quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Onde foi parar a esquerda?, Hélio Schwartsman, FSP

 O que fizeram com a esquerda? Terá ela sido abduzida por alienígenas?

Antes que os autoproclamados progressistas comecem a me xingar, reitero que votei em Lula no último pleito. Contra a anti-institucionalidade de Bolsonaro, repetiria esse voto mil vezes. Mas, convenhamos, não ser golpista é obrigação, não virtude a celebrar.

Quando analisamos as pautas concretas e como cada grupamento político se comporta diante delas, o quadro que emerge é bem desolador. O projeto de lei que reduz drasticamente a saída temporária de presos foi aprovado no Senado com apoio maciço da bancada de esquerda. Só 2 dos 81 senadores foram contra.

O presidente Lula (PT) discursa durante visita à fábrica da Volkswagen, em São Bernardo do Campo (SP) - Carla Carniel/Reuters - REUTERS

Algo parecido vai ocorrer agora na votação da PEC que amplia a imunidade tributária de igrejas, já que a proposta tem o apoio do governo Lula —embora vá na contramão do princípio da solidariedade tributária que a esquerda sempre defendeu.

E essa lista pode ser ampliada. A política de apaziguamento dos militares vem sendo conduzida com esmero pelo presidente petista, apesar da participação de generais e oficiais superiores na trama golpista. Outras pautas históricas da esquerda, como a legalização do aborto e a descriminalização das drogas, foram completamente esquecidas. Se há uma chance de avançarem, é por ação do STF, não dos políticos.

Não ignoro que a esquerda seja minoritária no Congresso e que fazer política implica saber ceder. Mas será que não dá para pelo menos sinalizar que as ideias mais universalistas e mais generosas da esquerda liberal e iluminista não morreram? Onde ainda observamos algum ativismo esquerdista é em pautas corporativistas —volta da contribuição sindical— ou economicamente erradas —estaleiros.

É triste dizê-lo, mas o que mais marca Lula hoje como um governante "de esquerda" é que ele ganha elogios do Hamas. Não é por ser judeu, mas não penso que receber o selo de aprovação de uma organização terrorista conte como ponto positivo.

Trinta anos de URV e o Plano Real do século 21, André Roncaglia, FSP

 Trinta anos atrás, em 1° de março de 1994, entrava em vigor a mais notável inovação do Plano Real: a Unidade Real de Valor (URV). Esse engenhoso mecanismo de sincronização de preços teve papel relevante na estabilização da inflação.

Concebida como uma moeda virtual, a URV permitiu a transição do "cruzeiro real" para o "real", a nova moeda. Todos os preços, salários e contratos passaram a ser denominados em URV, a qual mantinha seu valor estável em relação ao dólar. O mecanismo funcionava como uma reprogramação do comportamento defensivo da população, preparando-a para a estabilidade de preços.

A inflação é uma expressão de conflitos distributivos, em que salários e lucros disputam espaço na renda nacional. Se os preços sobem em um dado intervalo de tempo, trabalhadores pedem reposição de seus salários. Ao ceder à pressão, empresários reajustam seus preços para defender sua margem de lucro.

Fernando Henrique Cardoso, em 1994, quando ministro da Fazenda - Wilson Dias/Agência Brasil

Quando esse conflito se dissemina pela economia, os contratos passam a prever reajustes automáticos pela inflação passada (indexação). Trabalhadores pressionam por reposição salarial e empresas perdem clareza sobre seus custos, dada a incerteza quanto aos reajustes de preço por parte dos fornecedores. Na dúvida, todo mundo olha para trás e tenta ao menos defender sua renda real. Os índices de inflação se multiplicam e os reajustes se desorganizam, autonomizando a inflação. Sob efeitos de choques, como os preços de energia, os reajustes se dão em intervalos cada vez mais curtos. A inflação se acelera e o cálculo econômico fica prejudicado.

Para frear esse processo, o plano converteu os salários em URV em março de 1994 e os manteve fixos nesse indexador até julho daquele ano. Calculado como média de um período em que a inflação estava se acelerando, o congelamento dos salários se deu em nível relativamente baixo em termos reais.

Já as empresas puderam converter livremente os preços de seus produtos à URV, acelerando a inflação naquele período. Por quatro meses, a URV viabilizou a negociação dentro das cadeias produtivas e entre fornecedores e comerciantes, mitigando a tensão inflacionária no plano dos lucros.

O sucesso da URV dependia, contudo, do contexto internacional. Ao ancorar a URV (e posteriormente o real) ao dólar, o Plano Real condicionou a estabilidade de preços ao influxo de capitais e, portanto, à confiança dos investidores estrangeiros. Sem a negociação da dívida externa brasileira em 1992, que reinseriu o país no mercado financeiro internacional, a URV dificilmente teria tido o sucesso observado.

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A estabilização foi bem-sucedida, mas impôs custos à sociedade. Um deles foi a instabilidade externa até a maxidesvalorização cambial em janeiro de 1999, quando é instituído o tripé macroeconômico, ainda vigente. Nesse período, a taxa de câmbio sobrevalorizada deixou de equilibrar as contas externas, produzindo déficits comerciais persistentes, desindustrialização, desemprego e baixo crescimento. Esses custos limitaram os efeitos positivos da estabilização sobre a distribuição de renda. Voltarei a esses tópicos no futuro.

O mundo mudou muito desde os anos 1990, quando a estabilidade de preços era o foco exclusivo da política econômica. A crise financeira global de 2008, a pandemia, os conflitos geopolíticos e a crise climática trouxeram impactos significativos sobre o emprego, a produção e a renda. Em resposta, governos do mundo inteiro passaram a priorizar a inclusão produtiva, o combate às desigualdades e a descarbonização da economia.

Os desafios atuais exigem reprogramar a economia para o desenvolvimento de longo prazo.

Que a ousadia embutida na formulação da URV nos inspire a construir a soberania econômica neste mundo fragmentado. O Plano Real do século 21 é a neoindustrialização.

Ação contra redes sociais pode redefinir limites da liberdade de expressão, Lucia Guimarães, FSP

 A maioria dos americanos desconhece uma disputa judicial que acaba de chegar à Suprema Corte e pode afetar a liberdade de expressão garantida pela Primeira Emenda da Constituição. De fato, este caso pode ter repercussão internacional, já que afeta gigantes digitais como Google, Facebook e X.

As empresas financiam o processo movido por grupos de interesse contra o estado do Texas, por ter passado uma lei contra a remoção de postagens online consideradas violações de suas regras de conteúdo.

A Flórida, que passou uma lei estadual ainda mais ampla contra as big techs, também está sendo interpelada. Ambas as leis foram aprovadas depois da invasão do Capitólio e inspiradas por republicanos reclamando que seu ponto de vista era censurado durante o festival de baixaria digital e desinformação apoiado pelo ex-tuiteiro serial Donald Trump.

Foto mostra bandeira dos Estados Unidos flamulando ao vento sob um céu cinza. No fundo, é possível ver a parte de cima da sede da Suprema Corte americana, um prédio no estilo clássico com triângulo e colunas.
Fachada da Suprema Corte dos Estados Unidos em Washington - Mandel Ngan - 28.fev.2024/AFP

Considerando o volume diário de "fala" nas plataformas, entre imagens e texto, os nove juízes da Suprema Corte podem emitir, até junho, uma das decisões mais consequentes da era digital.

Se a intenção das leis era fazer cafuné no trumpismo, está em jogo aqui também o controle da democracia por cidadãos, não por corporações. As empresas alegam que têm tanto direito de remover conteúdo online quanto os editores desta Folha podem não publicar este texto se a colunista violar diretrizes do jornal. Já os conservadores do Texas e da Flórida querem que a Corte considere as empresas digitais o equivalente a operadoras de telefonia, transmissoras de comunicações. Uma operadora de celular não pode, claro, recusar serviço ou discriminar clientes.

Os gigantes digitais já exercem poder sem paralelo na história das comunicações coletando dados pessoais, usando algoritmos para "editar" o que acessamos e facilitando crimes variados, da exploração sexual de crianças ao incitamento da matança genocida em Mianmar, em 2017.

A Primeira Emenda foi aprovada no século 18 para aplacar o sentimento antifederação em alguns estados americanos. Os fundadores da República certamente não previam o futuro em que um estudante esquisitão fundaria uma rede social global usando o mantra "Empresa acima do país", como fez Mark Zuckerberg.

Na segunda-feira (26), quando os primeiros argumentos do caso foram ouvidos, os juízes demonstraram ceticismo sobre a constitucionalidade das duas leis. Mas os especialistas em direito que deploram a motivação e os detalhes contidos nessas leis alertam para consequências incalculáveis se a Suprema Corte der vitória às empresas.

Se moderar conteúdo for considerado inconstitucional, empresas como o Facebook teriam imunidade para realizar os desejos imperiais de soberania de Mark Zuckerberg. A violação epidêmica de privacidade —condenada pela maioria dos americanos, como afirmam pesquisas— também seria liberdade de expressão? E a propagação de deepfakes que ameaçam a integridade de campanhas eleitorais?

Em setembro do ano passado, um juiz federal derrubou uma lei da Califórnia que visava proteger crianças e adolescentes de produtos e serviços oferecidos online. Uma lei idêntica vai entrar em vigor em julho no Reino Unido, mas nos EUA os mesmos lobistas financiados pelas empresas tech na ação contra Texas e Flórida argumentaram com sucesso que a lei restringe a expressão. A necessidade de regular essas empresas é um raro tema que aproxima campos políticos opostos nos EUA.