segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

ENCHENTES URBANAS SOMENTE SERÃO CONTROLADAS COM O ENFRENTAMENTO DE SUAS CAUSAS, Por Álvaro Rodrigues do Santos

 A cada nova eleição renovam-se as esperanças de que algo de mais efetivo vá ser feito no

combate às enchentes que castigam a Bacia Hidrográfica do Alto Tietê, o que vale dizer, a

Região Metropolitana de São Paulo. Mas para que essa expectativa realmente se concretize será

essencial, como ponto de partida, que as novas autoridades definitivamente se convençam do

total fracasso da atual e velha estratégia de combate às enchentes centrada essencialmente na

ampliação das calhas dos rios principais e na implantação dos dispendiosos e problemáticos

piscinões.

Em resumo, mas sem prejuízo da precisão, a equação básica das enchentes da Região

Metropolitana de São Paulo (certamente similar para outras cidades do país), pode ser assim

expressa:

“Volumes crescentemente maiores de água, em tempos sucessivamente menores, sendo

escoados para drenagens naturais e construídas progressivamente incapazes de lhes dar

vazão, tendo como palco uma região geológica já naturalmente caracterizada por sua

dificuldade em dar bom e rápido escoamento às suas águas superficiais.”

Ou seja, as cidades, por força de sua impermeabilização, perdem a capacidade de reter as águas

de chuva, lançando-as em grande volume e instantaneamente sobre um sistema de drenagem –

valetas, galerias, canais, bueiros, córregos, rios – não dimensionado para tal desempenho. E aí, as

enchentes. Ao menos em seu tipo mais comum.

Excessiva canalização de córregos e o enorme assoreamento de todo o sistema de drenagem por

sedimentos oriundos de processos erosivos e por toda ordem de entulhos de construção civil e

lixo urbano compõem fatores adicionais que contribuem para lançar as cidades a níveis críticos

de dramaticidade no que ser refere aos danos humanos e materiais associados aos fenômenos de

enchentes. E, lamentável e inexplicavelmente, as cidades continuam a cometer todos os erros que

estão na base dessa trágica situação.

Da equação hidrológica enunciada decorrem duas linhas básicas e lógicas de ação para a redução

das enchentes urbanas: a primeira, voltada a aumentar a capacidade de vazão de toda a rede de

drenagem, a segunda, voltada a recuperar, por infiltração e acumulação, a capacidade da cidade

reter uma boa parte de suas águas pluviais, reduzindo assim o volume dessas águas e

aumentando o tempo em que é lançado sobre as drenagens.

Muitas cidades, a exemplo de São Paulo, tem quase exclusivamente atuado na primeira linha

básica de ação, ou seja, procurado aumentar a capacidade de vazão de córregos e rios principais

através de grandes obras de alargamento e aprofundamento de suas calhas e de serviços de

desassoreamento, a um custo extraordinário e com resultados altamente comprometidos pelo

violento processo de assoreamento a que todo esse sistema de drenagem continua sendo

submetido.

Quanto à segunda linha de ação, ou seja, a recuperação da capacidade do espaço urbano em reter

águas de chuva, priorizou-se a construção dos malfadados e dispendiosos piscinões, uma obra

que por suas contra-indicações urbanísticas, pois que na prática constitui um verdadeiro atentado

urbanístico, financeiro, sanitário e ambiental, deveria ser a última das últimas alternativas a ser

pensada.


No entanto, com esse mesmo objetivo de retenção máxima de águas de chuva, e sem as contra-

indicações dos piscinões, há um enorme elenco de medidas, virtuosamente utilizadas em vários


países dentro do conceito Cidades Esponja, que sequer foram consideradas, apesar das

insistentes cobranças do meio técnico: reservatórios domésticos e empresariais para acumulação

e infiltração de águas de chuva, calçadas e sarjetas drenantes, pátios e estacionamentos

drenantes, valetas, trincheiras e poços drenantes, multiplicação dos bosques florestados por todo

o espaço urbano, etc.

Enfim, um conjunto de medidas voltadas a atacar diretamente as causas efetivas das enchentes, e

que uma vez aliadas a um vigoroso combate aos processos erosivos e a uma radical coibição do


lançamento irregular de lixo urbano e entulho da construção civil, constituem providência

indispensável para o sucesso de qualquer programa de combate às enchentes urbanas. Lembrar

que com o aumento da infiltração das águas pluviais tem-se como também resultado

extremamente positivo a realimentação das reservas estratégicas de águas subterrâneas. E mesmo

que isoladamente não suficientes para a eliminação total do problema, terão a propriedade de

reduzir drasticamente a quantidade e as dimensões de eventos extraordinários, como também os

custos das medidas estruturais de aumento de vazão que ainda se façam necessárias.

Providência complementar indispensável envolve questões associadas à gestão do espaço

urbano, como uma forte regulação técnica do crescimento urbano, que inverta, por exemplo, a

tendência espontânea ao espraiamento geográfico, e a criação de condições organizativas que

permitam uma eficiente articulação de caráter metropolitano.

Fundamental nesse propósito entender-se o contexto geológico da Bacia Hidrográfica do Alto

Tietê e da Região Metropolitana de São Paulo.

De uma forma geral, a ocupação urbana da metrópole paulista desenvolveu-se até meados do

século XX no interior do vértice dos rios Tietê e Pinheiros, e ao longo de alguns poucos eixos

estratégicos, ocupando preferencialmente terrenos sedimentares (terciários) de topografia suave e

de características geológico-geotécnicas favoráveis à ocupação urbana. Com o crescimento

explosivo após a metade do século, vêm sendo progressivamente ocupados, e sem nenhum

critério técnico diferenciado, os terrenos mais periféricos, de relevo mais acidentado e com solos

de alteração de rochas cristalinas extremamente mais vulneráveis à erosão (os solos de alteração

(saprolíticos) de rochas cristalinas são até 100 vezes mais erodíveis que os solos superficiais

laterizados e os solos argilosos dos sedimentos terciários). Ocupa-se assim hoje uma região

topograficamente mais acidentada com a mesma cultura técnica com que se ocupou a região de

topografia mais suave, ou seja, opta-se por produzir artificialmente, através de operações de

terraplenagem, áreas planas e suaves para assentar os novos empreendimentos, sejam

habitacionais, sejam empresariais. Assim, a expansão urbana vem se processando, via de regra,

através de intensas e extensas terraplenagens que retiram a vegetação e a capa protetora de solos

superficiais mais argilosos (e portanto mais resistentes à erosão) implicando em exposições cada

vez maiores e mais prolongadas dos solos de alteração (mais profundos, menos argilosos, mais

erodíveis) aos processos erosivos, em uma prática nociva e nada criativa do ponto de vista

técnico, pela qual persistentemente se privilegia a adaptação dos terrenos aos projetos ao invés

de adequar os projetos às características naturais dos terrenos.

Na Região Metropolitana de São Paulo a perda média de solos por erosão está estimada em algo

próximo a 13,5 m3 de solo por hectare/ano, o que implica na produção anual por erosão de até

8.100.000 m3/ano de sedimentos e sua decorrente liberação para o assoreamento da rede de

drenagem natural e construída. Especialmente as frações arenosas desse volume (3.250.000 m3)

se depositam nos leitos de rios e córregos, e as frações silto-argilosas (4.850.000 m3) são levadas

em suspensão e são depositadas mais à frente ou em condições de águas paradas, como os

piscinões e ruas e residências atingidas por enchentes. Ressalte-se que esse aporte de sedimentos

e lixo tem implicado em violento assoreamento dos piscinões, retirando-lhes em momentos

cruciais a capacidade de bem cumprir sua função projetada de retenção temporária de volumes

expressivos da água proveniente de episódios de chuvas intensas. .

Esse assoreamento é adicionalmente grave e intenso, considerada a baixa declividade do eixo

maior (Rio Tietê) da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê, apenas 16 cm/km, assim como de vários

de seus principais afluentes. Hoje, canais retificados, os leitos originais dos rios Tietê,

Tamanduateí, Pinheiros, Pirajussara e outros eram intensamente meandrantes, fato que revela a

natural dificuldade que toda a região tem em escoar rapidamente suas águas superficiais.

Decorrência direta é a incapacidade desses cursos d’água em bem transportar os sedimentos que

recebem, donde o intenso assoreamento de suas calhas e, com isso, a redução de suas

capacidades de vazão; mantidas dentro de alguma razoabilidade somente através de diuturnos e

caríssimos serviços de desassoreamento. O mesmo fenômeno acontece hoje nos deletérios


piscinões (reservatórios de retenção) que infelizmente vêm sendo considerados como a panacéia

de combate às enchentes.

Do ponto de vista dos processos geológicos, pode-se dizer que as modificações implementadas

pela urbanização no meio geo-botânico da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê, especialmente

através das operações de terraplenagem e da eliminação da proteção vegetal, proporcionou um

novo ciclo de dissecação erosiva dos entornos montanhosos e de sedimentação/entulhamento da

bacia.

Importante ressaltar que o poder público, através dos imensuráveis e intermináveis serviços de

desassoreamento dos rios da Região Metropolitana, obras em que já foram aplicados ao longo de

décadas recursos na ordem de alguns bilhões de reais, tem até hoje se batido exclusivamente com

as conseqüências dos processos erosivos.

Outro enorme problema decorrente refere-se à necessidade de disposição do material resultante

das operações de desassoreamento; que levam consigo, aliás, enorme e perigosa carga poluidora.

Ou seja, além dos benefícios diretos na redução das enchentes, para cada real aplicado na

redução do assoreamento (através do combate às suas causas), teríamos uma enorme economia

nas despesas públicas hoje implicadas no enfrentamento das conseqüências do assoreamento

(entre elas, as enchentes) e na recuperação urbana de áreas erodidas.

Para tanto, existe hoje disponível todo um arsenal de providências técnicas preventivas e

corretivas para o combate à erosão, desde instrumentos legais e fiscalizatórios, passando por

concepções de projeto mais adequadas a regiões topograficamente mais acidentadas, até novas e

eficientes técnicas de proteção superficial de solos expostos.

Enfim, resta somente que as autoridades públicas e privadas de alguma forma ligadas aos

interesses metropolitanos conscientizem-se definitivamente do insucesso da atual lógica de

combate às enchentes e da imprescindibilidade de implementar medidas que ataquem

diretamente suas causas.

Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br)

• Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT - Instituto de Pesquisas Tecnológicas

• Consultor em Geologia de Engenharia, Geotecnia e Meio Ambiente

• Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande

Barreira da Serra do Mar”, “Diálogos Geológicos”, “Cubatão”, “Enchentes e

Deslizamentos: Causas e Soluções”, “Manual para Elaboração e Uso da Carta

Geotécnica”, “Cidades e Geologia”

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