Era por volta de 14h30 do dia 6 de abril de 2016 quando um SUV preto estacionou em frente ao prédio da Folha. Naquela tarde quente do outono paulistano, meu colega Rogério Gentile, então secretário de Redação, e eu, editor de Esporte naquela época, estávamos na calçada à espera de Pelé, que nos deixou nesta quinta (29) aos 82 anos.
A porta de trás do carro se abriu e ele, lentamente, pôs os pés na Barão de Limeira. Neste instante, ao olhar para os lados, percebi que uma roda rapidamente tinha se formado: amigas e amigos da Redação, colegas de outros departamentos do jornal, balconistas da padaria vizinha, curiosos que passavam pela rua. O Rei havia chegado.
Para a surpresa de todos ali, Pelé tinha uma bengala à mão esquerda. Era o primeiro drible nas nossas expectativas: aos 75 anos, o maior nome da história do esporte do país —no nosso imaginário, uma fortaleza— caminhava com dificuldade e demonstrava certa fragilidade.
Logo, porém, veio uma segunda finta na direção contrária: a debilidade física em nada abalava o carisma de Pelé, que cumprimentou todos que o abordaram e deu alguns autógrafos.
Em 2016, ano da visita, completavam-se curiosamente seis décadas da primeira menção ao jogador nas páginas do jornal. Pelé foi citado em um breve relato da goleada de 7 a 1 do Santos sobre o Corinthians de Santo André. O garoto de 15 anos havia feito o sexto gol da partida, o primeiro de 1.283 ao longo de uma carreira de 1.365 jogos.
Era um registro da edição de 8 de setembro de 1956 da Folha da Manhã, jornal que, unido à Folha da Tarde e à Folha da Noite, deu origem à Folha de S.Paulo quatro anos depois.
Ao deixar o elevador no nono andar, onde seria recebido para um café, Pelé viu Juca Kfouri, a quem abraçou de modo efusivo. Essa tarde "marcou nosso reencontro depois de muito tempo e foi como se tivéssemos nos visto no dia anterior", lembra o colunista.
Havia sempre quatro ou cinco assessores ao lado do craque, além de dois ou três seguranças. Em outras circunstâncias, um entourage assim impediria que os interlocutores se sentissem à vontade. Não com Pelé —mais um olé dele no que parecia óbvio.
Como se fosse um amigo antigo, papeou com todos que o aguardavam, como Sérgio Dávila, então editor-executivo (hoje diretor de Redação), Vinicius Mota, secretário de Redação, e Maria Cristina Frias, editora da coluna Mercado Aberto.
"Tem algum santista aqui?", ele perguntou. Emocionado e meio sem jeito, o garçom Nivaldo Fonseca respondeu que sim, ele torce para o clube da Baixada. Pelé o abraçou e disse que tinha um amigo no interior de São Paulo com o mesmo nome.
"Não cheguei a ver Pelé no estádio, mas acompanhava muito pela TV. Eu adorava quando ele comemorava os gols dando socos no ar", conta Fonseca, que continua colaborando com a Folha.
Instantes depois, Gentile fez uma pergunta ao convidado: depois de mais de 40 anos da época de Pelé, com o avanço da preparação física dos atletas, como seria agora? Em um futebol de mais velocidade, ele continuaria sendo —caso estivesse em atividade— tão superior aos demais?
O brasileiro mais famoso de todos os tempos começou a enumerar as condições do período dele: a bola e a chuteira eram mais pesadas que as usadas atualmente; os gramados não eram tão bem cuidados; os zagueiros eram mais violentos. E arrematou, sorrindo, com uma outra pergunta: "Você acha que eu ainda seria um bom jogador?"
Passados alguns minutos, Pelé foi para a sala ao lado para dar uma entrevista a Kfouri, à então repórter Camila Mattoso (hoje diretora da sucursal de Brasília da Folha) e a mim, com registro da TV Folha.
Kfouri fez a primeira pergunta: "Prefere ser chamado de você, senhor ou majestade?" Um entrevistado sem ginga talvez ficasse desconcertado, não ele. "Pode me chamar de ‘meu bem’. O pessoal me chama de senhor Pelé, de seu Pelé. E eu falo: 'Tem tantos adjetivos e vai me chamar de seu Pelé?' Me chama de Edson, me chama de Rei."
Na entrevista, afirmou pela primeira vez que acreditava ter havido um erro médico em sua primeira cirurgia no quadril. Segundo ele, médicos dos EUA tinham apontado a ocorrência de uma falha em operação à qual se submetera em 2012 no hospital Albert Einstein, em São Paulo. Esse suposto erro o levou a passar por nova cirurgia, em 2015, desta vez no Hospital for Special Surgery, em Nova York.
No dia da visita à Folha, Pelé dizia não sentir dor. "Até brinquei com meu médico que chegou minha oportunidade nas Olimpíadas", disse sobre os Jogos do Rio de Janeiro, que começariam quatro meses depois.
O relógio azul da recepção da Folha marcava 15h50 quando Pelé se despediu de todos. A história, aquela que sai dos jornais para ganhar os livros, tinha corrido diante dos nossos olhos, mas mal percebíamos —a gentileza do Rei fazia tudo parecer muito natural. Aquele era o drible derradeiro.
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