quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

O problema da inteligência artificial será a estupidez natural, Rui Tavares, FSP (definitivo)

 A humanidade teve muito tempo para se preparar para a inteligência artificial.

Para não mergulhar nas profundezas do mito, basta dizer que, há cem anos, uma das peças teatrais da moda —hoje esquecida— era a R.U.R. (Robôs Universais de Rossum), do escritor tcheco Karel Čapek.

Claro, sabe-se que é daí que vem a palavra "robot" (robô), ela própria sugerida pelo irmão do autor, Josef Čapek, a partir de uma derivação da palavra eslava "rabot", que quer dizer algo como labutar. Mas os robôs de Čapek têm pouco a ver com as criaturas mecânicas que conhecemos hoje em dia.

Tela de celular com o logo do DeepSeek, um desenho de uma baleia roxa
Tela de celular com o logo do DeepSeek, que anunciou inteligência artificial mais barata que concorrentes dos EUA - Reuters

Os robôs de Čapek eram feitos de uma espécie de protoplasma que permitia dar vida a matéria inerte e criar músculos, nervos e pele. O que os distinguia verdadeiramente dos humanos era a capacidade de raciocinar sem sentimento. A sua realidade corpórea é irrelevante; o que importa mesmo é a existência de uma inteligência artificial criada por nós, mas que nos vê sem emoções nem ilusões —e que não gosta do que vê.

A peça de Čapek foi escrita no início dos anos 1920 e se tornou um sucesso internacional, um feito para um texto dramático de um idioma falado por poucos milhões de pessoas num país que ainda nem tinha cinco anos como Estado independente.

Durante toda aquela década, a R.U.R. rodou pelos palcos europeus e mundiais e deu origem a debates literários com alguns dos intelectuais da época, incluindo George Bernard Shaw e G.K. Chesterton —a quem Čapek responde, dizendo que o cerne da sua peça é a interação entre duas verdades, a saber: que "o progresso técnico emancipa o homem do trabalho… mas também o desmoraliza".

Em 1924, a peça levou a Nova York o tema da revolta das criaturas contra os seus criadores, que já era clássico e se tornou uma banalidade. Mas, em 1929, o crítico de um jornal simpático à causa operária pôs o dedo na ferida da vantagem essencial dos robôs sobre os humanos: "Ao ter feito os seus robôs universais e não nacionais, e portanto imunes às guerras entre si como aquelas que emergem pelas rivalidades e invejas internacionais, [o autor] descobre que os robôs conseguem formar uma união universal pela exterminação dos homens" —isso foi escrito dez anos antes da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Escrevendo numa época de nacionalismos furiosos entre as duas grandes guerras mundiais, Čapek entendia o cerne da debilidade humana que representa o apoio ao nacionalismo tacanho perante ameaças universais.

É acima de tudo isso que me faz pensar o falatório global desta semana sobre inteligência artificial chinesa contra inteligência artificial americana.

Tal como não havia "física judaica", "matemática alemã" ou "biologia soviética", como no tempo de Čapek se dizia, a inteligência artificial é, na essência, apenas uma.

Nacional será, sim, a incapacidade de a conseguirmos regular. Tivemos cem anos para pensar nisso. Mas a inteligência artificial chega numa fase de nacionalismo ressurgente. Sempre o pior momento; mas nada que surpreendesse Čapek.

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