segunda-feira, 31 de maio de 2021

Ruy Castro - Perucas e chumaços, FSP

 A morte da atriz Eva Wilma, há dias, trouxe de volta a história de que, testada em Hollywood por Alfred Hitchcock para seu filme “Topázio”, em 1969, ele notou-lhe um dentinho fora do lugar e disse: “Vamos ter de corrigir isso”. Entendo a preocupação de Hitch. A antiga Hollywood vetava qualquer mínimo traço que impedisse a plateia de se concentrar na personagem. Por isso, muitos astros do passado sofreram “correções”.

A linha do cabelo de Rita Hayworth, por exemplo, chegava-lhe quase aos olhos —era como se ela não tivesse testa. Rasparam-na por um processo chamado eletrólise, e Rita se tornou “Gilda”. Marlene Dietrich, em “O Anjo Azul”, tinha cara de bolacha e só ganhou aquele rosto afilado porque a Paramount lhe extraiu os sisos, molares e pré-molares. E certos sotaques eram um problema: a MGM levou anos para lançar Ava Gardner porque ela demorou a perder o sotaque caipira.

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Doris Day, ao chegar à Warner, era muito dentuça, e Dean Martin tinha um nariz que uma equipe de médicos levou meses para reduzir —mas já estrearam lindões. Graças à perfeição das perucas, o público não percebia que John Wayne, Humphrey Bogart, James Stewart, Fred Astaire, Gene Kelly, Frank Sinatra e, veja só, Sean Connery eram carecas.

Alan Ladd, famoso por “Os Brutos Também Amam”, só podia contracenar com atrizes abaixo do seu 1,64 m, ou teria de subir no banquinho para beijá-las. E Jeffrey Hunter, em “O Rei dos Reis”, teve raspadas suas axilas —para a Fox, era impensável um Cristo crucificado e de chumaços.

A querida Eva Wilma não foi aprovada no teste. Queriam aplicar-lhe seios postiços, para satisfazer as fantasias mamárias dos americanos. E para evitar comentários como o de Groucho Marx ao explicar por que ele não assistira a “Sansão e Dalila” (1949), com Victor Mature e Hedy Lamarr: “Não vejo filmes em que os peitos do ator são maiores que os da atriz”.

Marlene Dietrich, nos anos 1930, já sem os sisos e molares
Marlene Dietrich, nos anos 1930, já sem os sisos e molares - Reprodução

domingo, 30 de maio de 2021

Destinos turísticos se reinventam como ‘cidades-escritório’, OESP

 Cidades de praia sempre foram precárias. Ruas de terra, internet fraca. Mas a pandemia tem provocado uma transformação: com o trabalho a distância, muita gente, principalmente os mais ricos, tem passado temporadas no litoral ou em municípios do interior em busca de um lugar para trabalhar e, ao mesmo tempo, apreciar a natureza. Isso tem aquecido a economia dessas cidades. Prefeituras, empresas de telefonia e até aplicativos de delivery estão investindo para atrair um novo tipo de turista: o dos profissionais digitais.

A paulistana Carla Skaf Abbud, por exemplo, foi para a praia de Guarajuba (em Camaçari, na Bahia) e viu avanços na região. “Aqui não tinha nada. Agora, todo fim de semana tem feirinha ecológica, com vários restaurantes, comida portuguesa, pizza”, conta ela, que fechou o apartamento em São Paulo, onde morava. Hoje, ela e o marido – donos de uma rede de restaurantes – só vão para a capital paulista quando têm algum negócio inadiável. “Mesmo assim, vamos no primeiro voo e voltamos à noite.”

Carla é exemplo de um tipo de turista que começou a chegar no meio do ano passado e foi ficando. E isso fez os olhos das prefeituras locais brilharem. Foi assim em Ilhabela (SP)Campos do Jordão (SP)Porto Seguro (BA)Camaçari (BA)Alto Paraíso de Goiás – municípios com alto potencial turístico e, ao mesmo tempo, próximos a grandes centros.

Ilha Bela
Rodrigues afirma que maior demanda exigiu ‘mudança de cultura’ das cidades Foto: Marco Yamin/Estadão

“A gente só tem o turismo para manter a economia girando. Quando vimos que havia esse potencial, resolvemos investir”, diz Toninho Colucci (PL), prefeito de Ilhabela. Ele procurou várias empresas de telefonia para melhorar o acesso à internet. A Vivo se interessou e investiu R$ 2 milhões para esticar um cabo submarino do continente até a cidade, que antes era servida só com ondas de rádio.

A obra deve ser concluída em junho, mas a prefeitura já decidiu propagandear o feito: aplicou R$ 1 milhão numa campanha, na qual chama as pessoas para irem “trabalhar no paraíso” – com garantia de internet que não cai.

“Quando vimos que o fluxo de dados aumentou muito em lugares como Ilhabela e em outras cidades do Litoral Norte e do interior, resolvemos antecipar o investimento e atender esse novo movimento”, conta Dante Compagno Neto, diretor de marketing da Vivo. Só no primeiro trimestre, a empresa investiu R$ 1,9 bilhão em expansão de rede, 18% a mais que nos primeiros três meses de 2020 – principalmente para atender aos profissionais digitais.

A Oi também tem percebido o aumento na demanda por banda larga de alta velocidade em cidades de veraneio. Em Armação dos Búzios (RJ), por exemplo, a base da empresa cresceu 50% em 12 meses até março. “Em 2020, a demanda foi acima do esperado. Muita gente querendo mais velocidade e qualidade de internet nessas áreas”, diz o diretor de marketing da empresa, Roberto Guenzburger.

No interior, pequenos provedores também passaram a faturar mais com esse movimento migratório, com foco em condomínios de luxo. “Tenho instalado links empresariais, antes restritos a empresas, em residências de condomínios como o Quinta da Baroneza, em Bragança Paulista”, diz Eduardo Garcia, diretor comercial da provedora Net Turbo, presente em 74 cidades paulistas.

“Garantir o acesso a uma internet boa e estável foi o primeiro passo para atrair esse público (que trabalha em home office)”, diz a subsecretária de Turismo de Camaçari, Lúcia Bichara. Para oferecer serviços adicionais, diz ela, foi necessário ir um pouco além. “Criamos um programa para ajudar restaurantes locais a trabalhar com delivery e para explicar para nossos comerciantes como funciona vender pela internet.”

Um reflexo desse movimento também foi o aumento da demanda verificada pelo iFood – aplicativo de delivery. Segundo a empresa, os municípios que mais cresceram no ano foram Pelotas (RS), Petrópolis (RJ), Cabo Frio (RJ), Marília (SP) e São José (SC).

Dono de uma pousada e de uma escola de vela em Ilha Bela, Pedro Rodrigues sempre tocou os negócios de sua casa na capital paulista. Mas o movimento de turistas que antes da pandemia acontecia de sexta a domingo passou a exigir sua presença durante a semana. “Essa mudança, boa para os negócios, exigiu uma mudança da cultura local e os funcionários tiveram de se adequar a isso.”

Com essa nova demanda, Ilhabela conseguiu “segurar” empregos. A cidade terminou o ano com um saldo positivo de 62 vagas com carteira, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) referentes a Ilhabela, de 35 mil habitantes. No primeiro trimestre de 2021, o saldo também foi positivo em 120 vagas.

Nelson Sargento, o memorioso, Alvaro Costa e Silva, FSP

 28.mai.2021 às 23h15

A memória de Nelson Sargento —que morreu na quinta-feira (27), aos 96 anos— sempre foi prodigiosa. Ele lembrava que, moleque franzino, de tamborim na mão, calça e tênis brancos, camisa azul de jérsei e cartolinha de feltro, desceu as ladeiras do morro do Salgueiro para brincar o Carnaval na rua Dona Zulmira, território nelsonrodrigueano onde corriam soltas as batalhas de confete.

Depois chegou ao morro de Mangueira para viver com a mãe ao lado do fadista (depois sambista) Alfredo Português, em cujo barraco havia animadas reuniões de pagode, com carne moqueada, cerveja casco escuro e a presença da nobreza: Cartola, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho, Geraldo Pereira.
Nelson era o "gravador" da turma, evitando que algumas composições daquela época pioneira caíssem no esquecimento. Só de Cartola, "salvou" três, acrescentando-lhes uma segunda parte: "Deixa", "Ciúme Doentio" e "Vim lhe Pedir". Aprendeu ali que samba é memória. A tradição inspira e fundamenta o presente.

Um sambista de truz —como era Nelson Sargento— tem saudade de um passado que muitas vezes nem viveu, e é por isso que compõe. Pode ser um passado de glórias, um passado de lutas, um passado de amores, um passado fingido no qual acredita. Da recordação imaginada, nascem maravilhas como "Falso Amor Sincero".

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Nelson era como "Funes, o Memorioso", do conto de Borges. O ofício de pintor de paredes —viração nos apartamentos elegantes da Zona Sul carioca, com tinta branca, espátulas e rolos de lã— lhe abriu o caminho para a carreira de artista primitivo, quadros a óleo que retratam paisagens de favela e figuras carnavalescas resgatadas do olvido.

Um grande frasista. Uma vez bebíamos cerveja preta na praça 15 e, vendo o povo passar em direção à barca de Niterói, ele me disse: "O maior inimigo do pobre é o outro pobre". Adeus, Nelson Mattos, sargento apenas no apelido.


Cenário: Vazamento em laboratório de Wuhan passa a ser uma hipótese viável, OESP

 Shane Harris e Yasmeen Abutaleb*, The Washington Post, O Estado de S.Paulo

30 de maio de 2021 | 05h00

WASHINGTON - Na primavera de 2020, quando o coronavírus se abateu sobre as cidades dos EUA e aos poucos fez mais de 592 mil vítimas americanas, um grupo de funcionários de alto escalão da segurança nacional começou a suspeitar de um laboratório em Wuhan, na China.

Instituto de Virologia de Wuhan era muito conhecido na comunidade científica por sua pesquisa sobre o coronavírus  com objetivo de defender o país de surtos de epidemia como a SARS, causada por um vírus identificado inicialmente na China em 2002. Mas para certos funcionários, alguns dos quais trabalhavam no Departamento de Estado e na Casa Branca, a localização do laboratório na mesma cidade em que a pandemia do coronavírus começou era uma coincidência preocupante.

No decorrer do tempo, as autoridades uniram forças em busca de informações que pudessem mostrar se a pandemia havia sido provocada por uma pesquisa imprudente no laboratório. A investigação foi conduzida em parte por um grupo do Departamento de Estado, à época sob o comando de Mike Pompeo, que inicialmente analisara o cumprimento da China de tratados internacionais sobre armamentos, e depois voltou a sua atenção para o laboratório e evidências de atividade militar suspeita em suas instalações.

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Novas investigações consideram hipótese de vazamento acidental do coronavírus de laboratório chinês Foto: Thomas Peter/REUTERS

Na maior parte da pandemia, a hipótese de um “vazamento de laboratório” foi ridicularizada  pelos cientistas como uma teoria da conspiração infundada, alimentada pelo presidente Donald Trump na tentativa de desviar a atenção da resposta falha da pandemia por seu governo.

No entanto, longe de minimizar a teoria do vazamento, o presidente Biden pediu que seus serviços de inteligência verificassem se os funcionários do governo anterior, cujo trabalho alguns dos seus assessores céticos chamaram de tendencioso e exagerado, poderiam ter questionado com razão o laboratório e realizado uma investigação profunda. Recentemente, a Casa Branca soube que restava ainda uma grande quantidade de informações a serem apuradas que poderiam oferecer uma luz sobre a questão, segundo um funcionário de alto escalão, que como outros, falou na condição de anonimato.

Biden chocou os especialistas em segurança e saúde nesta quarta-feira, 26, quando anunciou que pelo menos um “elemento” da comunidade da inteligência “pendia” para a hipótese de um acidente de laboratório como fonte da epidemia. Suas conclusões são aguardadas daqui a 90 dias.

Funcionários da segurança nacional do governo Trump vasculharam dados sigilosos, trabalhos científicos e até mesmo artigos de revistas populares na tentativa de determinar se a hipótese do vazamento se sustentava. Eles não descobriram provas irrefutáveis, mas tiveram a sensação de que as informações que haviam reunido exigiam uma investigação mais profunda, afirmaram várias pessoas envolvidas na iniciativa.

A localização do laboratório de Wuhan, na mesma cidade do surto, foi para muitos o primeiro ponto suspeito. Mas o mais alarmante foi a resposta do governo chinês à epidemia.

As autoridades chinesas pareciam mais interessadas em bloquear as investigações do que em ajudá-las, afirmaram os antigos funcionários. Eles levaram em conta inicialmente o silêncio dos médicos e dos jornalistas que não informaram o alastrar do vírus, encontrado pela primeira vez em pacientes do hospital de Wuhan, em dezembro de 2019.

No mundo inteiro, funcionários da segurança e da saúde começam a especular a respeito da fonte do vírus pouco depois que ele surgiu, segundo contou um funcionário, acrescentando que houve uma enorme frustração porque o governo chinês não se mostrou solícito em fornecer informações e não permitiu de imediato a entrada de investigadores internacionais no país.

A evidência de que o vírus poderia ter saído do laboratório de Wuhan era circunstancial, salientaram os funcionários. A hipótese padrão, acrescentou um deles, compartilhada pela maioria dos cientistas, foi de que a pandemia começara na natureza.

Mas à medida que eles liam artigos a respeito dos tipos de pesquisa que o laboratório estava realizando, suas preocupações foram aumentando. Alguns experimentos pareciam destinados a tornar os vírus mais infecciosos e potencialmente mortais para os seres humanos. Tais experimentos muitas vezes são feitos para desenvolver vacinas e tratamentos mais eficazes.

O instituto estava no radar de alguns funcionários da saúde e da segurança nacional, informaram dois funcionários de alto escalão, porque suas normas de segurança e algumas de suas pesquisas estavam sendo questionadas. Estes funcionários manifestaram frustração pelo fato de que não havia mais recursos na inteligência para colher mais informações sobre as atividades do laboratório.

Os funcionários americanos acharam que os especialistas deveriam considerar a possibilidade de que o laboratório estivesse envolvido em uma pesquisa arriscada que poderia provocar um surto.

Trump concordou. Em abril de 2020, ele levantou pela primeira vez a ideia de que o vírus poderia ter vazado de um laboratório. Ao mesmo tempo, intensificou a sua retórica contra a China, referindo-se ao coronavírus como o “vírus chinês”. Seguiu-se um aumento dos crimes de ódio contra cidadãos asiáticos.

Trump não apresentou qualquer evidência que respaldasse a teoria do laboratório. O seu conselheiro comercial, Peter Navarro, acusou a China de fabricar o vírus, sem apresentar uma evidência confiável para respaldar uma afirmação tão ousada.

Para alguns dos funcionários que já suspeitavam do laboratório de Wuhan, os comentários de Trump e de Navarro tornaram o cenário do vazamento em uma teoria da conspiração marginal. Tornou-se quase impossível gerar algum interesse entre os especialistas da saúde por uma hipótese que Trump  transformara em uma arma política, afirmaram.

Mas no outono de 2020, a dinâmica se intensificou novamente. A inteligência americana havia obtido a informação de que três funcionários do laboratório de Wuhan haviam adoecido em novembro de 2019 com sintomas semelhantes à covid, e haviam sido hospitalizados. Seus sintomas eram semelhantes também às doenças sazonais, como a influenza, mas eles adoeceram um mês antes de os casos iniciais de covid serem confirmados em Wuhan.

Os funcionários também receberam a informação de que os militares chineses estavam realizando há anos experimentos no mesmo laboratório. Isto também contribuiu para renovar o foco no vazamento do laboratório.

“A informação a respeito dos funcionários doentes foi realmente surpreendente”, disse David Feith, que na época era vice-secretário de Estado para assuntos no Leste Asiático e do Pacífico. “O fato de saber simplesmente que havia vínculos de sigilo militar com o laboratório não dizia necessariamente de onde saíra a covid. Mas se havia um grupo de doenças que eram de fato a covid, aquele poderia ser o Paciente Zero”, disse Feith, atualmente pesquisador sênior do Center for New American Security.

A nova informação “deu início a um esforço muito mais amplo para examinar os dados” sobre as origens, disse David Asher, que foi assessor sênior da Agência de Controle, Verificação e Observância de Armas do Departamento de Estado da época e trabalhara nas investigações sobre a observância dos tratados internacionais da parte da China e do seu programa de armas nucleares. Quando este trabalho foi concluído, Asher, agora pesquisador sênior do Hudson Institute, tornou-se o chefe da força tarefa de Pompeo que analisava as origens da covid-19.

Nos últimos dias do governo Trump, os funcionários montaram uma iniciativa para desclassificar as  informações, incluindo algumas sobre os trabalhadores do laboratório que haviam adoecido. No dia 15 de janeiro, o Departamento de Estado divulgou uma “folha informativa” que foi examinada por diversas agências, inclusive na comunidade de inteligência, em que se declarava que o vírus pode ter-se espalhado naturalmente ou saído de um laboratório.

O documento descrevia três categorias de atividade que apontavam para o última hipótese, incluindo o relato dos funcionários doentes; a história da pesquisa do laboratório sobre o coronavírus em morcegos; e a descoberta de que militares chineses, desde pelo menos 2017, se dedicavam secretamente “a pesquisas sigilosas, inclusive experiências com animais de laboratório”.

A folha informativa, embora breve, é o documento público mais abrangente até o momento sobre o que o governo americano sabe a respeito de um possível vazamento de laboratório.

Um dos funcionários anteriores salientou que a evidência não mudou substancialmente, mas que há muitas indagações que não foram respondidas.

“Há muitas coincidências e material circunstancial e a pergunta é: ‘Quando muitas coincidências são realmente muitas?’” disse outro antigo funcionário. “Um lado do registro está crescendo e o outro não”.

Embora outros cientistas tenham afirmado que a teoria do vazamento vale mais investigações, muitos aconselham a não abraçá-la com excessivo entusiasmo.

“A única razão pela qual esta história continua se sustentando é que a mídia escolheu vestir antigas especulações com novas informações e afirma que esta é a evidência. Não é. É pura especulação e todas as hipóteses sobre a origem continuam viáveis”, disse Angela Rasmussen, virologista da Vaccine and Infectious Disease Organization da Universidade de Saskatchewan.

Na realidade, levou anos para desvendar a origem da epidemia de SARS.

“Uma investigação de 90 dias para se chegar a uma resposta definitiva parece bom, mas é improvável que se chegue a uma resposta definitiva”, disse Chris Meekins, ex-funcionária dos Health and Human Services, hoje analista da Raymond James, uma empresa de serviços financeiros. "A não ser que nós tenhamos informações da inteligência que os EUA se recusaram a divulgar até o momento a fim de proteger fontes e métodos, não tenho certeza do que mudará nos próximos 90 dias”.

quinta-feira, 27 de maio de 2021

A forte recuperação do PIB, Celsos Ming, OESP

 Há 15 dias espalhava-se a impressão de que a atividade econômica do Brasil vinha com mais vigor do que a esperada. Agora, já não é apenas impressão. Há sinais fortes de crescimento do PIB neste ano mais perto dos 5% do que dos 4%.

A primeira surpresa veio dia 13, com a divulgação do Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-BR), a chamada prévia do PIB, que apontou recuperação de 2,3% no primeiro trimestre deste ano, em comparação com os três últimos meses do ano passado, na série com ajuste sazonal, bem acima da esperada. Foi a senha para que os analistas refizessem suas apostas de crescimento para perto dos 4%. 

Na semana passada, o presidente do Banco CentralRoberto Campos Neto, sugeriu que novos indicadores acenam para um avanço por volta dos 4%. Mas os analistas já estão revendo para cima essa projeção. Nesta quinta-feira, por exemplo, o Itaú Unibanco avisou que passou a trabalhar com um incremento do PIB da ordem de 5%. Nas próximas semanas, o Boletim Focus do Banco Central estará registrando essa alta também entre os mais de 70 analistas que até agora não iam além dos 3,52%.

O ministro da EconomiaPaulo Guedes, ligou seu alto-falante para alardear o que vem repetindo desde meados do ano passado: “Olhem a recuperação em V que...”. Tomara que ele esteja carregado de razão. Mas, independentemente disso, convém avaliar os fatores que vêm favorecendo a retomada e os riscos espalhados pela pista, que podem atrapalhar os novos planos.

A impressionante recuperação da economia mundial é vento em popa também no desempenho da economia brasileira, porque favorece as exportações. Os Estados Unidos devem crescer neste ano 6,0%. A China, segunda grande usina econômica do mundo, vai para 8,5%. E a União Europeia, 4,1%. (Veja a tabela). Volume nunca visto de estímulos fiscais (projetos de investimentos públicos e privados) e monetários (despejo de moeda pelos grandes bancos centrais) empurra a economia mundial. Empurrão não menos importante está sendo dado pelo forte ritmo de vacinação nos países líderes. É fator que aumenta o atraso sanitário dos países mais pobres, mas lança empresas e a população dos países centrais para a atividade econômica.

agronegócio é beneficiário da onda de demanda de commodities. Embora o valor da renda do agro ainda não passe dos 6,8% do PIB, a energia transmitida aos serviços ligados ao setor é importante na recuperação.

E tem a vacina. Apesar da confusa política sanitária do governo Bolsonaro, já há no Brasil perto de 45 milhões de vacinados, pelo menos com a primeira dose. São 14 milhões os que já se recuperaram e podem ser considerados relativamente imunizados. E há aqueles que já tiveram a doença, mas não apresentaram sintomas e que já têm anticorpos. Uma avaliação rigorosa não garante imunidade para estes, mas são números indicativos de que mais gente antes entocada começa a ser liberada para voltar ao trabalho.

Um terceiro fator que ajuda a explicar o novo ritmo é a nova rodada de auxílio emergencial, de R$ 43 bilhões, que deve favorecer o consumo de quase 46 milhões de brasileiros.

Mas os riscos não podem ser desprezados. Ninguém sabe se o Brasil continua vulnerável a outras ondas de contaminação, especialmente com a multiplicação de novas variantes do coronavírus – para as quais faltam dados sobre se têm cobertura das vacinas.

Economia (Porto)
O bom desempenho das exportações é um dos fatores que está ajudando a melhorar as projeções para economia brasileira em 2021.Foto: Werther Santana/ Estadão 

Mais produção vai exigir mais consumo de energia elétrica num momento de grave crise hídrica. Mesmo com o acionamento das usinas de fontes térmicas, não se podem descartar apagões em certas regiões do País. Além disso, as tarifas do quilowatt-hora tendem a disparar e alimentar a inflação.

O desemprego recorde, que atingiu 14,8 milhões no primeiro trimestre deste ano, é outro limitador da demanda e da produção. Quem imagina que o avanço do PIB, por si só, criará postos de trabalho ignora que as empresas podem voltar à plena carga, mas com menos pessoal, porque aprenderam a operar mais enxutas e trataram de aumentar os investimentos em tecnologias poupadoras de mão de obra.

Em todo o caso, apesar das vítimas em gente (já são perto de 460 mil mortos) e em empresas quebradas, e apesar da política desastrada do governo federal, a economia brasileira vai demonstrando inesperada resiliência à pandemia. E essa é a melhor notícia.

*CELSO MING É COMENTARISTA DE ECONOMIA


domingo, 23 de maio de 2021

‘Ciberpopulismo não é fenômeno provisório, está instalado’, diz filósofo, OESP

 Entrevista com

Andrés Bruzzone, filósofo e comunicador

Tulio Kruse, O Estado de S.Paulo

23 de maio de 2021 | 05h00

O filósofo e comunicador Andrés Bruzzone, de 57 anos, vive seu segundo confronto com a armadilha da polarização na política. Brasileiro nascido na Argentina, nutre desgosto pela divisão na sociedade que se aprofundou durante os anos de kirchnerismo no país vizinho, a partir da década de 2000. Ele diz que vê, há pelo menos cinco anos, o mesmo ocorrer no Brasil e tem poucos motivos para ser otimista em relação às eleições de 2022

Esse desconforto o levou à pesquisa para o recém-lançado livro Ciberpopulismo (editora Contexto), um ensaio sobre o uso da tecnologia e das redes sociais pela extrema direita. Em entrevista ao Estadão, Bruzzone diz que o fenômeno do populismo digital veio para ficar e que, enquanto partidos democráticos sofrem para se adaptar ao novo cenário, haverá menos espaço para moderação. É por isso que ele se diz cético quanto à chamada “terceira via” no Brasil. “A minha leitura é de que estão fora do jogo, o que é muito triste. Assim perdemos nuances, estamos entre branco e preto, doença ou saúde, não tem meio-termo. No limite, é preciso escolher de maneira binária. Isso é muito ruim para a democracia.” 

  • O tom do seu livro parece pessimista. O sr. diz que expectativas frustradas – na economia, nas condições de vida em sociedade – explicam o surgimento da onda populista à direita, mas os movimentos democráticos ainda não têm uma resposta para isso. Ou têm?

Eu realmente não sou otimista. De alguma maneira, acho que a democracia está encontrando mecanismos para se proteger – assim como a mídia tradicional, uma vez que a tendência digital estava colocando em risco o próprio jornalismo. A democracia, nesse sentido, tem mecanismos de defesa. Mas não sou otimista. Nós votamos com três órgãos do corpo. Com o coração naquilo que amamos – nos identificamos com uma pessoa, um partido. Votamos com o cérebro também, fazemos escolhas racionais. Essas duas coisas funcionam, mas o populismo age diretamente no terceiro órgão: a tripa, as entranhas. O populismo apela de maneira mais intensa para paixões negativas, o medo e o ódio. São muito intensas, muitas vezes mais do que as paixões positivas. As redes sociais são muito mais eficazes para odiar do que para gostar. Há muito mais haters do que lovers. Num ambiente polarizado e populista, olhar para as taxas de rejeição passa a ser mais importante do que para as taxas de adesão. Quando se juntam esses dois fenômenos – das mídias digitais e do populismo – e os dois apontam para o ódio, para frustrações, fúria e canalização do medo, é muito difícil fugir da armadilha. 

Andrés Bruzzone
O filósofo e comunicador Andrés Bruzzone: redes são 'mais eficazes' para odiar  Foto: Tiago Queiroz/Estadão
  • Parece mais fácil usar as redes sociais para promover ódio e desinformação. As instituições democráticas não conseguem aprender com as ferramentas do extremismo?

Idealmente, sim. Não consigo encontrar motivos estruturais para que isso não seja possível. Ocorre que, até agora, não vemos isso. Houve a fase do otimismo digital, a Primavera Árabe e discussões sobre a possibilidade do voto direto (em leis). Isso ainda não está acontecendo de maneira consistente. Ainda que seja possível em teoria, não vemos na prática. Com certeza há uma infinidade de ferramentas para avaliar o trabalho dos eleitos, e uma militância digital claramente democrática muito forte. Há uma fiscalização nas redes sociais. Quando um ex-secretário mente numa CPI, isso se espalha na rede, não há como esconder. Há um ganho de transparência, e isso não deveria nunca significar menos democracia. Talvez seja necessário ainda algum tempo para a democracia e suas instituições aprenderem a lidar com essa realidade nova. Isso ainda está por ser visto.

  • O ciberpopulismo é apenas o uso da tecnologia para promover a polarização, a mesma que já vimos no século 20, ou há mais do que isso?

Ele (o ciberpopulismo) nasce desse encontro entre o populismo tradicional e a tecnologia, que é muito recente. Ele nasce disso, mas provoca uma mudança estrutural. Primeiro se aproveita de mudanças nos sistemas de meios de comunicação e de partidos políticos e, ao mesmo tempo, acentua essas mudanças estruturais. Acho que é muito mais do que um fenômeno contingente. Não é, provavelmente, um fenômeno provisório e, sim, algo que está instalado. A democracia vai precisar lidar com esse encontro do populismo com as possibilidades que a tecnologia coloca à disposição dos especialistas em campanhas políticas.

  • Mais comunicação é um problema para a democracia?

É um paradoxo. Por enquanto, o maior acesso a informações está enfraquecendo e ameaçando as democracias. Mas não devia. O que provavelmente está faltando é o poder fiscalizador do Estado, a regulamentação dos processos de produção e distribuição de informações. Eu não acredito, e não acho que seja sustentável hoje, que uma desregulação total seja positiva.

  • O sr. cita no livro o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair, que diz que o populismo de esquerda não tem chance de alcançar o apelo populista da direita. Concorda?

Eu não concordo com nenhum prognóstico tão taxativo. Acho que não. Em uma primeira fase, vimos a extrema direita se armar muito bem digitalmente, conseguiu canalizar uma série de frustrações. Ela fez com que partes da população, que estavam invisíveis, fossem visibilizadas – isso nos EUA, França, Brasil. Havia pessoas pouco importantes politicamente porque não tinham meios de participar. O que a extrema direita viu foi que poderia dar a essas pessoas um horizonte de representação, fazê-las visíveis. E aí veio essa onda que estamos vivendo no Brasil e no mundo. Não acho que partidos de centro e de esquerda não consigam também aprender. Acho que, no Brasil, estamos vendo um momento muito preocupante, mas, ao mesmo tempo, interessante. A esquerda brasileira está aprendendo a usar redes sociais, vemos isso no cotidiano. E vem aí uma eleição que vai ser muito pautada pelos sistemas digitais de construção de discurso. Cabe a cada um apostar a favor ou contra Tony Blair. (A eleição) terá, claramente, um dinâmica de ciberpopulismo. Será uma polarização extrema, na qual quem eu odeio será tão importante quanto quem eu amo. O Brasil vai viver essas polarizações sobrepostas.

  • O sr. cita a possibilidade incerta da construção de um populismo de esquerda, que não tenha vocação antidemocrática. Acha que essa é uma porta de saída viável para manter a democracia?

Essa é uma questão extremamente delicada. Polarização, assim como populismo, é uma palavra que nomeia muitas coisas diferentes. Precisamos tomar cuidado com essa noção. Na discussão sobre a Terra ser redonda ou plana, por exemplo, não existe polarização e não existe ponto médio entre os dois. De um lado há a ciência, e do outro um pensamento não racional. Não existem polos equivalentes quando, de um lado, há uma força antidemocrática. Não há nenhuma equivalência entre qualquer candidato democrático e outro que quer explodir o sistema. Pode existir polarização, mas não existe equivalência entre os dois. Às vezes se pensa que a polarização leva a um equilíbrio, ao colocar uma situação de equivalência entre dois polos, e isso não é verdade. Existe um limite, que é o do jogo democrático. Dentro dele, tudo. E fora dele, nada. Essa deve ser, entendo eu, a posição de qualquer democrata que acredita no pluralismo. Isso te leva a um paradoxo. Você é obrigado a votar, muitas vezes, em um candidato que você detesta – mas detesta dentro do jogo democrático. A polarização te leva a essas situações. O polo democrático é sempre melhor para a democracia. Não há justificativa de qualquer pessoa com o mínimo de decência cívica para apoiar um candidato que claramente é antidemocrático. O que vai marcar o jogo da próxima eleição é a equação de quantas pessoas apoiam cada um dos dois candidatos e quantas pessoas os detestam, a ponto de votar em alguém que normalmente não votariam.

  • Em um cenário conflagrado como esse, o 'centro democrático' ou a chamada 'terceira via' perdem? Têm alguma chance de ganhar discussões?

A minha leitura é de que estão fora do jogo – o que é muito triste. Assim perdemos nuances, estamos entre branco e preto, entre doença ou saúde, não tem meio-termo. No limite, é preciso escolher de maneira binária. Isso é muito ruim para a democracia.

  • Existe alguma saída para a armadilha do ciberpopulismo?

Eu diria que somente com um acordo muito claro das forças democráticas. O Brasil tem uma vocação de diálogo e contemporização muito maior, por exemplo, do que a Argentina. É um país federal, em que o poder está mais fragmentado. Faço essa comparação por dois motivos: porque conheço o modelo argentino e porque é um lugar interessante para entender o que pode acontecer quando uma polarização se impõe e perdura. Eu acho que um pacto democrático seria a única saída para esta situação, essa armadilha. Havendo esse pacto entre as forças de esquerda e direita democráticas, dá para se deixar de fora os antidemocráticos. É preciso fomentar o diálogo, procurar entender e abrir espaço para o diferente. Aprender a escutar e promover escuta. É muito difícil construir um pensamento coletivo se, mesmo com diferenças à direita e à esquerda, os que temos uma vocação sinceramente democrática não conseguirmos acordos básicos. Tem alguém querendo tacar fogo no circo, não podemos deixar. Se o circo queimar, estamos todos incinerados.