O governo federal e o estado do Pará devem concluir nos próximos meses a entrega de florestas desmatadas para a iniciativa privada. A ideia é conceder milhares de hectares para empresas que, em troca de restaurar florestas destruídas, poderão faturar mais de R$ 1 bilhão com a venda de créditos de carbono.
Um crédito de carbono equivale a uma tonelada de carbono que deixou de ser emitida ou que foi absorvida da atmosfera. Como as árvores absorvem carbono no processo de fotossíntese, a restauração de florestas ajuda na absorção desse gás –responsável pelo aquecimento global.
Esses créditos são gerados por empresas especializadas em conservar ou restaurar florestas e comprados por qualquer companhia que queira compensar suas emissões de carbono. A grande maioria é adquirida por multinacionais que consomem muita energia, como as big techs.
Até então, esses créditos eram gerados em áreas privadas arrendadas ou compradas pelas desenvolvedoras, sem interferência pública. Agora, a partir do novo modelo, os créditos poderão ser gerados em áreas públicas, desde que parte do faturamento com a venda dos créditos vá para os governos.
No caso do Pará, por exemplo, as desenvolvedoras de crédito de carbono interessadas em assumir um projeto em Altamira têm até o final de março para enviar seus lances. Vencerá a licitação quem oferecer a maior outorga variável (atrelada à receita anual da empresa).
Até agora, segundo o governo paraense, ao menos três empresas pediram para visitar a área do projeto, chamada de Unidade de Recuperação Triunfo do Xingu (URTX), de 10 mil hectares.
Já o governo federal vai lançar neste semestre o edital para conceder 15 mil hectares da Floresta Nacional do Bom Futuro, em Rondônia. O governo Lula quer entregar até o ano que vem cerca de 350 mil hectares de floresta pública para a iniciativa privada.
É incerto o tamanho do apetite das desenvolvedoras pelas concessões.
O modelo é visto como arriscado pelas principais empresas do mercado, embora as empresas não tenham que arcar com a compra de propriedades, as áreas cedidas sejam maiores do que as fazendas que abrigam os atuais projetos e, por serem áreas públicas, não há dúvida sobre o proprietário, como ocorre em outras áreas.
Os riscos, segundo executivos ouvidos pela Folha, começam pela característica das áreas concedidas, muitas vezes remotas e cercadas de grileiros e madeireiros. As empresas questionam a capacidade de os governos garantirem a segurança das áreas, já que isso não foi feito nas últimas décadas (o que, aliás, gerou o desmatamento).
"Há uma questão logística e de segurança, porque são áreas que sofreram desmatamento e que têm pressão de invasores e grileiros, além de terem processos sociais complexos. Essa pressão para os projetos de restauração é um risco, porque você está plantando uma floresta", diz Munir Soares, CEO da Systemica, desenvolvedora ligada ao banco BTG.
As duas concessões preveem que o Estado arque com os custos caso seja comprovado que eventuais danos ao projeto não foram de responsabilidade das empresas. No caso do Pará, o mecanismo envolverá uma operação com o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento).
Uma eventual inércia do poder público poderia também atrapalhar a comercialização dos créditos. Isso porque, no processo de certificação mais comum desses créditos, as desenvolvedoras precisam garantir que o carbono absorvido pelas árvores ficará retido no solo pelos próximos cem anos. Mas a legislação brasileira fixa um limite de 40 anos para concessões florestais. Assim, sem poderem se responsabilizar, as desenvolvedoras se preocupam sobre como garantir que a floresta continuará conservada após o fim do contrato.
"Essa é hoje a única ponta solta, e esse tema foi muito batido pelas desenvolvedoras durante o pré-lançamento do edital. Nós alteramos a lei que cria a Unidade de Restauração para dar mais segurança de que o estado, após os 40 anos, não poderá conceder a área para madeireiro ou para qualquer atividade que desmate", afirma Raul Protázio, secretário de Meio Ambiente do Pará.
A localização remota dessas áreas também atrapalha. A área cedida pelo Pará, por exemplo, está a 150 quilômetros da região urbana mais próxima, o que dificulta qualquer intervenção. Segundo o executivo de uma das maiores empresas desse mercado, os bombeiros mais próximos demorariam cerca de dez horas para chegar à região caso a floresta pegasse fogo.
Esse executivo aponta que na área cedida pelo Pará o desmatamento é recente, com árvores grossas caídas e algumas mortas de pé. Com isso, a expectativa é de um grande custo logístico e operacional para limpar a área.
Esse problema não deve ser encontrado em São Paulo, onde o governo estadual anunciou no fim do ano passado a intenção de ceder 37 mil hectares de áreas de proteção. As áreas passíveis de restauração no estado, porém, são bem menores do que na Amazônia.
Devido a essas complexidades, outro desafio apontado pelos executivos é a garantia do modelo econômico das concessões. Nas apresentações feitas aos investidores antes do lançamento do edital, os governos federal e do Pará apresentaram as estimativas de receitas e custos dos projetos –neste último, estão inclusas as outorgas.
No caso do Pará, a concessionária precisará pagar anualmente no máximo 6% de sua receita bruta, que em 2042 pode chegar a R$ 143 milhões, segundo as projeções do governo paraense. Já no modelo federal, a outorga discutida até agora pode chegar a 5,34% da receita bruta, que somando os dois lotes a serem negociados chegam a R$ 1,2 bilhão.
Para impedir que empresas sem capacidade financeira ganhem a concessão, os dois modelos exigem o pagamento de uma outorga fixa no início do projeto caso o vencedor ofereça uma outorga variável acima do máximo estipulado.
Fábio Galindo, CEO da Future Carbon, desenvolvedora que tem Luciano Huck como um dos acionistas, defende que os governos reduzam ao máximo as outorgas. "Em uma concessão de ônibus, metrô ou água, já há uma tarifa prefixada e um consumidor ativo daquele serviço, então a empresa tem previsibilidade de receita. Mas no mercado de carbono, só há receita potencial, porque não existe um tomador efetivo daquele carbono. Ou seja, se o governo não for conservador na modelagem, o projeto não vai ser viável", diz.
"Se ninguém participar da primeira concessão, a política pública vai naufragar. Então, como não dá pra errar, a outorga tinha que ser zero", acrescenta.
Para ele, o BNDES precisa oferecer linhas de financiamento para a vencedora e atuar ativamente na compra dos créditos, seja garantindo a compra de parte dos créditos gerados ou fazendo a intermediação com potenciais compradores. Executivos do banco, porém, defendem que as últimas duas ações se alinham a uma parceria público privada e não a uma concessão.
"Não estamos fazendo a venda de créditos, o que estamos fazendo é uma avaliação de mercado para o governo como um todo. Nosso projeto de concessão de manejo ou restauração de floresta não depende da existência de uma demanda prévia pelos créditos", diz Nelson Barbosa, diretor de Planejamento e Relações Institucionais do BNDES.
O banco é responsável pela modelagem da concessão federal e deve enviar até o início de fevereiro o modelo do edital para o Tribunal de Contas da União, que pode sugerir alterações. Após esse processo, o governo federal estará autorizado a publicar o edital.
"A parte mais difícil, ao meu ver, foi elaborar o primeiro projeto, porque é muito difícil definir uma curva de precificação de carbono. Para cada uma dessas etapas, a gente teve que encontrar um consultor específico e conversar com as empresas para ver se tava todo mundo falando a mesma língua. Mas agora a gente já tem bastante experiência com isso", diz Renato Rosenberg, diretor de concessões do Serviço Florestal Brasileiro. O órgão já projeta outras sete concessões do tipo na Amazônia.
CONCESSÕES PARA RESTAURO FLORESTAL
Legalidade
A lei de concessão florestal, de 2006, autoriza a iniciativa privada a explorar florestas, mas até então isso era feito para madeireiros.
Quem vai estender para restauro florestal
Governo federal e governos do Pará e SP
Receita estimada
Governo federal: R$ 1,22 bilhão; Pará: R$ 949,5 milhões; SP: ainda não estimado
Custo estimado
Governo federal: R$ 658 milhões; Pará: R$ 290 milhões; SP ainda não estimado
Nenhum comentário:
Postar um comentário