sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Marcia Castro - Os campos de concentração da seca no Ceará , FSP

 É muito pouco provável que alguém da sociedade brasileira jamais tenha ouvido falar das secas no Nordeste, visto imagens ou estudado o tema na escola. Entretanto, o fato de que houve campos de concentração da seca no Ceará ainda é desconhecido por muitos.

Em 1877, uma grande seca resultou na migração de milhares de pessoas para as cidades em busca de água e comida. A população de Fortaleza passou de 21 mil em 1872 para mais de 100 mil durante a seca e os migrantes eram vistos como um risco para a ordem da cidade.

A resposta do governo foi a criação de 13 abarracamentos em Fortaleza, locais que abrigavam e isolavam os migrantes, evitando o contato com o restante da cidade. Os migrantes recebiam comida e assistência, ambas precárias, e eram recrutados como mão de obra barata para obras no município.

A imagem mostra um cemitério ao ar livre, com três cruzes brancas em um terreno árido. Ao fundo, há uma pequena construção branca que parece ser uma capela ou um memorial. O céu está claro, com algumas nuvens brancas, e há uma árvore sem folhas à esquerda da imagem.
Cemitério das Almas da Barragem, onde os retirantes que morriam nos campos eram enterrados em valas comuns, em Senador Pompeu (CE) - Isadora Brant - 8.nov.2014/Folhapress

Cerca de 500 mil pessoas morreram na seca de 1877-79, o que representou 5% da população. Como comparação, a Covid-19 matou 0,34% da população.

A seca de 1915, retratada por Rachel de Queiroz, gerou nova onda de migrantes. Em vez de abarracamentos, o governo decidiu criar um único local na periferia da cidade, os campos de concentração (terminologia usada à época pelo governo).

O campo Alagadiço, próximo à estação de trem, foi planejado para acolher 3.000 pessoas, mas chegou a ter mais de 8.000.

A estratégia de isolamento ganha proporções cruéis com a chegada da seca de 1932. Foram criados sete campos de concentração: dois em Fortaleza, e os demais nos municípios de Crato, Ipu, Quixeramobim, Cariús e Senador Pompeu. Chamados de "currais do governo", foram estrategicamente localizados ao longo da linha férrea.

Os migrantes eram atraídos pela promessa de trabalho, alimentação, alojamento e atendimento médico. Entretanto, eram confinados em um local do qual não podiam sair, trabalhavam em troca de comida de péssima qualidade, havia falta de água, comida e remédio.

Recebiam um número ao chegar à estação de trem, eram vestidos com roupas feitas de sacos de cereais e tinham a cabeça raspada (teoricamente para evitar um surto de piolho). Morriam sem nome, sem registro, sem dignidade, sem memória.

Não se sabe ao certo quantos morreram nos campos de concentração de 1932, e as únicas ruínas que restam estão em Senador Pompeu. Em 2019, a área foi tombada como patrimônio histórico-cultural municipal.

Deveria ser patrimônio histórico nacional. E esse fato deveria ser tema obrigatório do currículo de história nas escolas.

Recentemente visitei as ruínas do campo de Patú, em Senador Pompeu. Lá aprendi que, após o fechamento do campo em 1933, muitos que lá estavam permaneceram na cidade em áreas onde hoje estão os bairros de Cruzeiro e Pavãozinho, os com maior vulnerabilidade no município.

Em Fortaleza, Pirambú, o maior aglomerado de favelas do Ceará e o sétimo maior do Brasil, originou-se no campo de concentração do Urubú em 1932.

As raízes de grande parte das desigualdades da sociedade estão no passado. O caso dos campos de concentração do Ceará é apenas um exemplo disso.

Esconder ou ignorar esse passado é cruel e perigoso. Cruel porque contribui para perpetuar décadas e até séculos de negligência e descriminação. Perigoso porque deixa a aberta a possibilidade para que seja repetido.


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