quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Reviver o Holocausto como experiência turística é o supremo kitsch, João Pereira Coutinho, FSP

 No dia em que passaram 80 anos sobre a libertação de Auschwitz, dei por mim no cinema, assistindo ao filme "A Verdadeira Dor", que estreia no Brasil nesta quinta-feira. Há algo de sacrílego nessa escolha, dirão alguns: uma comédia que tem o Holocausto como tema de fundo?

Não exatamente. Melhor dizer que é uma comédia, ainda que amarga, interessada em questionar a mera possibilidade de podermos sentir ou imaginar o que foi o Holocausto. Você quer a resposta curta? Não podemos.

Cartaz de 'A Verdadeira Dor'
Kieran Culkin e Jesse Eisenberg em cartaz do filme 'A Verdadeira Dor' - Divulgação

No centro da história temos Benji e David, dois primos de Nova York, que viajam para a Polônia com o dinheiro da avó judia, uma sobrevivente do Holocausto recentemente falecida. A ideia é fazer um tour sobre o sofrimento judaico no país —o gueto de Varsóvia, o campo de concentração de Majdanek, a antiga casa da avó etc.

Só essa ideia já tem potencial cômico (e absurdo): o que é fazer um tour sobre o sofrimento judaico?

Benji, o primo inconveniente e desbocado, começa a questionar a lógica do projeto: no monumento aos que lutaram contra o nazismo, ele faz pose para as fotos e até convence o resto do grupo a participar no teatro. O primo David, horrorizado, pergunta se é decente.

É uma boa pergunta. Mas o que é ser "decente"? Fingir que é possível experimentar o que aconteceu na Europa entre 1939 e 1945?

Mas há mais. Porque Benji não se cala no seu descontrole emocional. Quando um membro do grupo lhe diz que se converteu ao judaísmo porque sobreviveu ao genocídio de Ruanda, ele não sabe se rir ou chorar. Como se o judaísmo fosse um clube a que se pertence depois de pagar a anuidade do tormento. Sim, podemos aprender sobre o Holocausto. Aliás, devemos aprender, sobretudo quando o antijudaísmo cresce no Ocidente, à esquerda e à direita.

Mas a ideia pop de reviver o Holocausto como experiência turística, ou até cinematográfica, sempre me pareceu a consagração suprema do kitsch, entendido no seu sentido genuíno: uma forma artificial de gerar emoções fáceis que só degradam a inominável tragédia original.

Há uma "dor verdadeira" que nos está vedada, eis o ponto. Mas o filme vai mais longe ainda, questionando se as únicas dores verdadeiras não serão mesmo as nossas, por mais irrelevantes que pareçam no grande esquema das coisas.

No tour polonês, os primos visitam lugares de sofrimento. Mas são os seus próprios sofrimentos que contam, porque é com eles, e não com um sofrimento abstrato e histórico, que terão de lidar.

E eles lidam, como podem: com medicação, histrionismo e, na hora do retorno a Nova York, encontrando refúgio na família ou na companhia de estranhos, em pleno aeroporto.

Como lembrava o filósofo sobre o mito de Sísifo, cada um é responsável pela sua própria pedra. Não vale deixá-la na porta de ninguém.

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