segunda-feira, 28 de outubro de 2013

O ovo de Colombo - LUIZ CARLOS AZEDO


CORREIO BRAZILIENSE - 28/10

O que está em jogo é o futuro de 50 milhões de jovens. Pelas próximas duas ou até três décadas, formarão o maior contingente de mão-de-obra lançado ao mercado de trabalho da nossa história.

A “focalização” dos gastos sociais nos mais pobres é o ovo de Colombo da Era Lula. Política de origem social-liberal, foi adotada para contrabalançar o ajuste fiscal nas políticas públicas universalistas, ou seja, na educação, na saúde, nos transportes, nas moradias e na segurança pública, que estão subinvestidas desde o Plano Real. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pôs o ovo em pé no primeiro mandato, ao determinar que o Bolsa Família fosse distribuído para 13,8 milhões de lares, ou seja, mais de 50 milhões de pessoas.

Com isso, o imponderável nas eleições presidenciais — o voto de milhões de excluídos, que levou o então candidato Fernando Collor de Mello ao poder em 1989 e elegeu Lula em 2002 — deixou de ser um lastro móvel no processo eleitoral. Tornou-se a base mais estável do governo, que garante o favoritismo da presidente Dilma Rousseff nas eleições de 2014 e projeta a permanência do PT no poder.

A injeção de recursos do Bolsa Família no orçamento doméstico, as aposentadorias rurais e a elevação do salário mínimo reduziram as desigualdades sociais no Brasil e ampliaram o mercado interno. O esperneio de setores da oposição contra o assistencialismo é inútil. Esses programas estão hoje entre as coisas “imexíveis” do país, principalmente do ponto de vista eleitoral. Haja vista, por exemplo, a confusão criada pela Caixa Econômica quando antecipou a data de depósito dos recursos do Bolsa Família, fato que provocou uma onda de boatos de que o programa estava sendo extinto.

As prioridades, porém, mudam na medida em que vão sendo atendidas. A última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), divulgada pelo IBGE, mostrou que as desigualdades no país já não estão sendo reduzidas pelos programas de transferência de renda como se pretendia. Para prosseguir no combate à pobreza e melhorar a qualidade de vida da população, as políticas universalistas de educação, saúde e transportes estão na ordem do dia. Desde junho, são objeto de protestos diários por todo o país, que sempre terminam com cenas de violência. Uma parcela significativa da população não está nada satisfeita com as atuais condições de vida, os mais revoltados perdem a cabeça.

Na verdade, o que está em jogo é o futuro de 50 milhões de jovens. Pelas próximas duas ou três décadas, formarão o maior contingente de mão de obra lançado ao mercado de trabalho da nossa história. Para esses jovens, principalmente os mais pobres, o Bolsa Família já deu o que tinha que dar. Eles não querem viver como seus pais. Querem educação de qualidade e bons empregos. No Brasil, apenas 11% da população de 25 a 34 anos têm ensino superior completo, enquanto no Canadá, chegam a 56%, e nos EUA, 40%. O México tem 20%. E eles querem mais: transporte barato (ou de graça) e eficiente, assistência à saúde para suas famílias, moradias dignas. Além de segurança para sair de casa. Essa agenda precisa sair do papel, mas o cobertor é curto para atendê-la. Com a economia travada, sua execução ficará para o próximo governo. Ovo de Colombo não resolve isso.

Maurício Azêdo
Não sei nem o que dizer... A morte de meu tio Oscar Maurício de Lima Azêdo, presidente da ABI, deixou um vácuo de liderança política no jornalismo brasileiro. Ele foi um campeão das lutas pela liberdade de imprensa e pelo direito de expressão. Pôs a entidade acima das paixões partidárias e dos interesses corporativos. Sua trajetória profissional e política, pela qual foi muito perseguido durante o regime militar, explica o papel que exercia na entidade.

As chances de Dilma Rousseff - RENATO JANINE RIBEIRO


VALOR ECONÔMICO - 28/10
Dilma Rousseff tem chances. Não, não estou falando de se reeleger em 2014; ela hoje é favorita. O que me pergunto...
Dilma Rousseff tem chances. Não, não estou falando de se reeleger em 2014; ela hoje é favorita. O que me pergunto é se tem chances de, ao fim de quatro ou oito anos na presidência, ter efetivado mudanças de que o Brasil precisa. Falo em mudanças sociais. Muitos, quando falam em mudanças, destacam reformas econômicas, que facilitem o ambiente para os negócios. Estas são importantes, mas são meios para realizar fins. Num país como o Brasil, cuja população finalmente exige, e cada vez mais, os serviços públicos de que deveria gozar faz muitos anos, a questão é quem vai realizar esse desejo.
Não estou convencido de que haja só uma rota para uma democracia que funcione. Há países que o conseguiram com uma intervenção maior do Estado na economia; outros, com a desregulamentação da atividade econômica. O sucesso de um caminho ou outro depende de vários fatores. Destaco dois. Primeiro, a cultura do povo. Aqui, não faço juízo de valor. Apenas observo que os Estados Unidos e alguns outros países têm uma tradição do empreendimento individual, que resulta em ganhos sociais. Na França e na Europa continental, vigora uma cultura diferente. Ambas deram resultados muito bons.

O segundo fator é a conjuntura. Mesmo os Estados Unidos tiveram seu tempo de forte intervenção do Estado - e foi uma das épocas decisivas de sua história, sob Franklin Roosevelt, que tirou o país da recessão iniciada em 1929 e o conduziu na guerra contra o nazismo. No Reino Unido, que desde Thatcher segue uma relação mais norte-americana entre o poder político e o mercado, a grande mudança se deu no imediato pós-Segunda Guerra Mundial, quando os trabalhistas fizeram da estatização das decisões econômicas, necessidade imposta por Churchill durante a guerra, virtude.

O que decidirá seu governo é a melhora dos serviços públicos

Não bastam a cultura de um povo, seus valores, o modo como ele dá o melhor de si, e que pode ser individualista ou coletivo, atuando mais na economia ou na política. Há também o momento histórico. Articular a linhagem cultural que vem de longe e o instante em que se dá a política é o desafio do líder.

Não dou por resolvida a eleição do ano que vem. Mas cabe perguntar: pode Dilma ser uma grande presidente?

Ela teve a sorte e o azar de suceder a dois presidentes que estão entre os melhores que tivemos, numa lista de quatro que inclui Getúlio e Juscelino. Com FHC e Lula, consolidou-se a democracia. Um golpe militar é fora de questão. Essa, a sorte de Dilma, sua herança bendita.

O seu azar: eles são grandes líderes políticos, enquanto o mérito dela sempre esteve na gestão. FHC é um grande comunicador. Líder no Senado, dizia-se que ganhava as questões no gogó , na fala. Presidente, ele persuadia. Conquistou a classe média, ao passo que Lula, que além disso é um líder carismático, estendeu a comunicação política aos mais pobres. FHC pela razão ( mas uma razão no nível do senso comum , como ouvi dele há três anos), Lula pelas metáforas e a emoção, ganharam apoio político para projetos difíceis e necessários - a estabilização monetária, a escolha entre privatização e estatismo, a inclusão social. Seus ministros, Sergio Mota e Dilma Rousseff à frente, executaram.

Dilma passou de gerente ou gestora a presidente. É uma transição difícil. Mas é mais normal termos um presidente normal do que um gênio na comunicação. Faz parte de nosso amadurecimento não precisarmos, cada quatro anos, eleger um presidente que sabe vender, à sociedade, os valores. Uma das tarefas dela é efetuar essa passagem do tempo de exceção para o tempo da normalidade.

O que o Brasil agora quer, aquilo de que precisa, é um Estado que funcione, garantindo que os serviços que ele presta ou fiscaliza tenham qualidade. Conseguimos o restante. Nossas eleições são limpas - mais até que as norte-americanas, pois lá, em 2000, deram posse a um candidato eleito pela fraude. A miséria está baixando. Quando mais pessoas se sentem integradas na sociedade, elas sentem que têm algo a perder, e valorizam o que existe. Mas por que isso não se expressa na consciência das pessoas? Por que é mais fácil tantos se dizerem contra tudo o que está aí do que reconhecerem o quanto foi conquistado, e construir a nova etapa de nossa democracia?

Paradoxalmente, um dos êxitos de nossa democracia é que ela liberou a exigência. Antes, direitos eram uma questão mais teórica. Quando tantos eram privados de tanto, eles sequer se sentiam com direito a ter direitos , tema central dos direitos humanos, entre nós desenvolvido por Celso Lafer. Por isso, é natural que tantas pessoas exijam, pacifica ou mesmo violentamente, educação, saúde, transporte e segurança públicos de qualidade. Aqui entra a gestão. Dilma Rousseff tem um histórico de gestora. Atender essas novas demandas não é fácil. A primeira resposta de qualquer gestor, seja o prefeito Haddad do PT, seja o governador Alckmin do PSDB, é que falta orçamento. Acredito. Mas terão de fazer milagres.

A bola da vez está com Dilma. Ela tem um ano para mostrar alguns resultados visíveis. É pouco tempo, mas desta vez parece que, mais do que a comunicação ao estilo FHC ou Lula, o que se quer é algo bem tangível no dia a dia dos serviços de responsabilidade do Estado. Será reeleita mais facilmente se demonstrar alguma melhora. Em 2018, suponho que a conta será mais alta. A sociedade, melhor dizendo, o eleitorado de maioria pobre vai querer resultados bem superiores. É um jogo em dois tempos. O aviso foi dado. Seja quem for eleito em 2014, precisará ir longe nessa questão.

Minha vida, meu negócio - EUGENIO BUCCI


REVISTA ÉPOCA

A barulheira gerou um fio de esperança. A reação exaltada contra as declarações de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, para quem os livros biográficos só podem ser publicados mediante autorização dos biografados, foi finalmente ouvida na Câmara dos Deputados. Na semana passada, parlamentares prometeram acelerar a aprovação do projeto de lei que altera o Código Civil para impedir a censura às biografias. Quando tudo parecia sem saída, quando até Chico Buarque, Gil e Caetano, símbolos da causa democrática, cerraram fileiras contra a liberdade de expressão, eis que desponta uma centelha no fim do longo túnel. Depois da treva, uma luz (ao fim da tempestade). Às vezes, a esperança é a última que nasce.

Se os deputados cumprirão a palavra, bem, isso é outra história (outras biografias). Mas uma esperança nasceu. Falta agora nascer a clareza. É realmente incrível. Falou-se tanto, escreveu-se tanto, bateu-se tanto em tantos por tantas semanas, e o entendimento sobre o que está em jogo ainda é tão pouco. A gritaria toda, que ajudou a quebrar a inércia pétrea do Congresso Nacional (ao menos é o que esperamos), não nos trouxe compreensão sobre o verdadeiro impasse.

Não estamos às voltas com forças do mal, que pretendem restaurar a ditadura militar no Brasil. Sim, há quem queira isso.

Mas Caetano, para tomar um exemplo, não é censor nem reacionário. Ele é um democrata, como seus amigos. O problema é que ele defende outra lógica - e essa lógica entra em choque com a democracia. E é sobre isso que deveríamos pensar.

Desde que o inglês John Milton, ainda no século XVII, afirmou o direito fundamental do cidadão de publicar o que bem entender, sem ter de pedir licença ao poder, a livre circulação do pensamento se tornou um dos alicerces das sociedades livres. Primeiro, cada um expressa o que julgar necessário. Depois, apenas depois, responderá pelos excessos que cometer. Acontece que, de uns tempos para cá, o mundo começou a ficar esquisito. Há, hoje, legislações restritivas em toda parte, até no Reino Unido e na França. Não sabemos resolver a contradição entre os direitos fundamentais dos cidadãos, como o direito à informação e à liberdade de expressão, e outros direitos, como à privacidade, que a lei assegura também a todos - e vale dinheiro. A privacidade tem valor econômico. Aí é que está o ponto-chave – e o ponto chato, pois os artistas no Brasil adoram fingir que não pensam no vil metal.

Os ídolos do cancioneiro popular, esses poetas que escreveram as trilhas sonoras de nossa parca existência, não são inimigos da ordem democrática. São gente boa. Apenas estão defendendo o deles. Eles não lutam exatamente pelo resguardo, pelo recolhimento, pelo segredo íntimo. Não se mobilizam pela privacidade neutra, mas pelo direito de ganhar dinheiro quando suas intimidades se tornam públicas. Eis o ponto-chave - e chato.

Nada de errado com isso. Trata-se de um direito deles. Um direito, aliás, de qualquer um, seja pop star, cantor, jogador de futebol ou dona de casa. Se alguém quer transformar sua biografia em entretenimento de massa e faturar com isso, tem o direito de fazê-lo. Reality shows, programas de auditório e revistas de fofoca vivem da exploração das intimidades, assim como, recentemente, começaram também a viver disso as campanhas eleitorais e as igrejas que oferecem milagres pela televisão. Intimidades luxuriantes ou degradantes valem ouro e podem ser compradas pelo ouro.

Ora, se é assim, então, raciocina o advogado da celebridade, por que um reles jornalista pode querer ganhar o dele em cima dos lances encantadores, inspiradores, traumáticos e fascinantes de meu cliente? O ponto é realmente chato.

Para um astro do showbusiness, e principalmente para o advogado dele, os lances de sua vida são parte da obra. Ele vende mais ou menos CDs, atrai mais ou menos fãs para os seus shows, à medida que faça isso ou aquilo na vida privada. Se a cantora anuncia que se casará com outra mulher, agrega um novo "market share" a sua estratégia comercial. Aí, se revelarem que o matrimônio gay foi um jogo de aparência, o faturamento despenca. A receita bruta do cantor romântico depende da exposição estratégica de sua privacidade. A arte também tem seus modelos de negócio.

Estamos vendo de perto, enfim, a contradição entre mercado e democracia. Para faturar mais com suas biografias, algo legítimo, nossos grandes poetas pensaram que poderiam suprimir o direito à informação de todos os demais. Aí é que não deu pé. Quando mercado e democracia entram em choque, a segunda deve prevalecer.

Reforma do ICMS já - BERNARD APPY


 Estado de S.Paulo - 28/10

Nos últimos dias uma série de movimentos de agentes políticos reacendeu a esperança de que seja aprovada, ainda este ano, uma reforma do ICMS que discipline a guerra fiscal entre os Estados e elimine um importante fator de insegurança jurídica para as empresas brasileiras.

Por um lado, no dia 17 de outubro, 24 dos 27 secretários estaduais de Fazenda, reunidos no Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), votaram a favor de um convênio que legalizaria os incentivos fiscais do ICMS concedidos ilegalmente pelos Estados ao longo dos últimos anos, bem como disciplinaria sua progressiva extinção num prazo de até 15 anos. Como as decisões do Confaz só têm validade se aprovadas por unanimidade, ainda não foi desta vez que se resolveu o problema da guerra fiscal (ficaram faltando os votos de Santa Catarina, Goiás e Ceará).

Por outro lado, o presidente do Senado Federal anunciou que pretende colocar em votação, na segunda semana de novembro, dois projetos: 1) um projeto de Resolução que reduz as alíquotas interestaduais do ICMS; e 2) um projeto de lei complementar que cria um novo Fundo de Desenvolvimento Regional (FDR) e um Fundo de Compensação de Receitas (FCR), para compensar os Estados que eventualmente venham a ter perda de receita com a redução da alíquota interestadual.

Os três dispositivos mencionados acima - convênio do Confaz, Resolução do Senado Federal e Lei Complementar - constituem uma importante reforma do ICMS e estão vinculados entre si. De fato, cada um dos dispositivos só entrará em vigor se os outros dois forem aprovados.

A grande dificuldade para a aprovação desta reforma do ICMS tem sido a persistência de posições divergentes entre os Estados sobre o tema. Embora ainda não se tenha chegado a um consenso, o fato de 24 Estados terem votado a favor da mudança é um indicador de que um acordo é possível. De fato, se o Senado aprovar a Resolução que reduz as alíquotas interestaduais e o Congresso aprovar o projeto de lei complementar que cria o FDR e o FCR, a pressão para que os Estados aprovem o convênio que disciplina o fim da guerra fiscal será muito grande.

Para entender a importância das mudanças que estão sendo discutidas, vale a pena fazer uma rápida apresentação sobre as origens e as consequências da guerra fiscal do ICMS.

Segundo a Constituição federal e a legislação em vigor, incentivos fiscais do ICMS só podem ser concedidos se forem aprovados por unanimidade pelos secretários estaduais de Fazenda reunidos no Confaz.

Desde o final dos anos 80, no entanto, tornou-se prática comum a concessão de incentivos fiscais pelos Estados sem a aprovação do Confaz. No início, a concessão de benefícios era localizada e praticada apenas pelos Estados menos desenvolvidos. Apesar de esses benefícios serem ilegais, como seu alcance era limitado, não foram questionados pelos demais Estados e, portanto, implicitamente aceitos.

Essa leniência inicial com os benefícios ilegais teve consequências trágicas, pois a concessão de incentivos fiscais pelos Estados sem aprovação pelo Confaz se generalizou, e mesmo os Estados mais ricos começaram a conceder benefícios ilegais. Neste ambiente, a guerra fiscal se generalizou e hoje todos os Estados concedem benefícios ilegais.

Apenas há alguns anos começou a haver uma reação mais efetiva aos benefícios ilegais. O Supremo Tribunal Federal (STF) passou a julgar ações contra os benefícios, na grande maioria dos casos declarando sua inconstitucionalidade e, inclusive, determinando que as empresas que receberam incentivos paguem o valor recebido indevidamente relativo aos cinco anos anteriores.

Essas decisões do STF não têm, no entanto, conseguido conter a guerra fiscal. Por um lado, os Estados cujos benefícios foram revogados pelo STF editam nova legislação - quase igual à que foi revogada - restabelecendo benefícios praticamente iguais aos que foram declarados inconstitucionais. Por outro lado, os Estados vêm encontrando formas de não cobrar das empresas o valor correspondente ao benefício recebido nos cinco anos anteriores (inclusive com anuência do Confaz).

O STF parece, no entanto, estar chegando ao limite de sua paciência com a guerra fiscal, e ameaça editar uma súmula vinculante, que tornaria os processos contra os benefícios muito mais rápidos e, provavelmente, evitaria a reedição dos benefícios, como vem sendo feito pelos Estados.

Para as empresas que receberam benefícios, a situação é de grande insegurança jurídica, pois não sabem se manterão os incentivos nem mesmo se terão de pagar pelos valores recebidos nos últimos cinco anos. Essa insegurança jurídica certamente vem prejudicando os investimentos no País nos últimos anos, dificultando o crescimento.

Aliás, a guerra fiscal prejudica o crescimento de outras formas. Em particular, quase sempre os incentivos são concedidos pelos Estados de forma a atrair empresas que, na ausência deles, se instalariam em outros Estados - mais próximos dos fornecedores ou do mercado consumidor. A consequência é que uma grande parte dos benefícios (talvez a maior parte) é absorvida na forma de maior custo de logística, contribuindo para sobrecarregar ainda mais a já deficiente malha de transportes do País.

Neste contexto, embora a redução da carga tributária resultante dos incentivos seja positiva para cada empresa tomada individualmente, o impacto para a economia como um todo é uma menor eficiência e um menor crescimento.

As medidas que estão sendo discutidas pelo Senado e pelo Confaz estão longe de ser as ideais, mas pelo menos apontam para uma saída para o imbróglio atual, eliminando a insegurança jurídica das empresas e disciplinando a gradual redução dos incentivos da guerra fiscal, até sua completa extinção em 15 anos. É um passo importante, ainda que incompleto, para resolver um problema que certamente tem prejudicado o crescimento do Brasil.

Os Arquimedes de araque - LÚCIA GUIMARÃES


O Estado de S.Paulo - 28/10

"Estamos tentando mudar a maneira como a polícia se vê e como a comunidade vê a polícia." Vestida com o uniforme da Polícia Militar carioca, Vanessa Coimbra Cavalcanti falava a uma plateia em Nova York, a convite do Instituto Google Ideas, ao lado do diretor do Instituto Igarapé, Robert Muggah. Três horas antes, a policial carioca tinha sido indiciada com mais 14 colegas por envolvimento na tortura e assassinato do pedreiro Amarildo de Souza, na favela carioca da Rocinha.

Vanessa leu um texto escrito num inglês impecável que sugere a redação, quem sabe, de seu companheiro no programa. Já Vanessa lutava para pronunciar as palavras que seu ghost writer lhe tinha destinado na apresentação. A Polícia Militar carioca disse que o Instituto Igarapé escolheu Vanessa porque ela é a única na UPP da Rocinha que fala inglês. O Igarapé é uma ONG especializada em policiamento e segurança e se associou ao Google para desenvolver o aplicativo Smart Policing, que coloca celulares com câmeras gravando no bolso de policiais para, como explica em seu site, promover a transparência do policiamento.

Sob os aplausos para Vanessa de uma plateia que devia desconhecer a Rocinha e o caso Amarildo, Robert Muggah começou sua apresentação e disse que trabalha com ela e com a UPP da Rocinha há um ano. Pediu que os presentes primeiro prestassem atenção em um vídeo que mostrava pelo menos duas pessoas sendo agredidas por policiais militares na frente de várias testemunhas. Há uma confusão, mal capturada pelo que parece ser um celular. Muggah informa que o vídeo, feito em janeiro, logo teve mais de 30 mil hits no YouTube. "Vemos que a tensão aumenta", ele continua. "O que está acontecendo? O vídeo coloca mais perguntas do que respostas? Quem começou o incidente? De quem é a culpa? O que aconteceu antes e depois? Podemos tirar conclusões só por alguns segundos de vídeo?" Muggah parece lamentar que as cenas corram o Brasil e o mundo. Continua com uma platitude sobre as mídias sociais terem se tornado a nova ferramenta de protesto digital: "Incidentes complexos são reduzidos a clips de um minuto como este", diz ele, concluindo que esta forma de disseminação é perigosa, "pode custar vidas". Muggah passa imediatamente a promover o programa Smart Policing, copatrocinado por seu anfitrião em Nova York, sob o olhar de aprovação de Vanessa.

O perigoso vídeo de um minuto que ele exibiu não é explicado. Não se sabe onde ocorreu, quem apanhou e "de quem é a culpa". Se houve, de fato, vítimas de uma violência, isto não vem ao caso.

O momento ilustra mais do que a tragédia de Amarildo e o vexame para o Instituto Google Ideas, que plantou, num seminário que se quer iluminado, uma policial envolvida num crime hediondo só investigado depois de semanas de protestos convocados na, hum, mídia social. A omissão do caso Amarildo pelo sofisticado Muggah não é esquecimento, claro. É, para traduzir um útil adjetivo inglês que não temos, "desingênua".

O momento ilustra um fenômeno crescente, criado pelo número reduzido de corporações que controlam a nova economia: o da tecnologia como uma câmara de eco sem oxigênio suficiente para dar vida a contexto histórico, social, econômico ou ético. A solução para a violência policial é mais tecnologia. Não há angústia individual ou coletiva que não possa ser amenizada se você assistir a uma conferência TED. A aplicação do know-how de Hollywood e do Vale do Silício para transformar ideias em espetáculos empacotados permite o encontro, no mesmo recinto, da policial indiciada num caso de tortura e morte e de empresários que se consideram benfeitores.

O lema da ONG Ted é "Idéias que merecem ser espalhadas". O do Google Ideas é "como a tecnologia pode ajudar as pessoas a enfrentar ameaças diante de conflito, instabilidade e repressão". Será que o gigante tecnológico empresta o slogan para as vítimas da instabilidade e da repressão criadas pela explosão da espionagem com a cumplicidade das companhias como o próprio Google?

Com o declínio do intelectual público, o desmonte da hierarquia da mídia analógica que selecionava, para o bem ou para o mal, as vozes com autoridade para discorrer sobre questões - do Estado Palestino à desnutrição infantil -, temos uma confluência do debate como entretenimento. E ninguém vai a um show para decidir se a liberdade de expressão e o direito à privacidade são forças opostas.

Tim Cook, o herdeiro de Steve Jobs, Jeff Bezos e Mark Zuckerberg anunciam novos produtos com a pompa de um aspirante à presidência. A publicidade vende produtos, mascarando suas imperfeições e até seu potencial nefasto. "Adoramos inventar", diz o sub-carismático Jeff Bezos no show de lançamento de mais um Kindle. "Você pode ver o que está acontecendo com seus amigos", diz o esquisito Mark Zuckerberg, com a auto-importância de quem anuncia um tratamento para a malária. Hoje, corporações não vendem gadgets e sim santimônia. Um momento de heureca? Sim, mas de Arquimedes do obscurantismo.

domingo, 27 de outubro de 2013

Perdas - HUMBERTO WERNECK


O Estado de S.Paulo - 27/10

"Por que Deus é horrendo em seu amor?", indagou Drummond, petrificado ante a santa sem nariz que fazia milagres. É o que também eu, com minha prosa chinfrim, me pego outra vez perguntando, em face de duas perdas recentes.

Não, não acabo de descobrir que por aqui se nasce e se morre, como qualquer outro bicho; a esta altura dos acontecimentos, não tenho direito de me espantar com a gratuidade, com a ausência de sentido do perpétuo nascer e morrer a que alguém, a que alguma coisa nos condenou. Mas não me canso de me espantar com a insondável desrazão com que opera a máquina de engendrar e triturar criaturas. Não me canso também de me indagar por que injusto critério um retalho da superfície da Terra vira praça da Étoile, em Paris, espalhando raios e beleza a partir do Arco do Triunfo, enquanto a outro cabe ser algum infecto chão de favela.

Infantilidade de senhor maduro a deblaterar diante do inelutável? Pode ser. O fato é que aqui estou escalavrado pela supressão de dois amigos, levados de mim não com os bons modos que se poderia esperar de um deus misericordioso, não com a delicadeza que lhes era própria, não com a justiça pela qual lutaram sempre, mas com os safanões do que Manuel Bandeira chamaria de "morte de mau gosto", lenta e perversamente roídos por pavorosos sofrimentos. Diria meu tio Jorge, ateu de imenso coração: "Mais uma sacanagem do bom Deus..."

Não era isso o que merecia a Mariângela, em minha vida desde os nossos longínquos 20 anos, que desde o começo me habituei a ver devotada também à causa do bem estar dos animais. Aposentada na universidade, nem por isso sossegou. Em meio a empreitadas esparsas - como ajudar, com seu saber de linguista, na feitura do dicionário Houaiss -, pelo menos uma vez por semana a minha amiga, carregada de provisões, pegava em Copacabana um ônibus para a Ilha do Fundão, onde a troco de nada ia providenciar saúde e conforto para cães e gatos abandonados.

Miúda, magrinha (um "chaverinho", disse dela nosso amigo Arildo), a Mariângela topava as paradas mais bizarras que eu lhe propusesse. Certa manhã de inverno, visitou comigo o cemitério de São João Batista, aonde fui em busca do túmulo de Jayme Ovalle, cuja biografia estava escrevendo. No táxi de volta, percebi que ela, curvada sobre si mesma, trazia no colo algo que tentava ocultar de mim - e quando aceitou desfazer a trouxa em que se transformara seu casaco, de lá surgiu um gatinho recolhido entre sepulturas, um a mais para o populoso gatil em que ela convertera seu apartamento.

Nos últimos anos, brotou-lhe um câncer que, aparentemente vencido, retornaria à toda, para roubar-lhe em sucessivos golpes os cabelos e a capacidade de engolir, de falar e de andar, e enfim, quando já nada lhe restava além de uns poucos quilos, a vida. Alguma cruel força superior, se existe, a fez passar - o verso é de Libério Neves - pela "final humilhação do corpo, essencial talvez à filtração da alma". Mas que nódoas tão grandes teria a alma dessa criatura que justificassem tão medonha purgação?

Também não me parecia em débito com os Céus o amigo Antonio Maschio, ator e produtor cultural, sobretudo animador da vida ao seu alcance. Sabe disso, por exemplo, quem conheceu o Spazio Pirandello, bar, restaurante, antiquário e livraria, festivo fervedouro que ele e o jornalista Wladimir Soares fizeram borbulhar na noite paulistana dos primeiros anos 80, e onde, entre muito riso, suor e adrenalina, germinaram projetos ousados e generosos como a campanha das Diretas.

Quem diria que a usina de alegria chamada Antonio Maschio haveria de pagar as penas que pagou, e por tempo ainda mais prolongado que a Mariângela? Ei, Você aí, desde sempre sentado nessa nuvem, eu não consigo entender Sua lógica. Já me vali de três poetas, quatro agora com o Caetano, para que falem por mim o que não dou conta de dizer, e recorro a mais um, ao grande e tão escassamente conhecido Abgar Renault, sangrando na perda de um filho jovem: "Tombo, Senhor, submisso mas inconformado na desesperança / e não Te reconheço na cruel desnecessidade da Tua lança."

Coitado do homem - FABRÍCIO CARPINEJA

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ZERO HORA - 27/10

Um dos impasses masculinos no casamento é conciliar a porção macho protetor e a porção criança feliz.

Porque sua mulher ama quando você é adulto, seguro, firme, decidido, capaz de resolver crises e contas, dar colo e acalmar, dizer que tudo vai dar certo com a voz resoluta de radialista.

A mulher ama e espera ser amada desse modo. Com alguém disposto a oferecer segurança e sentido, com o peito maior do que o travesseiro, para aninhar e resguardar cheiros e futuro. Com um homem que acaricie seus cabelos em silêncio, sem que ela descubra o que ele está pensando.

Mas, se o homem está feliz ao lado da mulher, será uma criança. Eis o grande problema da dinâmica de casal: se a mulher faz o homem feliz, ele será uma criança, daí é ela que ficará descontente. Parece que precisa deixar o homem preocupado para ser feliz, mesmo que resulte na tristeza dele.

Homem bom para a ala das noivas é melancólico, aborrecido, casmurro, fortaleza enigmática, caixa com senha numérica e alfabética.

Já um homem realizado é livre como um campo de futebol num dia ensolarado. Muda seu riso, seu olhar brilha, seu rosto se amplia e se torna uma matraca. Transforma-se num bobo carente, disposto a fazer troça de qualquer assunto. Não leva coisa alguma a sério. Debochado, hiperativo, como se estivesse arremessando aviãozinho ainda do fundo da sala de aula. Vai apertar, morder, empurrar, beliscar, incomodar, perturbar, série de movimentos proibitivos da fantasia feminina.

Nos momentos de euforia do namoro, reproduz a descontração com seus amigos: em especial na pelada e no boteco. Um churrasco entre barbados exemplifica sua felicidade: os participantes só vão confidenciar bobagens e besteiras sobre sexo e carreira. A frequência estará desembaraçada, ingênua, afeita a piadas, gafes e fraquezas cômicas.

Homem brinca de brigar, mulher quando briga não gosta de brincar, entende a diferença? É um cacoete ancestral, egresso do jardim da infância. No recreio, o homem fingia guerra com os colegas para mostrar apego. Por sua vez, a mulher se divertia em montar casinha, em estabelecer ordem e hierarquia nas emoções e afetos.

A questão é que a mulher não ama quando seu marido se infantiliza, porém é quando ele está mais à vontade. É quando ele verdadeiramente está amando. A mulher é seduzida pela imagem do homem tenso e guardião, e não suporta o menino enfeitiçado pelo encantamento da relação.

Na realidade, a mulher se irrita quando sua companhia assume ares de palhaço, ou de louco. Julga comportamentos hostis, que não inspiram nenhuma confiança. Despreza essas demonstrações circenses de disputa. Tente derrubá-la na cama fora do clima sexual, que ela ficará puta da vida.

Odeia quando seu marido se mantém hipnotizado assistindo uma partida da Série C, ou na medida em que inventa de jogar playstation e perde a hora ou ainda começa a jogar bolinha dentro de casa e quebra objetos. Odeia sua birra e manha, seu timbre de desenho animado, suas miradas tristonhas de chantagem.

A mulher jamais vai nos entender. Portanto, você tem que alternar com sabedoria os dois momentos. Este é o ponto delicado: encontrar a medida. Ser os dois ao mesmo tempo sempre, e nunca exageradamente.

Nem ser demais um, nem deixar de ser o outro.

Nem ser pai demais da esposa, nem ser seu filho.

Rentistas


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Desde tempos imemoriais sabe-se que grupos sociais com interesses comuns tendem a associar-se para, através do governo, extrair rendas imerecidas que geram ineficiência produtiva e têm seus custos diluídos por toda a sociedade. A diferença específica que as caracteriza é que elas não são obtidas nos mercados (onde há uma contrapartida do trabalho para obtê-las), mas no universo político, em troca de votos. Desde meados dos anos 60 os economistas têm dedicado muita atenção a tal fenômeno. Em 1974 foi batizado como "caçada à renda", por Anne Krueger.
Os "caçadores de renda" vivem comodamente entre nós sem serem percebidos. São os que obtêm: 1) proteção tarifária exagerada; 2) benefícios fiscais duvidosos; 3) empréstimos a taxas de juros negativas; 4) privilégios corporativos como servidores públicos dos três Poderes e das poderosas empresas estatais; 5) regulamentação duvidosa que finge proteger o consumidor, mas protege, de fato, o prestador de serviços; 6) contratos de concessão através de corrupção; 7) estranhos benefícios como os de "organizações não governamentais" ligadas a partidos políticos e financiadas pelo governo; 8) renda protegida pela correção monetária automática etc. A lista já é longa, mas longe de ser exaustiva.
É preciso dizer que os beneficiários dos programas civilizatórios de combate à miséria e à desigualdade, que sempre podem ser aperfeiçoados, não se enquadram nessa categoria.
Pois bem, uma das hipóteses de causalidade mais fortes para explicar a queda do interesse dos governos de engajarem-se seriamente em reformas estruturais, sem as quais não há desenvolvimento econômico no longo prazo, é que elas têm um custo elevado no curto prazo para os "caçadores de renda" bem sucedidos que conseguem apropriar-se de renda indevida graças à proteção do poder incumbente.
A hipótese causal é plausível. Por um lado, os benefícios das reformas estruturais se fazem sentir ao longo de alguns anos --talvez maior do que um mandato--, são difusos e não conseguem cooptar uma massa crítica para realizá-los. Por outro, os prejuízos para os "caçadores de renda" são concentrados e eles podem facilmente mobilizar, para defendê-los, as forças políticas que elegeram. É por isso que para enfrentá-los é preciso uma liderança firme que exponha com coragem os "caçadores de renda" e acorde a sociedade para os efeitos dessa extração que de forma quase invisível consome indevidamente os recursos para o seu desenvolvimento.
Não se trata, como alguns ingênuos acreditam, de grande batalha "ideológica", mas de comezinho interesse material: apropriar-se de recursos que a sociedade desavisada lhes transferiu sem perceber!
Antonio Delfim Netto
Antonio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda (governos Costa e Silva e Médici), é economista e ex-deputado federal. Professor catedrático na Universidade de São Paulo. Escreve às quartas-feiras na versão impressa da Página A2.

O mundo encantado da Doutora Dilma - ELIO GASPARI


O GLOBO - 27/10

No Brasil encantado em que vive o Planalto, as obras do trem-bala estariam adiantadas e ele rodaria em 2016, para a Olimpíada. Felizmente, continua no papel. Depois do Enem deste fim de semana haveria outro (ou já houvera). Infelizmente, foi só promessa da doutora Dilma e do ministro Fernando Haddad. Seu substituto, o comissário Mercadante disse que prefere gastar construindo creches. Por falar em creche, durante a campanha eleitoral a doutora prometeu mais seis mil (quatro por dia). Em abril ela disse o seguinte: "Queremos mais, muito mais. (...) Vamos chegar a 8.685 creches." A repórter Maria Lima fez a conta e mostrou que seria necessário entregar 31 novas unidades a cada dia até julho do ano que vem (13 por dia até o fim do governo). A doutora zangou-se: "Minha meta é 6.000 creches. Quem foi que aumentou para 8.000?" Ela.

Sua conta era a seguinte: em abril, havia 612 creches prontas, 2.568 em obras e 2.117 contratadas. Somando, chegava-se a 5.397. Se obras em andamento e contratadas são obras concluídas, 2010 foi um grande ano. Terminaram-se as obras da refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, e as águas do rio São Francisco foram transpostas. Promessas.

Para ficar na conta da meta de campanha, admitindo-se que a doutora já entregou 3.000 creches, até o fim do seu mandato precisa entregar pelo menos oito por dia.

O mundo encantado do Planalto desencadeia uma compulsão mistificadora. Se o governo terminar só 4.000 creches, atire a primeira pedra quem acha esse programa um fracasso. Será um grande resultado, que partiu de uma promessa exagerada. Trocando o mundo real (a obra entregue) pelo virtual (a promessa, ou o contrato), o comissariado intoxica-se numa euforia que desemboca na irritação. A última bruxaria do encantamento partiu da doutora Magda Chambrard, diretora da Agência Nacional do Petróleo. Ela anunciou que nos próximos 30 anos o campo de Libra renderá R$ 1 trilhão. Em maio passado a mesma doutora disse que "gostaria de ter mais Eikes" no setor petrolífero. Uma semana depois, começou o inferno astral de Eike Batista e de quem acreditou nele.

O encantamento desenvolve nos governantes uma síndrome de sítio, como se o mundo estivesse contra ele. De onde Maria Lima tirou a referencia às 8.000 creches? De uma fala da doutora.

AVISO AMIGO

Há sinais de que será necessária uma chacoalhada de pessoas e políticas na condução da economia.

Depois da repercussão dos leilões aguados e das dificuldades de Eike Batista, dividem-se os empresários em dois grupos: um torce por um novo quadro, outro quer que fique tudo como está, para continuar tirando fatias do presunto de um governo atrás de credibilidade.

ALSTOM

Ou o tucanato paulista tem uma estratégia capaz de causar inveja ao comissariado petista que pretende livrar seus caciques das penitenciárias pelo mensalão, ou está numa tática suicida, jogando o escândalo do propinoduto denunciado pela Siemens para dentro da campanha eleitoral do ano que vem.

Pelas provas, depoimentos e cifras, esse caso ultrapassa, de longe, o mensalão. Ali não há domínio do fato, o que há são fatos dominantes.

EM SILÊNCIO

A Arquidiocese do Rio tirou a sorte grande por trabalhar em silêncio. Há cinco anos ela fez uma faxina nas suas contas, afastou um padre que administrava seus bens e transferiu para uma casa em São José dos Campos o cardeal Eusébio Scheid, substituído por d. Orani Tempesta. Scheid deixou o apartamento de 500 metros quadrados (R$ 2,2 milhões) que fora comprado no Flamengo. O administrador, padre Edvino Steckel, foi acusado de ter gasto R$ 14 milhões em móveis, carros e enfeites. Em 2010 seu substituto foi detido no Galeão quando embarcava para Portugal com 52 mil euros nas roupas e nas malas.

Agora o papa Francisco detonou publicamente o bispo da Diocese alemã de Limburg, que torrou 31 milhões de euros num palácio episcopal.

JOHN KENNEDY

Começa na semana que vem a avalanche dos 50 anos da morte, no dia 22 de novembro, do presidente americano John Kennedy. Juntando mito e mistério, girará em torno de dois grandes temas: foi Lee Oswald, sozinho, quem o matou? E se ele não tivesse ido a Dallas, como ficariam os Estados Unidos?

O mistério do crime prosseguirá e metade dos americanos continuarão acreditando que houve uma conspiração. Chegará às livrarias a tradução de "11/22/1963", de Stephen King. (Na rede, em inglês, sai por US$ 12,38.) Conta a história de um sujeito que viajava no tempo e foi a Dallas para impedir que Oswald atirasse. Seu melhor momento está na conclusão, escrita com a ajuda de Richard Goodwin, que foi assessor de Kennedy. Ele especula como ficaria o país se a viagem a Dallas tivesse sido cancelada.

Existem 40 mil livros sobre o presidente. Os melhores estão mais para o estilo Roberto Carlos, e a maioria é ruim. Muito acima da média, está na rede por US$ 15,20 o "Camelot's Court - Inside the Kennedy White House" (A Corte de Camelot - Por dentro da Casa Branca de Kennedy"), de Robert Dallek.

Dallek, um moderado devoto da tese segundo a qual os tiros vieram de Lee Oswald, acrescenta mais um "se".

Kennedy teria sobrevivido "se" não estivesse com o colete ortopédico que mantinha-o com o tronco erecto. Por quê? Porque, ao levar o primeiro tiro, que entrou pelas costas e saiu pelo nó da gravata, teria se curvado e o novo tiro não lhe explodiria o crânio.

UMA AULA DE FHC PARA OS COMISSÁRIOS

Em agosto de 1995, na mesma arapuca em que caiu a doutora Dilma, o programa "Café com o Presidente", Fernando Henrique Cardoso disse o seguinte:

"Passados seis meses de governo, eu quero anunciar os primeiros resultados positivos dos esforços que nós estamos realizando para combater uma triste realidade brasileira: a mortalidade infantil. E quero começar falando do município de Jaramataia, que fica lá no interior do Estado de Alagoas. Até o ano passado, 333 crianças, de cada mil que nasciam, morriam antes de completar um ano de idade. De janeiro para cá, este número caiu para 3. Vou repetir, é isso mesmo, caiu para 3 crianças em cada mil."

Lorota do mundo encantado. Três crianças mortas para mil nascidas vivas, nem na Suíça. Esse era o número de mortes por diarreia em Jaramataia, onde a mortalidade caíra de 333 para 249. Quando a fraude foi revelada, a máquina do encantamento mobilizou-se, e uma médica recebeu um telefonema intimando-a a "não deixar o presidente passar por mentiroso".

FHC paralisou a máquina, dizendo mais ou menos o seguinte: "O número estava errado? Então estava errado, e nós não temos que responder à crítica".

No caso da doutora Dilma, o Planalto explicou que entre as 8.685 creches mencionadas por ela havia obras contratadas por Lula. Fica combinado assim.

O alvo duplo - MIRIAM LEITÃO


O GLOBO - 27/10


Tatiana Farah é repórter experiente que não se assusta com pouca coisa. Ela estava na rodovia Raposo Tavares, a 54 quilômetros de São Paulo, ao meio-dia do sábado, 19, cobrindo a manifestação contra o uso de animais como cobaias. O primeiro tiro de borracha raspou sua cabeça. O segundo a atingiu nas costas. Depois, ela apanhou de cassetete, gritando que era repórter e estava ali a trabalho.

Tatiana, do GLOBO, é um dos 100 jornalistas agredidos nos últimos meses. Ainda está de licença médica, com hematomas das agressões a bala de borracha e cassetete. O caso dela foi um ataque, como os outros, totalmente desprovido de sentido.

— Eu estava no acostamento e logo depois da primeira bala, que por pouco não atingiu minha cabeça ou olhos, gritei que era jornalista, várias vezes, mas nada adiantou. Eles atiravam a esmo, em todas as direções. Então um policial veio em minha direção. Ele saiu da pista e foi para o acostamento, onde eu estava. Gritei que era jornalista. Ele puxou o cassetete e me bateu — relata Tatiana.

Tenho ouvido relato de repórteres nos últimos tempos e são sempre assim. A polícia ignora a identificação, ataca manifestantes indiscriminadamente. Tem usado métodos inaceitáveis. Os repórteres têm enfrentado também a hostilidade irracional e inaceitável de manifestantes. Mas há duas diferenças: o número dos repórteres atingidos pela polícia é maior; e a Polícia é paga com os nossos impostos e deveria estar treinada para situações de estresse na rua.

O país inteiro parece despreparado pára o que está acontecendo. As manifestações de junho mostraram o enorme descontentamento diante de vários problemas: a corrupção, a inflação, o colapso da mobilidade urbana, os serviços públicos deficientes. Foi uma dessas explosões inesperadas dos novos tempos digitais onde redes e ondas se formam de maneira rápida e caótica. Interesses difusos e a raiva contida explodem detonados às vezes por um pequeno evento, uma gota d"água. Nas democracias, cabe às instituições entender o que são esses movimentos sociais. E assim fazer avançar a democracia.

Depois de junho vieram os protestos por interesses mais localizados: médicos, professores, protetores de animais. Cada um quis passar sua mensagem,

Na maioria das vezes as manifestações começam pacíficas e, a partir de um momento, a violência da Polícia e de grupos de pessoas com o rosto coberto, atacando policiais ou o patrimônio, transformam as ruas em praças de guerras. Toda violência de manifestante tem que ser contida, mas a Polícia tem errado mais do que acertado. Em vez de contê-los, escala a agressão; em vez de isolá-los, ataca a esmo. E não há mais dúvida: mira a imprensa deliberadamente.

O país está falhando por não entender o momento. Todos temos dever de casa para fazer. Os jornais precisam refletir mais sobre o novo cenário, ouvindo as diversas vozes, iluminando o que está confuso. Além de treinar seus profissionais e protegê-los nesse tempo em que eles vão buscar informação e viram alvo duplo. A Polícia tem que usar inteligência para saber de onde vem e quem são de fato os que escolheram usar métodos violentos. As autoridades têm que parar de lavar as mãos. Está na hora de terem noção do risco que todos corremos.

Nenhuma escalada contra jornalista termina bem. Os jornalistas começaram a ser presos em outubro de 1975. Houve uma sequência de eventos. Até que Vladimir Herzog foi morto no dia 25. Hoje, vivemos em outro momento político, em pleno estado de direito. Mas o que está acontecendo é in-quietante, perturbador e perigoso demais para ser tratado como se fossem eventos isolados.

Houve um momento em que Tatiana, que havia se escondido debaixo de um carro junto com outros manifestantes, saiu e foi até a Polícia. Apresentou-se, disse que tinha se perdido de sua equipe e pediu proteção. Um policial olhou o ferimento das suas costas e disse que ela precisava ir para um hospital, mas recusou ajuda e a mandou sair dali. Para não ser novamente alvo ; da tropa de choque, ela se escondeu atrás de um barranco e viveu uma situação constrangedora:

— Estava com medo, no meio do mato, agachada, escondida como se fosse bandida fugindo da polícia.

É obrigação da boa imprensa olhar criticamente para si mesma e aperfeiçoar seu trabalho. O repórter é apenas o mensageiro e o país precisa muito entender a mensagem desse tempo de ruas tão confusas. 

Quem tem razão na greve do Rio? - SAMUEL PESSÔA


FOLHA DE SP - 27/10

Professores têm o direito de fazer paralisação; na recém-encerrada no Rio, alunos foram os mais prejudicados


Encerrou-se anteontem a greve dos professores da rede municipal pública de ensino do Rio, após mais de dois meses de paralisação. A pauta de reivindicações dos professores vai desde aumentos salariais até o fim da meritocracia.

A Secretaria de Educação propôs aumento salarial real de 8%. Isso leva o salário inicial da carreira de um professor com jornada de 40 horas para R$ 4.390. Este salário é 235% da renda per capita do país e pouco menos da metade do salário médio de um médico, segundo recente trabalho divulgado pelo Ipea (ver a tabela 1 na publicação do Ipea Radar, número 27 de julho de 2013). Segundo o mesmo estudo, a medicina é a profissão mais bem remunerada do Brasil.

O salário de R$ 4.390 vale para os professores do ensino fundamental 2, antigo ginásio, e do ensino fundamental 1, antigo primário --nesse segundo caso, para os que lecionem em regime de 40 horas semanais. Para os professores do fundamental 1, em regime de 22,5 horas, a equiparação salarial com esses dois grupos ocorrerá em cinco anos.

Evidentemente, a valorização da carreira de professor é muito importante. Criar incentivos para que os melhores alunos do ensino médio escolham essa carreira foi um dos segredos do milagre educacional sul-coreano.

Parece que é exatamente esse o caso da gestão da secretária de Educação do Rio, Claudia Costin. O salário inicial no Rio é o maior entre as capitais, com exceção do Distrito Federal, que tem realidade orçamentária excepcional.

Como os dados citados anteriormente demonstram, trata-se de um salário totalmente compatível com a realidade do mercado de trabalho. Inclusive, está documentado em inúmeros estudos que é um vencimento superior ao salário médio pago pelas escolas privadas para as mesmas funções.

O salário inicial de professor municipal no Rio é menor do que aquele pago em outros países simplesmente porque o Brasil é mais pobre do que esses outros países.

Segundo a publicação do Ipea, o salário médio de um engenheiro químico brasileiro em 2010 era R$ 5.800, provavelmente muito inferior também ao que se paga a esse profissional nos EUA ou na Alemanha.

Outro conjunto de reivindicações dos professores do Rio, conhecido pelo infeliz slogan "fim da meritocracia", deseja eliminar uma série de medidas implantadas pela secretaria com vistas e aumentar a qualidade do aprendizado dos alunos.

Além da premiação das escolas que conseguem melhorar seus resultados --e que constitui um 14º salário a todos os trabalhadores escolares --, há inúmeras medidas.

O eixo central foi adotar um currículo básico para o município. Material estruturado apoia o professor na implantação do currículo, por meio de cadernos pedagógicos e aulas digitais, elaborados pelos próprios mestres. A padronização do currículo faz com que todos os alunos tenham o mesmo conteúdo no mesmo bimestre. Além disso, há padronização também da avaliação bimestral. Existe muita evidência internacional de que essas práticas estão associadas à melhora da qualidade do aprendizado.

Há um grande esforço para aumentar a proporção de alunos em tempo integral. Em 2008, 10% dos alunos estudavam nesse regime. Hoje são 20% em tempo integral, e a previsão é que esse número atinja 35% em 2016. Adicionalmente, há esforço da prefeitura para acelerar a instalação de climatização.

Os resultados já começam a aparecer. A avaliação externa aplicada em 2010 diagnosticou que 20% dos alunos não estavam alfabetizados ao fim do primeiro ano. A avaliação foi repetida em 2011 e 2012, e os números caíram para, respectivamente, 18% e 10%.

Apesar da enorme complexidade da rede escolar municipal do Rio (trata-se da maior do país), hoje ela tem o sexto melhor Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) entre as capitais e a quarta melhor taxa de crescimento de Ideb entre 2009 e 2011.

Os professores têm o direito de fazer a greve. Ao exercer este direito os professores não defendem o melhor para a sociedade nem para os alunos. Defendem o seu interesse. A legitimidade da greve é definida socialmente. Cabe 

O harakiri de Dilma - SUELY CALDAS


O Estado de S.Paulo - 27/10

No dia em que o campo gigante de Libra foi vendido para a Petrobrás e quatro empresas estrangeiras, a presidente Dilma Rousseff foi à TV comemorar o sucesso do leilão e garantir que seu governo não privatizou o petróleo do pré-sal. Ora, então por que leiloou? Por que despachou equipes para a Europa, EUA e China com a missão de "vender" o petróleo do pré-sal como um bom negócio? Por que a tristeza e a decepção de seu governo quando as gigantes Chevron, British Petroleum e Exxon Mobil desistiram da licitação? Por que a alegria e o alívio quando a francesa Total e a anglo-holandesa Shell aderiram ao consórcio vencedor? Por que negar algo tão simples e óbvio?

A resposta veio de um ex-tucano (hoje aliado querido de Dilma), o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes: "O discurso antiprivatista ainda resiste no Brasil de 2013, quando a gente vê pessoas fazendo questão de dizer que não estão privatizando ou negociando com o setor privado", afirmou ele na manhã seguinte ao discurso da aliada, misturando espanto, lamento e decepção. Afinal, em mais de 20 anos a privatização já deu provas e provas de que mais enriquece a população do que empobrece o patrimônio público. Privatização e autonomia do Banco Central nasceram liberais e tornaram-se políticas universais.

Mas com espantosa insistência ela ainda é atacada, por oportunismo político de quem usa o argumento do falso nacionalismo para impressionar e comover os brios do sincero patriotismo dos brasileiros. Pura enganação. O que os políticos defendem são seus interesses e privilégios, temem o desmanche de uma parcela do Estado que sempre usaram para trocar favores, comprar aliados, fazer caixa para suas campanhas eleitorais. Só alguns exemplos: os bancos estaduais, as elétricas estaduais, as siderúrgicas federais, a Rede Ferroviária Federal (a Valec pode seguir caminho igual) e muitas outras. Felizmente privatizadas. A Vale privada ganhou em qualidade de gestão e passou a arrecadar para o Estado mais dinheiro em impostos do que em dividendos quando era estatal.

Não parece o caso da presidente Dilma. O combustível que a move é ideológico, mas de uma forma tão confusa e atrapalhada - porque contraditória (afinal, ela precisa do capital privado) - que mais tem prejudicado sua gestão do que satisfeito seu preconceito. No leilão de Libra a presença de petroleiros nas ruas denunciando-a por ter "traído" o compromisso de não privatizar o pré-sal levou Dilma a recuar aos anos 70 e ignorar que aqueles ideais desmoronaram junto com o Muro de Berlim, e foi à telinha da TV responder, negar a "traição" e a privatização que seu governo acabara de fazer.

Seu argumento: não seria privatização porque 85% da renda de Libra irá para a Petrobrás e a União. Principal idealizadora do modelo de exploração do pré-sal, logo após o leilão Dilma repetiu duas vezes que não vai alterar nada, mesmo com Libra - o filé do filé do pré-sal - tendo atraído um único consórcio e vendido a maior reserva de petróleo do mundo pelo preço mínimo, sem nenhuma disputa. Para garantir 85% da renda para o Estado não precisaria criar mais gasto público com uma nova estatal (a PPSA, que vai administrar o pré-sal) nem sacrificar a Petrobrás com a obrigatoriedade de bancar 30% de todos os poços, tampouco afastar o investidor desconfiado com frequentes interferências políticas do governo em estatais. Para isso bastaria elevar taxas e impostos para valores equivalentes, manter o regime de partilha, mas tirar da Petrobrás o peso maior pelos investimentos. O efeito de gerar riqueza para aplicar na área social seria o mesmo.

Dilma precisa do capital privado para seu programa de investimentos em portos, aeroportos, ferrovias, rodovias, energia e petróleo. Se hoje a crise de confiança entre seu governo e empresários tem causado graves prejuízos e inibido investimentos, o que esperar de um discurso escan

Progresso e asfixia - CELSO MING

O Estado de S.Paulo - 27/10

Santos, uma das mais antigas cidades do Brasil, e toda a Baixada que a margeia chegam a um momento decisivo. O intenso ciclo de desenvolvimento econômico, com as obras de expansão do maior porto da América Latina e a descoberta de petróleo no pré-sal da Bacia de Santos, ganha mais um vetor com a realização do leilão de Libra, na última segunda-feira.

"Toda a região está em obras", observa Renato Barco, presidente da Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp), responsável pela administração do Porto de Santos. O porto está sendo ampliado, processo que continuará por anos, mas que começa com grande atraso.

Nos últimos 11 anos, dobrou o volume de carga movimentada pelo porto. Passou de 53,5 milhões de toneladas em 2002 para 112,6 milhões de toneladas previstas até o final de 2013 (veja o gráfico). Com isso, o sistema de infraestrutura está estrangulado. Para Barco, o problema mais importante está na concentração de movimento no modal de transporte rodoviário e no acesso pelo sistema Anchieta-Imigrantes.

A intensificação das operações da Petrobrás na Bacia de Santos deverá pressionar ainda mais as malhas de serviço. Com uma unidade de negócios em Santos desde 2006, a Petrobrás deve concluir ainda este ano a construção do seu primeiro edifício administrativo, com 18 andares e capacidade para 2 mil funcionários. Mais duas torres equivalentes estão previstas para serem erguidas no bairro do Valongo. Também se esperam novas instalações de apoio offshore para empresas parceiras e fornecedores que devem se estabelecer nas vizinhanças, de olho em Libra e outros campos.

O movimento já produz impacto sobre o setor imobiliário. O Sindicato da Habitação de São Paulo (Secovi-SP) calcula que 15.573 unidades de moradia foram lançadas na Baixada Santista entre março de 2010 e março deste ano.

"As perspectivas são positivas, mas precisamos nos estruturar para receber os futuros projetos de forma adequada", admite o prefeito de Santos, Paulo Alexandre Barbosa (PSDB). Em parceria com os governos federal e estadual, a prefeitura espera investir R$ 10 bilhões em infraestrutura e mobilidade urbana nos próximos dois anos.

Para Paulo Resende, especialista em Infraestrutura e Logística da Fundação Dom Cabral, "a Baixada Santista entrará em colapso", caso não seja realizado planejamento integrado de mobilidade, ocupação do solo e adensamento imobiliário. "Santos não suporta mais crescimento. Como ocorreu em Macaé (RJ), base de operações da Petrobrás na Bacia de Campos, a cidade pode perder o controle da ocupação urbana", adverte.

Mesmo com toda a expectativa, Santos não deve ser o principal polo das operações do pré-sal, prevê Marcus D'Elia, especialista em Óleo e Gás do Instituto de Logística e Supply Chain (Ilos). "O Porto de Santos não é adequado para a logística de abastecimento das plataformas e escoamento da produção." D'Elia afirma que os portos do Estado do Rio estão a distâncias mais curtas da Bacia de Santos e oferecem menores custos.

Em todo o caso, o progresso cobra preços.

Ciência ainda depende dos testes em animais (beagles)

Giovana Girardi - O Estado de S.Paulo
No final da década de 1950, quando bebês começaram a nascer com malformações congênitas após as mães terem tomado talidomida para combater enjoos matinais, médicos e pesquisadores ficaram em choque. Como isso podia estar acontecendo se em camundongos o sedativo tinha se mostrado seguro? Tão seguro, pensavam, que poderia ser usado até por gestantes.

O caso poderia ser hoje uma excelente justificativa para grupos de direitos dos animais – que pregam que testes em cobaias são inúteis porque as reações das drogas no organismos delas são muito diferentes do que no nosso – não fosse um detalhe. Essa falha acabou se tornando um dos marcos para que os estudos com animais se tornassem ainda mais rigorosos.
Diante do cenário de tragédia, com mais de 10 mil casos em cinco anos os cientistas voltaram aos testes com animais, dessa vez com coelhos e macacos, e viram que neles também havia malformação fetal, apesar de isso não ocorrer em roedores. 

A conclusão foi simples: o problema teria sido evitado com o teste em mais de uma espécie. Daí que surgiu o protocolo internacional, seguido por atualmente agências reguladoras de Estados Unidos, Europa e do Brasil, de que antes de uma nova droga chegar a humanos, é preciso fazer testes de segurança em pelo menos duas espécies, sendo uma de não roedores.

Essa história foi lembrada por alguns pesquisadores na semana passada por conta da invasão ao Instituto Royal e do subsequente bombardeio que as pesquisas com uso de animais sofreram – que levaram também a uma manifestação em peso da comunidade científica. 

Necessidade. Paixões e defesas de classe à parte, a mensagem que todas as entidades passaram é: em todo mundo se buscam alternativas para substituir o uso de animais e alguns métodos já eliminaram sua necessidade em algumas etapas, mas ainda não há o desenvolvimento completo de uma nova droga sem testá-la em bichos. 

E isso em todo o mundo. Mesmo a Europa, que é mais rigorosa nos cuidados com os animais e já proibiu seu uso em testes de cosméticos, utiliza por ano cerca de 12 milhões de animais em estudos farmacológicos, segundo o último relatório de estatísticas da União Europeia. Apenas chimpanzés são proibidos. Os EUA também estão encerrando estudos com esses grandes primatas.

Por outro lado, assim como evoluíram as pesquisas de fármacos, também se desenvolveu toda uma linha de estudos para melhorar os cuidados com os animais de laboratório, centrada principalmente em três pontos: buscar alternativas, reduzir o número de animais usados e aprimorar os métodos a fim de reduzir a dor e o sofrimento.

Foram essas diretrizes que, no Brasil, balizaram a criação da Lei Arouca, que regulamenta o uso de animais em pesquisa e entrou em vigor em julho de 2009. Ela criou, por exemplo, o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), que credencia instituições que fazem estudos com cobaias e é responsável por zelar pelo bom tratamento delas.
Segundo Marcelo Morales, que coordena o Concea, desde sua criação várias denúncias de maus-tratos foram apuradas. 
“Chegamos a suspender as pesquisas em uma universidade inteira, que depois se regularizou.”

Entrave. De acordo com especialistas ouvidos pelo Estado, o maior entrave para eliminar o uso de animais é não se conseguir ainda simular por outros meios, com precisão, o complexo funcionamento do organismo. “É bem verdade que podemos minimizar o uso dos animais, mas eliminá-lo ainda não dá, porque não temos como ainda avaliar impactos do uso de longo prazo ou reprodutivos”, afirma Eliezer Barreiro, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Fármacos e Medicamentos, do qual o Instituto Royal faz parte.

Alternativas em algumas etapas já conseguem reduzir o número de cobaias. Na Fiocruz, por exemplo, pesquisadores do grupo de estudos de Métodos Alternativos aos Ensaios Toxicológicos, ligado ao Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde, buscam saídas para testes de irritação ocular de colírios e pomadas oftalmológicas. 

No processo-padrão, os primeiros testes seriam em coelhos. Cientistas descobriram que, usando córneas de bois abatidos, é possível saber se o produto promove irritação severa ou corrosiva. “Se der positivo, descartamos o produto e os coelhos são poupados. Se der negativo, os estudos seguem e testamos em animal”, diz o biólogo Octávio Presgrave.

Segundo o pesquisador, pela experiência do grupo, corroborada por dados da literatura médica, o uso de métodos alternativos pode levar a redução de 70% dos custo da pesquisa.

Células-tronco. Além de poupar os bichos, outras técnicas se mostraram até mais eficientes, como o modelo desenvolvido pelo biólogo brasileiro Alysson Muotri, da Universidade da Califórnia, em São Diego. Ele estuda autismo e diz que, apesar dos vários anos de estudos feitos por vários grupos em roedores, ainda não se chegou a um bom medicamento. A principal dificuldade é que não dá para realmente recriar o autismo nos animais.

Ele então teve a ideia de aproveitar células-tronco dos próprios pacientes para transformá-las em neurônios e testar drogas candidatas diretamente neles. “Nos pacientes, os neurônios fazem um número menor de sinapses do que em pessoas normais. Os neurônios que desenvolvemos mostraram o mesmo problema”, explica. Com essa mudança, disse, está sendo possível evitar o uso de milhares de cobaias por ano.

Parte das drogas que o pesquisador está testando para autismo está no mercado para outras doenças. Como elas já passaram por testes de segurança, Muotri espera que se elas se mostrarem efetivas nos neurônios criados, talvez seja possível mudar no futuro os protocolos. “Passaríamos direto para os testes em humanos.”

Este modelo pioneiro já foi adotado para outras doenças, como arritmias cardíacas. As células do coração desenvolvidas a partir das células-tronco agem como o próprio órgão, inclusive mostrando batimento cardíaco. Nesse caso, inclusive, elas apresentam a mesma arritmia. “É realmente uma cópia do que ocorre no indivíduo. Dá para checar direito nela diferentes remédios e ver como ela reage a cada um. É o futuro da medicina”, diz.

A liberdade é uma só - TONY BELLOTTO


O GLOBO - 27/10

Querer reprimir a liberdade de expressão em nome da preservação do direito à privacidade é dar um tiro no pé



O bebê de Salomão


A liberdade é uma só e não pode ser retalhada como o bebê de Salomão, aquele que quase foi repartido a golpe de espada entre as duas mulheres que reivindicavam sua maternidade. Estou ao lado dos que se opõem ao artigo do código civil que prevê para biografias a autorização prévia do biografado. A modificação da legislação no sentido de permitir que biografias sejam publicadas sem necessidade de autorizações é inevitável e natural numa democracia que se aperfeiçoa, e a intenção de suprimi-la não causaria celeuma caso o grupo de artistas que forma o movimento Procure Saber não tivesse se manifestado por sua permanência no código civil.


Édipo


A admiração, o respeito e a gratidão que sinto por Roberto, Erasmo, Djavan, Mautner, Chico, Caetano e Gil são incondicionais. Atribuo a eles grande parte da construção da minha visão de mundo, e pesa-me discordar publicamente de suas posições. O que gera discussão é ver aferrados a uma postura conservadora artistas historicamente comprometidos contra a censura e que sempre se pautaram pelas liberdades e ousadias estéticas e comportamentais. O que não justifica sua vilificação por parte da imprensa, tachando-os — de forma desrespeitosa e ressentida — de “censores” intolerantes. Não se pode resumir uma questão relevante a uma simples queda de braço entre celebridades e jornalistas. Não se trata de uma picuinha. Atentemos para não perder o foco do que está em jogo.


Controle absoluto


O ponto central da discussão é a contraposição entre liberdade de expressão e direito à privacidade. Embora reconheça pontos plausíveis na argumentação do Procure Saber, não concordo que para preservar o direito à privacidade seja admissível relativizar ou cercear a liberdade de expressão. Em democracias mais aprimoradas, liberdade de expressão e direito à privacidade caminham juntos, ao passo que, em regimes intolerantes e totalitários, quanto mais se reprime a liberdade de expressão, mais se restringe o direito à privacidade. Querer reprimir a liberdade de expressão em nome da preservação do direito à privacidade é dar um tiro no pé. O controle absoluto da própria história não ocorre numa sociedade livre e democrática. Controle absoluto, só em regimes totalitários, e sempre como primazia do Estado e não dos indivíduos.


Referendo


Em 2005 justifiquei a um amigo meu voto a favor da comercialização de armas de fogo no Brasil: “A liberdade é uma só.” O amigo não se conformava com o fato de um adepto dos princípios da não violência de Gandhi e não afeito a armas de fogo votar a favor de sua comercialização. Segui com minha justificativa: “Quero viver num país livre em que as pessoas tenham liberdade para fazer, dizer e comprar o que bem entenderem.”


É preciso saber viver


Na minha concepção utópica seriam legalizados drogas, aborto e a eutanásia. Voto e serviço militar deixariam de ser obrigatórios. No meu Brasil idealizado, caberia ao Estado, em vez de punir e reprimir, amparar, informar e regular práticas de direito individual e uso e comercialização de substâncias tóxicas dentro das medidas do bom senso e da lei, como já ocorre com tabaco, álcool e algumas formas permitidas de interrupção de gravidez e morte assistida — desligamento de aparelhos em caso de morte cerebral, por exemplo.


Liberdade exige coragem. Numa sociedade livre algum desapego é recomendável, assim como doses cavalares de tolerância.


“Fahrenheit 451”


No romance “Fahrenheit 451”, Ray Bradbury nos apresenta um futuro sombrio em que livros e pensamento crítico estão banidos da sociedade, num mundo em que opiniões próprias são consideradas antissociais. Entre 10 de maio e 21 de junho de 1933, logo depois da chegada de Hitler ao poder, nazistas organizaram em várias cidades alemãs grandes e festivas queimas de livros. Entre os autores “incinerados” estavam Thomas Mann, Walter Benjamin, Brecht, Musil, Freud, Einstein e Marx. O evento é reconhecido como um dos mais cruéis atentados à liberdade de expressão da História. Livros — mesmo os ruins — simbolizam liberdade de pensamento. Reprimir ou condicionar sua publicação soa como uma ameaça a um princípio fundamental da democracia.