjinha à Führer, seus esgares convulsivos quando algo lhe desagrada, seu vocabulário limitado e seus parcos recursos cênicos sempre viveu na obscuridade. Durante anos era apenas um político de meia tigela e paroquial, lançando mão de pequenos expedientes para acumular benefícios dentro da carreira no Congresso. Mas teve a sorte de contar com um clima cultural favorável, nos últimos 15 anos, ao aberrante e à distorção. A estética da tosquice, que ganhou espaço na internet e em programas televisivos (como o “CQC” e “Pânico”) que, a pretexto de satirizá-lo, ofereciam um palanque para seus despautérios. Aí está a “origem do mito”, muito mais do que o mito da origem. Porque Bolsonaro é justamente o contrário: é um fim em si mesmo. Seu triunfo será sempre nossa falta crescente de apetite para confrontá-lo. Ele é um “artista da fome” em busca da nossa anorexia política.

Não é novidade que, nas horas mais informais no Planalto, Bolsonaro tenha adotado o uniforme do tio do churrasco, esse torturador (do corpo e da alma) aposentado: camisas de time de futebol, calças de moletom, chinelos. É possível imaginá-lo arrastando o par de Rider pelos salões enquanto encaminha alguma notícia falsa no WhatsApp para sua claque (risinhos sádicos). Sua aparente nonchalance, calculada sempre desde o infame pão com leite condensado e a coletiva presidencial sobre a prancha de bodyboard, é uma estética de ressentimento, outra face da mesma operação colonial: não é a Brasília de Niemeyer, não é mais a “Sinfonia do Alvorada” de Tom e Vinicius, não são as formas de Atos Bulcão. Tudo isso é coisa de esquerdinha, que precisa ser solapado por aquilo que ele chama – fascistamente – de “cultura raiz”. A arte local deve ser esmagada em nome dos valores pretensamente corretos. Nem Mussolini na Etiópia foi tão bem-sucedido.

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A feiura humana de Bolsonaro e sua gangue. Sua falta de ilustração. O episódio da facada, ainda envolto em certo mistério e especulação, mostrou ao Brasil o tipo de gentinha que compõe seu círculo. Pistoleiros da política, pastores da fé monetária, nostálgicos do Dops. Pessoas que usam prendedor de gravata em forma de fuzil e que gargalham com videocacetadas, sejam de alguém tropeçando no meio-fio, sejam de registros visuais de esculachos da polícia nas comunidades mais carentes. “No ocaso do mundo, eu quero viver uma vida reservada”, escreveu Karl Kraus no mesmo artigo em que dizia ser impossível falar de Hitler.

Ainda não podemos nos dar a esse luxo.

LEANDRO SARMATZ é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia

Ninguém aguenta mais barulho, William Vieira, Revista Gama

Quem habita uma metrópole vive em meio a um caos sonoro — e geralmente acha normal. Carros e ônibus, motos e ambulâncias nos cercam na rua, enquanto aviões e helicópteros cruzam os céus. Moramos em prédios colados com paredes finas que, se não disfarçam, amplificam o som dos vizinhos, e trabalhamos em meio ao burburinho. Nossos próprios fones berram dentro do ouvido. Então ruídos acima do limite legal de 70 decibéis de dia e 45 decibéis à noite compõem nossa rotina sonora – quem nunca morou ao lado de uma construção?

Assim que a pandemia se instalou, porém, o silêncio se fez. A economia estagnou: aviões ficaram no solo, ônibus e carros sumiram das ruas. O ar melhorou, o barulho diminuiu e o canto de pássaros passou a ser ouvido nas janelas, mesmo nas cidades. Os parisienses, por exemplo, descobriram que é possível “escutar o silêncio”, diz o editorial do Le Monde chamado “Como eu fazia antes?”. A mudança foi medida — e no mapa sonoro de Paris, a diferença é brutal. Mesmo com o fim do confinamento, diz o jornal, “a relação dos franceses com o barulho mudou drasticamente+”.

Aos poucos, na Europa, mas também no Brasil, o que é considerado aceitável em termos sonoros está mudando — e a quarentena foi um acelerador dessa percepção. Em São Paulo, o barulho chegou a cair 50% em alguns pontos, como na região da avenida Nove de Julho, segundo medição da associação ProAcústica. Quem trabalha em casa passou a ouvir bem-te-vis e sabiás. Eles sempre estiveram lá, mas seu canto era engolfado pelo ruído incessante da metrópole.

“O isolamento trouxe um aumento dessa percepção, não só porque o silêncio ficou perceptível, mas também porque os barulhos estão se destacando do ruído de fundo”, diz o professor de acústica da Universidade Federal de Goiás, Marlipe Fagundes Neto. O barulho dos automóveis na rua, por exemplo, mascara sons de potência similar. “Nosso ouvido funciona como um equalizador: quando o ruído de fundo diminui, passamos a escutar sons que emitem a mesma energia.” Seja o passarinho, o vento, a briga do vizinho, o latido do cão.

O isolamento trouxe um aumento dessa percepção, não só porque o silêncio ficou perceptível, mas também porque os barulhos estão conseguindo se destacar do ruído de fundo

Com mais gente passando mais tempo em casa, e menos barulho difuso lá fora, os ouvidos ficaram atentos — e incomodados. Da criança a correr e gritar no andar de cima à obra que o vizinho decidiu iniciar (em meio a discussões de casal), cada barulho se destaca. E as queixas aumentam. Mesmo no Brasil, onde o tráfego não foi tão silenciado como nos países europeus com lockdown real, houve um boom de reclamações de origem sonora, do Rio Grande do Sul ao Ceará. Em São Paulo, redes de assessoria condominial lançaram até guias para lidar com a situação.

Se a pandemia, a quarentena e a falta de certeza sobre o futuro já aumentam o desequilíbrio físico e mental, o barulho — destacado mais do que nunca — é a pá de cal+. Uma batalha sonora, assim, está em curso mundo afora. Mas, enquanto as políticas públicas para o som, debatidas com força nos Estados Unidos e Europa, não ganham vez por aqui, o que fazer para fugir da poluição sonora? A resposta é simples e dolorosa: comprar o silêncio.

A paz do isolamento durou pouco — a tal abertura gradual está em marcha há um bom tempo –, mas foi o bastante para sentir o gostinho de um mundo com menos barulho. Para quem pode pagar, a saída mais garantida é se isolar numa bolha: em casa, no trabalho, na rua. E há uma indústria que se move só pra isso.

De tampões a fones antirruído: a bolha no trabalho

Antes da pandemia, trabalhávamos quase sempre fora de casa. E a situação já não era boa: 69% das pessoas já estavam insatisfeitas com o barulho nos escritórios. Após anos acreditando no espaço compartilhado oferecido pelo coworking, onde o burburinho é regra, cada vez mais profissionais buscam trabalhar em paz, tentando evitar a perda de foco e concentração — e, logo, de produtividade: 57% dos trabalhadores franceses, por exemplo, afirmam que produzem menos por causa do barulho.

Ninguém sabe ao certo como será o futuro dos escritórios e do trabalho em geral — se o home office vai virar o novo normal ou não –, mas o mesmo vale para trabalhar em casa. Ações mais drásticas para lidar com o lar seguem mais abaixo, mas as mais básicas são urgentes. Criados para ouvir música em espaços barulhentos, como aviões, os fones com cancelamento de ruído têm ganhado os escritórios como a melhor forma de lidar com o barulho que não controlamos — afinal, o inferno são os outros.

Criados para ouvir música em espaços barulhentos, como aviões, os fones com cancelamento de ruído tem ganhado os escritórios como a melhor forma de lidar com o barulho que não controlamos

Não à toa o site da Wework, a maior empresa de coworking do mundo, que incentiva o fim dos cubículos e salas fechadas e a divisão comunal do espaço de trabalho tem estimulado o uso de fones “para aumentar a produtividade”: em primeiro lugar na lista estão os com cancelamento de ruído (R$ 3,5 mil). Saídas mais baratas, como fones com “isolamento” e tampões de ouvido (alguns podem ser customizados) também fazem parte do arsenal. Nos momentos de concentração, ouça “white noise”: há diversas trilhas no Spotify e até apps com sons de rios, etc. Se precisar, use tudo ao mesmo tempo. A bolha de calmaria é só sua.

A quarentena esvaziou os escritórios, mas as empresas já organizam a volta dos funcionários — e o barulho de sempre estará lá. Talvez valha focar nos fones e tampões e aproveitar o home office, ou o espaço maior no escritório enquanto durar. A volta será escalonada, menos pessoas trabalharão juntas e com maior distância. O que não impede que gritar para o colega distante ouvir seja habitual.

Do piso ao teto: a bolha no lar

É quando dormimos que o ruído mais incomoda e faz mal. Com o home office então, temporariamente ou não, é preciso garantir um mínimo de paz para trabalhar, sobretudo quando se divide a casa com crianças. Enquanto o poder público tateia para reduzir o ruído das ruas e convencer seu vizinho a brigar menos ou desistir da obra segue impossível, o mercado já vende o silêncio perfeito para o lar.

Com a norma técnica de 2013, a NBR15.575, que alterou os níveis aceitáveis de ruído nas habitações, uma indústria do silêncio surgiu no Brasil para dar conta da demanda de materiais isolantes. Segundo a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias de 2019, tais itens já são prioritários para 63% dos que buscam um imóvel e ganham mais de R$ 3 mil – e para 44% de quem ganha menos de R$ 800, à frente até da famosa varanda gourmet. Uma região silenciosa fica à frente até da proximidade de escolas.

Enquanto o poder público tateia para reduzir o ruído das ruas, e convencer seu vizinho a brigar menos ou desistir da obra segue impossível, o mercado já vende silêncio

Para Holtz, uma revolução está em curso também no Brasil: a percepção de que o “conforto acústico” deve ser levado em conta. Além da norma, já se discute uma nova forma de classificar imóveis por níveis de conforto acústico — como hoje se faz com eletrodomésticos. Um imóvel classe A valeria bem mais que um E. “O ruído virou uma questão palpável. E o silêncio, um conforto como qualquer outro”, diz.

Quer buscar o silêncio sem mudar de casa? Existem dois graus de ação, diz Holtz. Se for preciso apenas conter a reverberação do espaço, não são necessárias obras: revestimentos fibrosos, painéis acústicos adesivos, tapetes, almofadas, estantes e coberturas vegetais (plantas) ajudam, unindo decoração e silêncio. Mas se a poluição sonora for grave — sobretudo se vier da área externa, como uma avenida, ou de vizinhos –, vale dar um passo além com o isolamento acústico+.

O custo da bolha varia de acordo com o volume de ruído, o número de janelas, seu grau de incômodo e o tamanho do lar. Uma reformulação completa (“insonorizando”, como se diz no jargão, de teto, piso, paredes, janelas e portas) num apartamento de 60 m2 e dois quartos não sai por menos de R$ 10 mil — fora um valor similar para janelas e portas. O silêncio completo pode custar de R$ 20 mil a mais de R$ 40 mil.

Antes de sair por aí gastando dinheiro para isolar qualquer coisa, porém, é preciso saber de onde vem o barulho e o que pode contê-lo. Uma saída garantida é contratar um consultor para fazer um laudo acústico, diz Holtz. “Muita gente gasta com a janela e descobre que o ruído pior vem dos vizinhos. Um barulho que, aliás, pode ser bem mais perturbador.”

O futuro é silencioso

Um aparelho que gruda na janela e faz dela um emissor de cancelamento ativo de ruído – seria o futuro? Chama Sono e foi projetado de forma a exportar para o ambiente a tecnologia de cancelamento de ruído, similar à dos fones de ouvido. Seria possível, por meio de um dial, eliminar o som de uma obra enquanto se mantém manter o dos pássaros cantando. Ainda não chegou ao mercado, assim como janelas desenvolvidas em Singapura que reduziriam o ruído da rua pela metade, com o benefício de poderem ficar abertas, ao contrário das tradicionais.

O mesmo se dá com a tecnologia QuietBubble, da Silentium, start-up que desenvolveu um chip com algoritmo que identifica o ruído e o “cancela”, criando uma “bolha de quietude” em torno de você, seja no carro, no quarto ou na cozinha (o chip é instalado em cada aparelho que faz barulho). A tecnologia ainda é cara e não chegou inteiramente ao mercado, mas investidores têm apostado na empresa: nos próximos anos, ilhas de silêncio podem estar à disposição.

Mas dessas tecnologias para poucos, o foco deve ser em relação a políticas públicas que reduzam a emissão de ruídos. Hoje, aviões, carros e trens já são mais silenciosos que antes — mas a luta é por diminuições ainda maiores.Cidades europeias, por exemplo, estão reduzindo o espaço para carros. É um começo.

Pois mais que incômodo, a poluição sonora é uma ameaça global, diz a Organização Mundial da Saúde. Só na Europa ocorrem 12 mil mortes prematuras por ano devido ao barulho –ele é o “novo fumo passivo”, como define o ativista antirruído Bradley Vite. Levou décadas para educar as pessoas sobre o tema. “Talvez precisemos de décadas para mostrar os impactos do barulho passivo.”

Gonzalo Vecina - O balanço da pandemia, OESP

Gonzalo Vecina Neto*, O Estado de S.Paulo

31 de julho de 2020 | 05h01

O primeiro caso de covid-19 brasileiro foi diagnosticado em 26 de fevereiro. Estamos com 2,5 milhões de casos e mais de 90 mil mortes. Qual o balanço? A primeira indagação a ser feita: existe um genocídio? Manaus – que enterrava 30 pessoas por dia – chegou a enterrar 160 e o fez em valas coletivas, como ocorre em situações de guerra e de grandes emergências. Colapsaram hospitais e cemitérios. Além dos óbitos, ainda não contabilizáveis entre populações indígenas no Amazonas, em Roraima e mais recentemente no Xingu. São populações de responsabilidade federal de acordo com a Constituição Federal.

Os funcionários do cemitério preparam os caixões para serem enterrados em uma vala comum no cemitério de Nossa Senhora em Manaus, estado da Amazônia.
Os funcionários do cemitério preparam os caixões para serem enterrados em uma vala comum no cemitério de Nossa Senhora em Manaus, estado da Amazônia.  Foto: MICHAEL DANTAS / AFP

A epidemia cresce em alguns Estados e caminha para a interiorização, está estagnada naqueles em que teve rápida propagação e estabilizada em um ponto elevado em outros Estados. Certamente os casos foram fruto da exposição de grupos de pessoas que são, em grande parte, dependentes da economia informal e os dados comprovam isso – mais casos e mais óbitos entre pobres e negros nas periferias das grandes cidades. 

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Os pobres e negros seriam uma preferência do vírus? Claro que não, somente devido à exposição. O vírus infecta quem o encontra e este é o caso dos pobres. E também os mata proporcionalmente.

Quem ficou em casa está esperando a flexibilização e quando esta chegar vão marcar encontro com o vírus e ter sua chance. Este momento está chegando. Onde ocorreu a flexibilização quem saiu foi quem já estava saindo – ou por ser pobre e ter de encontrar comida ou por ser trabalhador dos setores que não reduziram atividade.

Agora se fala da importância de voltar às aulas. Recuperar em três meses o ano perdido. São cerca de 50 milhões de pessoas entre alunos, professores e pessoal de apoio. Grande parte estava em casa. Os prontos-socorros infantis vazios são a prova do sucesso do isolamento. Provavelmente a liberação dos alunos, por mais cuidadosa que seja, vai provocar casos entre eles e nós, adultos, que estamos em casa. Valerá a pena? Discutiremos escola a escola, casa a casa? Em um país sem governo?

Como tomar decisões sobre flexibilização? Primeiro, tem de testar para diagnosticar e isolar novos casos para não aumentar o total de infectados. Mas o Brasil testa três casos por paciente diagnosticado, em comparação com os 10 a 30 nos países europeus. E o governo federal não reconhece seu papel nessa lide. 

E pior: está na hora de usar os testes sorológicos de forma inteligente para saber qual parte da população já teve a doença. Temos de patrocinar pesquisas como a da Universidade Federal de Pelotas. O Ministério da Saúde vinha financiando a pesquisa, que tem seis fases, mas por alguma razão mal explicada resolveu parar na terceira. Não quer saber o que está ocorrendo. Impressionante.

Também desistiu, mesmo sendo o maior financiador do SUS (o governo federal é responsável por 50% do dinheiro do SUS), de resolver ou ajudar a resolver os graves problemas de abastecimento de medicamentos essenciais para tratar os pacientes, como os anestésicos e relaxantes musculares. Falta no Brasil e teremos de importar. Problema dos Estados e municípios!

Mas sobra cloroquina, os estoques estão abarrotados. E vários municípios, nessa funérea confusão, criam filas para distribuir kits de medicamentos sem uma prescrição médica nem indicação clínica! Isso pode. Os conselhos e associações corporativistas defendem o ato médico e calam frente a esse processo criminoso de distribuição de medicamentos. E depois de tudo isso nos insurgimos contra o ativismo jurídico! Só sobrou o Judiciário para pôr ordem na casa e cessar o genocídio.

* É medico sanitarista


Imprensa francesa destaca relação de Gilles Lapouge com o Brasil, OESP

Paulo Beraldo, O Estado de S.Paulo

31 de julho de 2020 | 15h45

Ao noticiar a morte de Gilles Lapouge, jornais franceses abordaram a longa relação do jornalista e escritor com o Brasil. Le FigaroLe Monde e Le Journal du Dimanche ainda destacaram o papel de Gilles na imprensa francesa por ter sido um dos criadores do programa Ouvrez les guillemets (Abra aspas), que se tornaria o Apostrophes, uma das principais produções televisivas de literatura do país. Segundo familiares, Lapouge não resistiu a uma infecção pulmonar. Jornalista do Estadão há 70 anos, ele faria 97 anos em novembro. 

O Le Figaro cita a relação de Gilles Lapouge com o Brasil e compara sua curiosidade com a do escritor Stendhal, lembrando do livro 'Dicionário dos Apaixonados pelo Brasil'. O texto lembra que Gilles foi "pego" pelo vírus do jornalismo pela sua passagem no Brasil, nos anos 1950, quando se tornou correspondente do Estadão

"Desde essa data e por mais de 60 anos, ele colaborava regularmente com o principal jornal do País, O Estado de S. Paulo, escrevendo o equivalente, segundo seus cálculos, a cerca de cinquenta volumes da "Pléiade" (coleção de livros de uma famosa casa editorial francesa)", escreveu o Figaro. De acordo com o acervo do Estadão, foram mais de 10 mil textos escritosPelo menos cinco dos mais de 25 livros que escreveu ao longo de sua trajetória tiveram o Brasil como tema.

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O jornalista Gilles Lapouge no acervo do Estadão   Foto: Alex Silva/Estadão

No Brasil, viajou pela Amazônia, Rio de Janeiro, São Paulo e era apaixonado pelo Nordeste, principalmente pelo sertão. "Ele tinha memórias muito fortes do Brasil. Amava o Nordeste, o sertão. Sempre contava dos anos no Brasil, das leituras de Jorge Amado. Ele gostava muito das histórias dessa região", disse ao Estadão o amigo Michel Goujon, editor do clube de livros France Loisirs que trabalhou com Gilles por muitos anos. "Ele era um purista com a escrita, escrevia e corrigia 100 vezes. Muitas vezes, seus textos se assemelham a poemas, eles têm um musicalidade". 

"Na França, todos admiravam Gilles e você só podia vê-lo depois que ele escrevia sua coluna. Ele impressionou a todos nós com a beleza de sua alma, seu humor e sua elegância. Ele era um viajante, foi para a África com seus filhos há dois anos. Para nós, é uma árvore enorme e bonita que acaba de ser derrubada", afirmou Valérie Dumeige, que foi editora do escritor na Éditions Arthaud.

O jornal Le Monde escreveu que um grande "escritor viajante" morreu, destacando a curiosidade como uma das características marcantes de Lapouge. Cita a passagem de Lapouge pela rádio e também pela televisão, descrevendo-o como um "homem das mídias". A agência de notícias francesa AFP, que distribui seu conteúdo para dezenas de países, também noticiou a morte do escritor e sua relação com o Brasil. 

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O jornalista Gilles Lapouge durante viagem à África, aos 94 anos Foto: Jerême/ Mathilde Garro Lapouge

Le Journal du Dimanche usa as próprias palavra de Lapouge para descrevê-lo: "Sou mais um viajante surpreendido do que um viajante surpreendente". O texto também cita o "caminho único" de ser um profundo conhecedor do Brasil.

O jornal cita a passagem de Lapouge na imprensa francesa em veículos como Le Monde, le Figaro e em transmissões televisivas para falar de literatura na França. O diário usou as mesmas palavras da Embaixada da França no Brasil para resumir uma característica inconfundível de Lapouge: 'Era um apaixonado pelo Brasil". 


Fernando Schüler O Supremo é o editor da sociedade?, FSP

Foi interessante assistir ao ministro Dias Toffoli, nesta semana, em um debate promovido pelo site Poder 360, expondo com clareza seus pontos de vista sobre temas de censura e liberdade de expressão hoje em pauta no país.

O ministro foi taxativo: “A Constituição veda de modo absoluto a censura prévia”. E concluiu: “Aquilo que ainda não foi tornado público pode vir a público e a pessoa vai arcar com suas consequências [...] pode emitir sua ideia, seja ela qual for. Até de defender o nazismo, até de defender o fechamento do Supremo”.

Dito isto, era óbvia a pergunta pendurada no ar: e os cidadãos banidos das redes sociais, no inquérito das fake news? Isto é, impedidos previamente de dizer as coisas que poderiam lhes trazer “consequências”. O que dizer?

O ministro sugeriu uma distinção: uma coisa seria proibir a “expressão” de um indivíduo; outra seria proibi-lo do uso de “veículos” para se expressar. Nesta lógica, os bloqueados não teriam perdido sua liberdade. Apenas não poderiam fazê-lo no Facebook ou no Instagram. Poderiam publicar panfletos, imaginei, mas ninguém aventou a hipótese.

Ato seguinte, o ministro sugeriu uma analogia entre os bloqueios e as prisões preventivas. Privação do direito de ir e vir seria muito mais grave do que perda da liberdade intelectual ou de expressão. Por que então deveria chocar mais as pessoas “meia dúzia de redes sociais paradas do que 200 mil pessoas presas provisoriamente?”

De minha parte, só vejo uma resposta a esta questão: choca por que é algo que não está na lei, muito menos na Constituição. Não importa que se trate de prisão ou banimento do Twitter. Choca é o desrespeito a um princípio, que é um bem para uma sociedade democrática.

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O ministro foi além. Depois de se referir ao fato de que toda empresa de comunicação tem seu editor, explicou que “nós, enquanto Judiciário, enquanto Suprema Corte, somos editores de um país inteiro, de uma nação inteira, de um povo inteiro”.

Eugênio Bucci estava no debate e, com sua gentileza habitual, lembrou que sociedades não funcionam como empresas de comunicação. Estas pertencem ao mundo privado e podem demitir o funcionário a partir de juízos de valor. Caberia, porém, a uma instituição de Estado fazer o mesmo? Isto é, “eleger valores que definem a circulação de conteúdos”?

Eis aí a questão central: sociedades abertas precisam de um “editor”? Sociedades que se definem precisamente pela diversidade de visões de mundo e por um desacordo fundamental sobre o erro e o acerto, o falso e o verdadeiro?

A resposta a esta pergunta está no próprio nascimento da ideia moderna de liberdade de expressão. Foi para defender o fim do direito à censura prévia de livros que o poeta inglês John Milton, no coração da revolução inglesa, escreveu sua “Areopagítica”.

Em 1644 eram os livros. Hoje são redes e blogs. A questão fundamental é a mesma. Deveríamos presumir, perguntava Milton, que aqueles que censuram “dispõem da graça da infalibilidade, acima de todos nessa terra”? Era exatamente contra a ideia do Estado editor que John Milton se batia.

Estas questões pareciam estar resolvidas há muito tempo. De uma hora para outra, a coisa mudou. Vamos nos tornando um país em que a defesa da liberdade de expressão vai surgindo como um exercício perigosamente retórico e seletivo. E estranhamente capaz de assustar as pessoas.

País em que se aceita acriticamente o retorno da “absolutamente vedada” censura prévia. A lógica do “você não fala mais nada, seja bom, seja mau, seja verdade, seja mentira”, como bem lembrou o professor e amigo Marco Sabino.

Os crimes cometidos na internet devem ser punidos, na forma da lei, e é saudável que se discuta mecanismos de proteção das instituições frente às novas tecnologias. O Congresso, neste exato momento, se dedica a esse debate.

Nada disso, porém, admite a tutela do Estado sobre a opinião. Ainda lembro do orgulho que todos sentimos quando a ministra Cármen Lúcia lembrou canções de sua infância para dizer que o “cala a boca já morreu”. Sugiro não ressuscitá-lo.

Fernando Schüler

Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.