sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Dirce Waltrick do Amarante - Ainda estamos aqui dissipando a névoa que encobre nossa cultura, FSP

 Dirce Waltrick do Amarante

Tradutora e professora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Autora, entre outros livros, de "Para Ler Finnegans Wake de James Joyce" e "James Joyce e Seus Tradutores". Organizou e cotraduziu "Finnegans Rivolta", de Joyce

[RESUMO] A autora reflete sobre o sucesso internacional do filme ‘Ainda Estou Aqui’, destaca a história da protagonista Eunice Paiva e sustenta que, assim como a Ilha Brasil na literatura irlandesa, o país agora ganha visibilidade mundial por meio da sétima arte, após muito tempo envolto em névoa

Mesmo em Santa Catarina, considerado o estado mais bolsonarista do país, as salas de cinema têm ficado lotadas nas sessões de "Ainda estou aqui". O filme baseado no romance homônimo de Marcelo Rubens Paiva e dirigido por Walter Salles, que mostra os anos de ditadura militar no Brasil —um lado sombrio da nossa história que muita gente parece preferir esquecer ou ignorar.

É como se, depois da redemocratização do país, não fosse mais necessário falar sobre os horrores desse período. Assim, o passado se torna irrelevante, mas é justamente ele que contamina o presente e pode tornar o futuro desastroso, já que estivemos há bem pouco tempo ameaçados por um golpe de Estado. "Ainda estou aqui" é, por isso, corajoso e muito oportuno.

Cena do filme "Ainda Estou Aqui" em que a personagem de Fernanda Torres é levada até a sede do DOI-Codi no Rio em um Volkswagen Fusca
Cena do filme 'Ainda Estou Aqui' em que a personagem de Fernanda Torres é levada à sede do DOI-Codi, no Rio de Janeiro - Divulgação

A protagonista do filme é Eunice Paiva, mulher do engenheiro Rubens Paiva, deputado federal eleito em 1962 pelo Partido Trabalhista Brasileiro que teve o mandato cassado depois do golpe militar em 1964. Rubens Paiva foi um dos muitos mortos durante as ações repressivas do governo do famigerado general Emílio Garrastazu Médici.

A família Paiva morava no Rio de Janeiro, onde fazia parte da elite econômica e intelectual brasileira. Alguns espectadores chegaram a questionar esse "privilégio", como se ele diminuísse o trauma dessa família. A propósito, vale lembrar que, por seus ideais e por sua história, Paiva não sucumbiu à tentação de trabalhar para os militares como outros da elite o fizeram.

Sem ter o atestado de óbito do marido, a viúva Eunice transformou o trauma da perda em luta. Formou-se em direito na capital paulista e passou a defender as causas em que acreditava, entre elas, os direitos indígenas, numa época em que não era comum estar ao lado deles.

A história de Eunice Paiva tem muito a ensinar: nascida em 1929, se formou em letras quando a maioria das mulheres se contentava apenas em ser dona de casa, delegando a vida política e a formação cultural aos homens.

Quando Michel Temer assumiu o poder, uma manchete muito comentada não tinha nada a ver com o novo presidente e sim com a sua mulher, definida como "bela, recatada e do lar". Essa caracterização machista foi de encontro ao desejo de muitas mulheres brasileiras definirem livremente seu próprio papel na sociedade.

De certa maneira, também Eunice Paiva, pelo menos como o filme a retrata no início, foi uma mulher "bela, recatada e do lar", mas, por outro lado, tinha um "diferencial", dado talvez pela sua formação, a saber, a sensibilidade para as coisas da sua época e a consciência do contexto histórico em que vivia.

A excepcional dedicação de Eunice Paiva às causas indígenas, por exemplo, na segunda metade da sua vida, seria, a meu ver, consequência disso. Uma pena que essa atuação de Eunice, quando já residia em São Paulo, não tenha sido devidamente explorada no filme.

"Ainda estou aqui" tem circulado internacionalmente e conquistado prêmios, como o de melhor roteiro no Festival de Veneza de 2024. Há pouco, Fernanda Torres foi a primeira brasileira a vencer o Globo de Ouro na categoria de melhor atriz em filme de drama.

Agora, "Ainda estou aqui" é indicado ao Oscar em três categorias: melhor atriz, melhor filme e melhor filme internacional! Faz história novamente ao contar a nossa história.

A atuação Fernanda tem impressionado os críticos (não todos, como foi o caso de Jacques Mandelbaum, do Le Monde, que a considerou monocórdica). Destaca-se o fato de que ela mantém uma excelente interpretação com frases banais e repetitivas na maioria das cenas. Manter uma atuação sólida nessas condições demanda muita arte. As crianças também merecem destaque, em especial Bárbara Luz, a atriz que faz o papel de Nalu, filha do meio do casal Paiva.

Mas, para mim, quem mereceria concorrer também ao Globo de Ouro e ao Oscar —na categoria de atriz coadjuvante— é a veneranda Fernanda Montenegro, que interpreta Eunice já com Alzheimer e em idade avançada.

É impressionante como, em pouquíssimos minutos em cena, sem proferir uma frase, ela consegue recriar e resumir toda a história da personagem por meio de algumas expressões faciais muito sutis, na medida exata para demonstrar que ainda está aqui. Justamente por isso, ela consegue comover e impactar.

O papel mais importante do filme é, contudo, o de levar o nome e a história do Brasil para outros países. Em uma entrevista recente, Fernanda Montenegro afirmou que, apesar da importância da nossa arte, tem sido difícil atravessar a Linha do Equador que separa a cultura nacional dos centros euro-americanos.

Montenegro tem razão, é difícil dar visibilidade à nossa cultura. O Brasil se assemelharia, nesse caso, à ilha mítica chamada de O’Brasil, Hy Brasil, Breasail, Ilha Brasil ou Ilha do Brasil, que, segundo a literatura irlandesa, costuma estar envolta em névoa, reaparecendo para os estrangeiros a cada 300 anos, aproximadamente.

Na sétima arte, diretores como Glauber RochaKleber Mendonça Filho e Walter Salles, e atrizes como Sônia Braga, Fernanda Montenegro e Fernanda Torres são capazes de assoprar essa névoa a fim de tornar a nossa Ilha Brasil finalmente visível aos olhos do mundo.

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