segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

CIVILIDADE (OU NÃO) EM TRANSIÇÃO, Meio Sábado

 Por Luciana Lima

Uma mesa, três tomadas. Nada de computadores ou telefones. Foi esse o cenário que um integrante da equipe técnica da transição encontrou em seu primeiro dia de trabalho. “Com cinco membros na equipe, cada um com seu laptop, a gente ainda teve que revezar tomada”, ele contou ao Meio, sob reserva. O clima nos grupos que operam a passagem de bastão entre a gestão Bolsonaro para o governo Lula é de intensa desconfiança (s.f. disposição para suspeitar de outrem; temor de ser enganado; descrença, dúvida, suspeição). Pudera.

Os sinais de que o ambiente não seria dos melhores começaram a aparecer tão logo a transição foi instalada. O Gabinete de Segurança Institucional (GSI), comandado pelo general Augusto Heleno, aquele que anda bradando por golpe até hoje, fez desembarcar no Centro Cultural Banco do Brasil, QG da transição, cerca de 40 funcionários, entre seguranças e técnicos, para trabalhar de forma conjunta com a equipe de Lula. A ajuda foi dispensada. (Você aceitaria?)

Dentro do prédio, o GSI já havia montado rede de wi-fi, mesas com computadores e telefones. Foi só montar e desmontar. No dia seguinte, uma varredura foi encomendada à Polícia Federal. Isso fez com que o coordenador da transição, o vice eleito, Geraldo Alckmin (PSB-SP), adiasse seu desembarque no CCBB. No primeiro dia, ao lado de Gleisi Hoffmann (PT-PR) e Aloizio Mercadante (PT-SP), Alckmin visitou a Câmara, o Senado, o Planalto, o Tribunal de Contas da União (TCU), recebeu pessoas no hotel na região central de Brasília. Mas deixou para colocar os pés no CCBB somente no dia seguinte, após a vistoria do esquadrão... antibomba. Sim, fizeram buscas por bombas. A transição passou a usar também uma rede própria de internet.

Diante da inconsistência no fornecimento de informações, alegada constantemente por integrantes da transição, a equipe de Lula lançou mão de servidores de carreira dispostos a contribuir com a passagem, mesmo que fora dos canais oficiais. Alguns foram buscados, outro chegaram a se oferecer para ajudar. Além disso, dados levantados por entidades que acompanham a execução orçamentária têm sido usados para identificar gargalos. “Essas contribuições não vêm só dos dados do governo”, disse a deputada Benedita da Silva (PT-RJ), que faz parte do Grupo de Trabalho (GT) da Cultura.

Um exemplo escandaloso de que essa sabotagem pode mesmo estar acontecendo: a notícia divulgada pelo portal Metrópoles de que computadores do Planalto "tiveram que ser formatados" após um ataque de vírus. O Ministério Público Federal no Distrito Federal (MPF-DF) chegou a pedir uma investigação sobre o caso e cobrou do governo a abertura de um procedimento administrativo. Ainda não há conclusão dessa investigação.

Meio entrou em contato com a Secretaria de Comunicação (Secom) do Planalto questionando os repasses de informações e se há alguma conclusão sobre o “apagão” que atingiu os computadores. Não houve resposta. O espaço segue aberto para manifestações.

Panos quentes

Representantes do grupo político da transição até se esmeram em declarações públicas de que “o outro lado” tem sido prestativo, atencioso e colaborativo e que o fluxo de informações tem ocorrido da melhor forma possível. As falas não se sustentam diante de misteriosos apagões em computadores do Planalto, negativas de repasse de dados considerados sigilosos pelo atual governo e irritação do Planalto com a divulgação de informações repassadas.

Entre os episódios que mais irritaram os palacianos estão divulgações feitas pelo deputado André Janones (Avante-MG), apoiador do presidente eleito. Desde que os trabalhos começaram, o deputado mineiro, fenômeno nas redes sociais, travou uma guerra com Carlos Bolsonaro, filho do presidente que coordenou a comunicação da campanha derrotada.

Dias atrás, Janones chegou a se valer de dados repassados pelo governo para cutucar ainda mais o clã Bolsonaro. Janones expôs repasses para blogs e emissoras que professaram o bolsonarismo e seus ataques à democracia, e a destinação de R$ 13 milhões da Secom para o Instituto Paraná Pesquisas. O episódio rendeu bate-boca nas redes e reclamações da Secom sobre a “falta de cordialidade” do deputado.

Uma reclamação feita em caráter reservado por membros da transição refere-se aos estoques de medicamentos e vacinas do Ministério da Saúde. A pasta alega ter repassado todo tipo de informação requerida, sem especificar esse ponto específico. Membros da transição dizem que esse ponto tem sido tratado como sigiloso. A desconfiança é de que o governo tenta esconder um prejuízo com vacinas vencidas que pode chegar a R$ 2 bilhões.

“Bronca interna”

Os vazamentos tiveram consequências internas. Da parte do governo, responsáveis pelo envio de dados usaram os episódios para justificar a sonegação de informações. Já a coordenação da transição precisou dar uma bronca geral nos coordenadores dos grupos de trabalho: qualquer vazamento, se descoberto, será encarado como crime contra a administração pública e o responsável será penalizado.

Medidas práticas tiveram que ser baixadas. Os técnicos que trabalham nos GTs não podem mais deixar nada exposto em suas mesas e, ao fim do expediente, têm de levar toda ferramenta de trabalho para casa. “Nem um papel com rabisco pode ficar sobre as mesas”, disse um integrante da equipe. “Vai que esse papelzinho vire outro nas mãos de algum jornalista”. Os colaboradores também estão proibidos de fazer serão, mesmo com parte dos relatórios ainda atrasada. Todos precisam deixar o CCBB às 21 horas, liberando, assim, os funcionários da entidade para seguirem para suas casas.

A desistência na divulgação dos relatórios preliminares, no último dia 30, segue a mesma lógica. A primeira informação era de que o diagnóstico feito no último mês de trabalho seria exposto aos jornalistas — uma coletiva já havia sido marcada para a divulgação dos documentos. Só que ela esbarrou em uma portaria editada por Alckmin no dia 23 de novembro, com o compromisso de “não utilização de informações privilegiadas no âmbito do Gabinete de Transição, a ser obrigatoriamente subscrito por todos os colaboradores permanentes ou eventuais dos grupos técnicos”.

Outro entrave: no início dos trabalhos, bastava que a solicitação por dados fosse assinada pelo coordenador de cada grupo. Depois, instituiu-se que era preciso contar também com a assinatura de Alckmin. Segundo fontes da comissão, há uma fila de ofícios esperando por esse aval e ainda não entregues ao atual governo.

“Boa vizinhança”

A intenção de Alckmin, com a portaria, era fazer a política da boa vizinhança a tentar garantir o fluxo das informações, mesmo que seja o mínimo. “O governo está reticente em entregar o que chama de informações sigilosas. Mas quase tudo que a gente precisa, para eles, está nessa categoria”, disse um parlamentar que integra a equipe.

“O que não é sigiloso, a gente tem acesso, basta entrar no Siafi”, disse o parlamentar, referindo-se ao Sistema Integrado de Administração Financeira, plataforma que contém todos os dados das políticas implementadas pela administração pública e que é acessado somente por servidores autorizados.

A desconfiança e a insuficiência de dados têm atrasado outro trabalho que a transição pretende entregar: o “revogaço” de decretos, atos normativos e medidas provisórias de Bolsonaro. Isso porque há regras que não podem ser simplesmente extintas sem que se coloque outra em vigor, sob pena de prejudicar o fornecimento de serviços essenciais por parte do Estado. Com isso, alguns grupos já trabalham com duas listas de normas a serem revogadas: uma para as primeiras 24 horas de Lula e outra para os primeiros 100 dias.

Civilidade política

Governos derrotados precisam ter a capacidade de tratar a coisa pública como tal e, dessa forma, promover o repasse de dados para a prestação de serviços à população ocorra de forma satisfatória por parte do Estado.

Chefe da Secom do ex-presidente Michel Temer (MDB), o jornalista Márcio Freitas lembrou episódios que remetem a esse compromisso que se espera dos gestores públicos. Na passagem para Bolsonaro, ele se recorda de ter produzido e entregue um relatório completo das atividades, contratos, pessoal da pasta que coordenava. Chegamos a entregar esse documento duas vezes, visto que, primeiramente, seria o general Floriano Peixoto o chefe da Secom. Depois, a secretaria foi para o general Santos Cruz”, lembrou.

Lembrando a transição de Temer para Bolsonaro, Márcio Freitas destaca cenas que hoje estariam totalmente fora da receptividade de Bolsonaro. “A Marcela (Temer) fez questão de apresentar para a Michelle Bolsonaro o Palácio da Alvorada, da mesma forma que Mourão foi apresentado ao Palácio do Jaburu, onde Temer morava”, ressaltou.

Mas a marca da civilidade na política mais emblemática, segundo o jornalista, ocorreu em pleno impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). “Tivermos um processo de impeachment, ou seja, foi um processo de ruptura e, portanto, também não houve transição. Mas, mesmo assim, eu recebi, na época, do ministro Edinho Silva (PT-SP), todo relatório robusto sobre a situação a Secom com informações sobre pessoal, despesas, contratos feitos, em andamento. Foi um relatório completo, mesmo diante do impeachment”, disse o jornalista, em conversa com o Meio.



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