Em 2017, o então prefeito João Doria pensou ter encontrado no "alimento granulado nutritivo" a solução para combater a fome e o desperdício de comida em São Paulo. Descrito como um suplemento feito a partir de alimentos próximos ao vencimento ou de sobras industriais transformadas em farinha enriquecida com nutrientes, o produto logo se popularizou pelo que de fato é: ração humana. Críticos argumentaram que o projeto violava o direito básico de vulneráveis a uma alimentação de qualidade. Ao que Doria retrucou: "O pobre tem fome, o pobre não tem hábito alimentar".
Não convencida pelo atual ex-político, Fernanda Sabatini resolveu investigar em seu doutorado —sob orientação da professora Fernanda Scagliusi (Faculdade de Saúde Pública da USP)— as experiências e os desejos alimentares de mulheres em situação de rua.
Dados recentes revelam que mais de 327 mil pessoas vivem em situação de rua no Brasil. Quase 140 mil no estado de São Paulo. Se considerássemos as que tem algum teto, mas sobrevivem das ruas —um diverso grupo formado por trabalhadores precarizados, pedintes, usuários de drogas etc— os números se multiplicariam. Para Achille Mbembe, prestigiado filósofo camaronês, esses indigentes são vítimas da necropolítica: o poder político e social que determina, por ação ou omissão, quem deve morrer. Sabatini deu voz às sobreviventes.
Sua etnografia —tipo de estudo aprofundado das relações e culturas humanas em seu ambiente natural— foi conduzida entre 2018 e 2022, na região da Sé, centro de São Paulo. Sabatini interagiu com 27 mulheres (52% negras, 34% transgênero) em condições cotidianas, e registrou suas experiências em um diário de campo. Além disso, realizou entrevistas com 13 mulheres, em locais escolhidos por elas para garantir conforto e segurança. Esse processo permitiu a coleta de dados ricos e contextuais sobre o que pensam e desejam essas cidadãs à margem.
Os nomes a seguir são fictícios. Dignidade é o que quer Violeta: "Antes [da pandemia], o pote vinha da cozinha direto para a mesa. Nós nos servíamos e sentávamos para comer! Agora, você pega rápido, sem utensílios ou pratos; tudo é descartável. Comer no prato é muito mais digno."
Sol deseja a comida do passado: "Sinto falta do tempero do Nordeste... Bem temperado, apimentado, com Sazón, páprica, aquele gosto de alho e cebola... Como comida caseira."
Para Margarida, a comida precisa ser segura: "Não aceito qualquer comida que eles [os passantes] dão assim. Tenho medo. Algumas pessoas colocam veneno."
Pérola reivindica autonomia: "Se a cidade tivesse um lugar onde pudéssemos cozinhar, eu iria. A comida que fazemos é muito melhor! Tempero, tudo, feito na hora."
Jasmim quer comida em abundância: "Quando um caminhão de comida tombou, pegamos os vegetais e fizemos um buffet para todos nós... Tinha muita coisa! Vegetais, verduras e tudo mais. Eu amo salada! Sempre estou com muita fome!"
Ao contrário do que poderia imaginar gente como Doria, pessoas em situação de rua não são aculturadas; têm fome, mas também histórias, memórias, prazeres, hábitos alimentares. Seus desejos —sufocados pela violação do direito à moradia— devem ser reconhecidos como uma expressão legítima de dignidade, autonomia e identidade, e incorporados em políticas públicas de promoção do Direito Humano à Alimentação Adequada. É o que defende a autora, amparada em seus achados.
A propósito, da próxima vez que me perguntarem sobre a real importância da universidade pública —questionamento legítimo da sociedade que nos financia—, em vez de recorrer a rankings internacionais, apontarei para a primorosa obra de Sabatini e Scagliusi.
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