sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

A tarde quente em que Pelé driblou a Folha, FSP

 Naief Haddad

SÃO PAULO

Era por volta de 14h30 do dia 6 de abril de 2016 quando um SUV preto estacionou em frente ao prédio da Folha. Naquela tarde quente do outono paulistano, meu colega Rogério Gentile, então secretário de Redação, e eu, editor de Esporte naquela época, estávamos na calçada à espera de Pelé, que nos deixou nesta quinta (29) aos 82 anos.

A porta de trás do carro se abriu e ele, lentamente, pôs os pés na Barão de Limeira. Neste instante, ao olhar para os lados, percebi que uma roda rapidamente tinha se formado: amigas e amigos da Redação, colegas de outros departamentos do jornal, balconistas da padaria vizinha, curiosos que passavam pela rua. O Rei havia chegado.

Pelé ao deixar o prédio da Folha em 6 de abril de 2016 - Adriano Vizoni/Folhapress

Para a surpresa de todos ali, Pelé tinha uma bengala à mão esquerda. Era o primeiro drible nas nossas expectativas: aos 75 anos, o maior nome da história do esporte do país —no nosso imaginário, uma fortaleza— caminhava com dificuldade e demonstrava certa fragilidade.

Logo, porém, veio uma segunda finta na direção contrária: a debilidade física em nada abalava o carisma de Pelé, que cumprimentou todos que o abordaram e deu alguns autógrafos.

Em 2016, ano da visita, completavam-se curiosamente seis décadas da primeira menção ao jogador nas páginas do jornal. Pelé foi citado em um breve relato da goleada de 7 a 1 do Santos sobre o Corinthians de Santo André. O garoto de 15 anos havia feito o sexto gol da partida, o primeiro de 1.283 ao longo de uma carreira de 1.365 jogos.

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Era um registro da edição de 8 de setembro de 1956 da Folha da Manhã, jornal que, unido à Folha da Tarde e à Folha da Noite, deu origem à Folha de S.Paulo quatro anos depois.

Ao deixar o elevador no nono andar, onde seria recebido para um café, Pelé viu Juca Kfouri, a quem abraçou de modo efusivo. Essa tarde "marcou nosso reencontro depois de muito tempo e foi como se tivéssemos nos visto no dia anterior", lembra o colunista.

Havia sempre quatro ou cinco assessores ao lado do craque, além de dois ou três seguranças. Em outras circunstâncias, um entourage assim impediria que os interlocutores se sentissem à vontade. Não com Pelé —mais um olé dele no que parecia óbvio.

Como se fosse um amigo antigo, papeou com todos que o aguardavam, como Sérgio Dávila, então editor-executivo (hoje diretor de Redação), Vinicius Mota, secretário de Redação, e Maria Cristina Frias, editora da coluna Mercado Aberto.

"Tem algum santista aqui?", ele perguntou. Emocionado e meio sem jeito, o garçom Nivaldo Fonseca respondeu que sim, ele torce para o clube da Baixada. Pelé o abraçou e disse que tinha um amigo no interior de São Paulo com o mesmo nome.

"Não cheguei a ver Pelé no estádio, mas acompanhava muito pela TV. Eu adorava quando ele comemorava os gols dando socos no ar", conta Fonseca, que continua colaborando com a Folha.

Pelé com o garçom Nivaldo Fonseca em visita à Folha em abril de 2016 - Rogério Gentile

Instantes depois, Gentile fez uma pergunta ao convidado: depois de mais de 40 anos da época de Pelé, com o avanço da preparação física dos atletas, como seria agora? Em um futebol de mais velocidade, ele continuaria sendo —caso estivesse em atividade— tão superior aos demais?

O brasileiro mais famoso de todos os tempos começou a enumerar as condições do período dele: a bola e a chuteira eram mais pesadas que as usadas atualmente; os gramados não eram tão bem cuidados; os zagueiros eram mais violentos. E arrematou, sorrindo, com uma outra pergunta: "Você acha que eu ainda seria um bom jogador?"

Passados alguns minutos, Pelé foi para a sala ao lado para dar uma entrevista a Kfouri, à então repórter Camila Mattoso (hoje diretora da sucursal de Brasília da Folha) e a mim, com registro da TV Folha.

Kfouri fez a primeira pergunta: "Prefere ser chamado de você, senhor ou majestade?" Um entrevistado sem ginga talvez ficasse desconcertado, não ele. "Pode me chamar de ‘meu bem’. O pessoal me chama de senhor Pelé, de seu Pelé. E eu falo: 'Tem tantos adjetivos e vai me chamar de seu Pelé?' Me chama de Edson, me chama de Rei."

Pelé encontra o jornalista Juca Kfouri em visita à Folha em abril de 2016 - Adriano Vizoni/Folhapress

Na entrevista, afirmou pela primeira vez que acreditava ter havido um erro médico em sua primeira cirurgia no quadril. Segundo ele, médicos dos EUA tinham apontado a ocorrência de uma falha em operação à qual se submetera em 2012 no hospital Albert Einstein, em São Paulo. Esse suposto erro o levou a passar por nova cirurgia, em 2015, desta vez no Hospital for Special Surgery, em Nova York.

No dia seguinte à entrevista, Roberto Dantas, ortopedista responsável pela cirurgia no Einstein, afirmou que "não houve erro e estamos seguros disso".

No dia da visita à Folha, Pelé dizia não sentir dor. "Até brinquei com meu médico que chegou minha oportunidade nas Olimpíadas", disse sobre os Jogos do Rio de Janeiro, que começariam quatro meses depois.

O relógio azul da recepção da Folha marcava 15h50 quando Pelé se despediu de todos. A história, aquela que sai dos jornais para ganhar os livros, tinha corrido diante dos nossos olhos, mas mal percebíamos —a gentileza do Rei fazia tudo parecer muito natural. Aquele era o drible derradeiro.


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