José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – A vida intelectual e política brasileira na segunda metade do século 20 foi fortemente marcada pela atuação de um conjunto heterogêneo de pensadores ligados à Universidade de São Paulo (USP). Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, José Arthur Giannotti, Octavio Ianni, Francisco Weffort, Fernando Novais, Roberto Schwarz, Paul Singer, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Marilena Chaui, Francisco de Oliveira e Paulo Arantes foram alguns dos protagonistas desse movimento, que repensou o país, integrou a oposição ao regime ditatorial instalado com o golpe militar de 1964 e contribuiu para a reconstrução democrática. O livro Lugar periférico, ideias modernas: aos intelectuais paulistas as batatas Boitempo, 2024), de Fabio Mascaro Querido, procura fazer um balanço dessa tradição intelectual e investiga as convergências e divergências de seus participantes ao longo das décadas de 1960, 1970, 1980 e 1990.
Querido é professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E o livro, lançado em 2024 com apoio da FAPESP, resultou de sua tese de livre-docência, defendida na Unicamp em 2022. Nesta entrevista à Agência FAPESP, ele apresenta algumas das ideias que desenvolveu.
Agência FAPESP – Qual foi seu objetivo ao escrever o livro e como ele se relaciona com sua trajetória acadêmica?
Fabio Mascaro Querido – O livro nasceu de uma tese de livre-docência defendida na Unicamp, no Departamento de Sociologia, em 2022. O trabalho tem uma dimensão acadêmica, fruto de pesquisas realizadas desde 2018, que se materializaram na tese. No entanto, além do caráter acadêmico, minha ambição era fazer um balanço da geração intelectual de São Paulo, especificamente dos intelectuais associados à USP, traçando a trajetória dessa geração desde os anos 1950 até as décadas de 1970, 1980 e 1990. A ideia era mapear como esse pequeno grupo de jovens professores e alunos da USP desenvolveu interpretações originais da sociedade brasileira e como essas ideias evoluíram. Além disso, busquei analisar esse legado sob a perspectiva contemporânea, levando em conta o impacto político e social dessas ideias no contexto atual.
Agência FAPESP – Vamos dar nomes a esses intelectuais.
Querido – A figura do Florestan Fernandes é absolutamente fundamental. Em torno dele, formou-se um subcampo intelectual paulista que, embora minoritário, começou a produzir uma interpretação própria do Brasil e rivalizar com as interpretações dominantes na época, como o nacional-desenvolvimentismo do Iseb [Instituto Superior de Estudos Brasileiros], no Rio de Janeiro, da Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe], de autores como Celso Furtado e mesmo do Partido Comunista, que também defendia a estratégia de desenvolvimento nacional, a ideia de que era preciso desenvolver o Brasil para que ele se tornasse um país moderno. É impossível não mencionar o famoso grupo de estudos de O Capital [a principal obra de Karl Marx, 1818-1883], formado no final dos anos 1950 por professores e alunos da USP. O grupo foi idealizado pelo filósofo José Arthur Giannotti, que trouxe influências do coletivo francês Socialisme ou Barbarie e da tradição filosófica de leitura rigorosa, estrutural, do texto. Entre outros, participaram desse grupo Fernando Henrique Cardoso, Ruth Cardoso, Fernando Novais, Roberto Schwarz, Paul Singer, Michel Löwy e Francisco Weffort. Outros intelectuais importantes do período abarcado por meu estudo foram Octavio Ianni, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Marilena Chaui, Paulo Arantes e Chico de Oliveira.
Agência FAPESP – E você procurou dar conta de todo esse processo?
Querido – Minha ambição foi fazer o balanço disso, como é que esse processo foi-se desdobrando, as diferentes vertentes que ganharam corpo ao longo do tempo. Vamos considerar, por exemplo, as contribuições do Fernando Henrique Cardoso. Eu analisei o trabalho dele em profundidade no meu estudo. Sua tese de doutorado sobre capitalismo e escravidão no Brasil meridional desafiou a visão tradicional nacional-desenvolvimentista, colocando em xeque a noção de que o Brasil poderia superar o atraso apenas por meio de um projeto de desenvolvimento nacional progressista. Ele tentou mostrar como, no Brasil, a modernidade foi construída a partir de um entrelaçamento entre o capitalismo e a escravidão. Tive também a pretensão, vamos dizer assim, de olhar para esse passado tão importante de nossa história intelectual, política e social de uma maneira mais ampla, a partir do presente, em um momento em que já não estamos mais no mesmo período histórico em que esses intelectuais foram mais ativos, embora muitos deles ainda continuem ativos.
Agência FAPESP – Essa visão de um entrelaçamento, de um desenvolvimento desigual e combinado, em contraposição à ideia de dois segmentos estanques, um moderno e outro arcaico, foi um aporte fundamental à visão de Brasil trazido por essa escola paulista, não foi?
Querido – Sim. E a USP desempenhou um papel muito importante nisso. Desde os anos 1930, mas especialmente a partir dos anos 1950, quando, no campo das ciências sociais, os professores brasileiros começam a tomar a frente, com Florestan Fernandes, como eu disse. Os paulistas começaram a questionar a ideia dos ‘dois brasis’. E a ideia de que bastaria apoiar o polo mais progressista para deixar o atraso para trás. Em 1963, antes do golpe militar portanto, em sua tese de livre-docência, o Fernando Henrique questionou a ideia de que haveria uma burguesia nacional progressista. Com o golpe, esses intelectuais, principalmente nos anos 1970, assumiram um papel cada vez mais central, não só na cena intelectual, como também na cena política. Por quê? Porque, de alguma maneira, eles foram legitimados por essa crítica precoce ao nacional-desenvolvimentismo, que acabou sendo derrotado em 1964. A burguesia nacional mostrou que estava muito mais disposta a apoiar o golpe junto com a burguesia mais vinculada ao capital internacional do que a apoiar uma perspectiva de desenvolvimento nacional junto com os trabalhadores, com os setores das classes médias e assim por diante.
Agência FAPESP – Fale sobre a trajetória desses intelectuais depois do golpe militar.
Querido – Todos eles se engajaram politicamente, levando aquele que, vamos dizer, era o seu capital simbólico, o fato de serem professores de uma grande universidade, como era e ainda é a Universidade de São Paulo. A partir dos anos 1970, assumiram posições no centro da vida política brasileira, não só da vida intelectual, em uma frente ampla de oposição à ditadura. E, a partir dos anos 1980, já no contexto da abertura democrática, posicionaram-se nos dois partidos que, de alguma maneira, hegemonizariam a vida política nas décadas seguintes. De um lado, o PT, criado em 1980, por uma conjunção heterogênea de militantes do novo sindicalismo, de setores progressistas da igreja católica herdeiros da teologia da libertação e de intelectuais de esquerda. Vale lembrar, dentre os muitos intelectuais que participaram da criação do PT, o papel desempenhado nesse processo por Francisco Weffort. De outro lado, houve, em 1988, a formação do PSDB, este sim ainda fortemente marcado pela intelectualidade paulista, com Fernando Henrique Cardoso, José Serra e outros – um partido construído por esses intelectuais em um momento em que já não tinham a mesma perspectiva de antes.
Agência FAPESP – Contextualize essas mudanças intelectuais no quadro mais amplo: econômico, social e político.
Querido – Foi exatamente o que procurei fazer em meu livro: articular esse processo intelectual com as transformações históricas mais amplas pelas quais a sociedade brasileira estava passando. Nos anos 1970, com todos os limites, a sociedade brasileira passou por um processo de modernização. Uma modernização conservadora, reacionária mesmo, mas ainda assim modernização. Aquele ideal da modernidade, que nos anos 1950 e 1960 parecia uma utopia, uma utopia que a esquerda acalentava, acabou se tornando um fato. O Brasil tornou-se um país moderno, para o bem ou para o mal. Então, o que percebi e sublinhei no meu trabalho foi como esses intelectuais de São Paulo, devido às opções que fizeram previamente, puderam apresentar uma resposta própria para as transformações em curso. E, nesse processo, colocaram-se no centro da vida política brasileira, especialmente a partir da abertura democrática, e mais ainda a partir dos anos 1990, quando Fernando Henrique assumiu a presidência do país, já com uma perspectiva muito diferente daquela que tinha lá nos anos 1960 e mesmo nos anos 1970.
Agência FAPESP – Em termos de balizas cronológicas, seu estudo vai de quando a quando?
Querido – O marco inicial do meu estudo é a criação do grupo de leitura de O Capital, em 1958. Esse grupo foi, de certa forma, mitologizado. Muitas vezes se atribuiu a ele uma importância maior do que realmente teve na época. Mas o meu interesse foi levar a sério essa mitologia e tentar entender por que esse grupo, esse pequeno grupo despretensioso, cujo propósito era simplesmente ler e discutir O Capital, poderia ser considerado um ponto de partida, um ato fundador. Embora Marx fosse ensinado no curso de ciências sociais e mesmo no curso de filosofia, ele não tinha na universidade a importância que os integrantes do grupo achavam que deveria ter. Para eles, ao contrário do que dizia o Florestan Fernandes da época, Marx não era apenas um autor dentre outros, como eram Max Weber, Durkheim e outros clássicos da sociologia. Marx era, para eles, um autor mais interessante para o entendimento da sociedade brasileira e de seus impasses. Por isso, eles se empenharam, inclusive, em cotejar as traduções com o texto original em alemão. E, para isso, convidaram jovens alunos que eram judeus austríacos de língua alemã: o Paul Singer, o Michel Löwy e o Robert Schwarz, três judeus austríacos que liam e falavam alemão. O Gianotti tinha estado na França, onde teve contato com o grupo Socialisme ou Barbarie, o grupo do Cornelius Castoriádis, do Claude Lefort, e também teve contato com a filosofia francesa e, principalmente, com dois autores, Victor Goldschmidt e Martial Gueroult, que propunham uma leitura cerrada do texto. Veio disso sua inspiração para criar um grupo capaz de mergulhar fundo na obra máxima do Marx. Então, meu estudo começa em 1958 com esse grupo. E eu avanço até o final dos anos 1990, em alguns momentos um pouco mais, até os anos 2000, quando trato de Chico de Oliveira ou de Paulo Arantes e do primeiro governo Lula.
Agência FAPESP – Sabemos que esse grupo de intelectuais, que já era heterogêneo desde o início, se fragmentou ao longo do tempo. Como foi isso?
Querido – Podemos encontrar indícios tanto nas relações que esses intelectuais mantinham uns com os outros quanto nas diferenças políticas, que foram se acumulando ao longo do tempo, simultaneamente às transformações da própria sociedade brasileira. A partir disso, eu identifiquei, de forma um pouco arbitrária, três vertentes fundamentais. A primeira é a vertente dos vencedores, vamos dizer assim, aqueles que, parafraseando Machado de Assis no Quincas Borba, ficaram com as batatas. Nessa vertente, temos o Gianotti, o Fernando Henrique e outros que se aglutinaram em torno deles e que, nos anos 1990, durante os dois mandatos do Fernando Henrique, dirigiram o país em uma perspectiva de integração à globalização neoliberal. Então, eu mostro como essa vertente começou questionando pela esquerda o Partido Comunista, a perspectiva nacional-desenvolvimentista; passou pela ideia da dependência nos anos 1970; admitiu a possibilidade de um desenvolvimento associado dependente, no momento de aproximação com os setores do MDB e de rivalidade com o PT nos anos 1980; até chegar à integração com a globalização neoliberal nos anos 1990. Em outro polo, a segunda vertente foi inaugurada, vamos dizer assim, pelo Francisco Weffort. Ele participou do grupo original como um dos alunos, mas, já em 1969, começou a questionar a ideia de dependência proposta por Fernando Henrique. Porque, para o Weffort, esses debates sobre a dependência estavam tirando o foco do que seria o essencial, que, segundo uma concepção um tanto dogmática do marxismo, era analisar as relações de produção e a luta de classes. Desse ponto de vista, o risco de colocar no centro a questão da dependência era cair em uma perspectiva nacionalista, ou de um socialismo nacionalista. Foi uma crítica um tanto injusta, porque não era bem essa a perspectiva do Fernando Henrique na época. Mas o interessante foi que essa vertente retirou do debate a questão de o Brasil não ser um país moderno, mas uma nação incompleta que precisava se desenvolver ainda. E afirmou a necessidade de analisar o Brasil tal como ele era, a sociedade tal como ela existia. Em 1976, o Weffort, que fazia parte do Cebrap [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento], criado em 1969, fundou o Cedec [Centro de Estudos de Cultura Contemporânea] com essa perspectiva, abrindo uma bifurcação. Chamei essa vertente de classista e universalista. O Weffort inaugurou e essa vertente foi radicalizada depois por um pequeno grupo de intelectuais, como a Marilena Chaui, o Marco Aurélio Garcia, a Elisabeth Souza-Lobo, a Vera Telles, a Maria Célia Paoli. Era um conjunto bem pequeno, que publicou a revista Desvios. E a terceira e última vertente, que não foi bem uma vertente, mas uma espécie de exceção, foi aquela centrada na figura do Roberto Schwarz, que depois ganhou um desdobramento mais recente, principalmente nos anos 1990, com Paulo Arantes e com o ‘último’ Francisco de Oliveira. Qual foi a singularidade do Roberto Schwarz nessa história? Foi articular, até o fim, uma perspectiva de classe com uma perspectiva de nação, escapando dos vieses tanto do grupo do Weffort quanto do grupo do Fernando Henrique. Schwarz entendeu que o Brasil era de fato uma nação periférica, dependente. E que, para entender as classes sociais no Brasil, era preciso levar em conta essa especificidade. Ele mostrou que não dava para simplesmente falar em classes, em relações de produção, sem considerar essa condição de dependência, porque isso deixou marcas na sociedade brasileira até hoje. Fomos o último país a abolir a escravização, e tudo isso nos define de uma certa maneira e define mesmo a nossa modernidade.
Agência FAPESP – O Roberto Schwarz acessou a questão a partir de um outro campo de estudos, o da literatura. Podemos supor que isso foi determinante para sua interpretação?
Querido – Exatamente. Ele conseguiu conectar classe e nação muito pelo fato de que é um crítico cultural e literário. E, então, pegou carona no Machado de Assis, o Machado de Assis como crítico das elites brasileiras do século 19, alguém que mostra, por meio de seu personagem, Brás Cubas, que diz uma coisa e diz outra sem muito problema, como a elite brasileira era: liberal quando convinha, mas escravista também. O Schwarz vai ver nisso uma amostra, uma demonstração de que as elites brasileiras não têm e nunca tiveram qualquer compromisso com a formação de uma nação minimamente digna do nome. Então, ele vai pegar carona nessa crítica das elites brasileiras feita pelo Machado de Assis para tentar entender os impasses da formação do Brasil moderno – ou, melhor dizendo, aquilo que caracteriza a periferia do capitalismo. O Schwarz sempre argumentou que uma crítica feita a partir de um país da periferia do capitalismo, como é o Brasil, pode nos ajudar a entender não só o Brasil, mas o mundo do qual o Brasil é uma parte periférica. Por isso, ele disse que o Machado de Assis é um mestre na periferia do capitalismo. E chegou a dizer que, em comparação a Balzac, o Machado de Assis é um autor muito mais complexo. Não porque fosse mais inteligente, mas porque, estando no Brasil, ele estava na periferia. Para conseguir dar conta dessa realidade, ele teve que lançar mão de estratégias literárias muito mais complexas. Como, por exemplo, criar esse narrador, que é um narrador defunto. Com todos os males que a condição de estar na periferia possa ter acarretado e ainda acarrete, o fato de sermos periféricos nos dá ao menos uma vantagem, que é uma visão mais crítica. Isso é importante principalmente hoje em dia, quando a crise atinge não só a periferia, mas também o centro do sistema: o nosso ponto de vista periférico nos permite enxergar coisas que quem está no centro muitas vezes não enxerga.
Agência FAPESP – De uma maneira ou de outra, esses intelectuais procuraram responder a desafios apresentados por sua época. Como você avalia o legado deles no contexto atual?
Querido – Embora esse legado seja muito significativo, ele parece cada vez mais distante da nossa realidade contemporânea, especialmente após as transformações políticas e sociais ocorridas no Brasil desde 2013. Meu livro busca compreender como essa geração contribuiu para diagnosticar o Brasil moderno, mas também afirma que os desafios atuais demandam respostas que vão muito além das propostas originais desses pensadores. Foi, aliás, um pouco o que o próprio Roberto Schwarz tentou fazer, ao lançar, em 2022, sua peça de teatro Rainha Lira. Em uma entrevista, ele me disse que já não sentia mais vitalidade para produzir um ensaio, que essa era uma tarefa para as novas gerações, mas que achou que podia escrever uma peça, machadiana ou brechtiana, para mostrar o que era essa confusão do Brasil contemporâneo, confusão que ele mesmo chamou de ‘cacofonia ideológica’, uma espécie de vale-tudo que ninguém sabe no que vai dar. Nesse sentido, podemos dizer que essa tradição intelectual, o Schwarz em particular, é um ponto de partida indispensável para nos ajudar a pensar o Brasil contemporâneo. Mas, daí até o ponto de chegada, será preciso que nós mesmos, de agora em diante, encontremos o caminho.
Mais informações sobre o livro Lugar periférico, ideias modernas: aos intelectuais paulistas as batatas podem ser acessadas em: www.boitempoeditorial.com.br/produto/lugar-periferico-ideias-modernas-153063?srsltid=AfmBOoprz6wCC6JTf_CpovC1NyU7H-U9pHLWud55S8sphIuEIHnlU8fN.
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