quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Atrito entre Trump e bispa simboliza divisão do cristianismo nos EUA, FSP

 Elizabeth Dias

The New York Times

Ao subir no famoso púlpito de Canterbury, nesta terça-feira (21), a bispa Mariann Edgar Budde estava um pouco com medo.

Líder da Diocese Episcopal de Washington, ela havia planejado por meses abordar três temas em sua pregação —dignidade, honestidade e humildade. Apenas 24 horas antes, porém, ela havia assistido ao presidente dos Estados UnidosDonald Trump, enunciar suas propostas numa cerimônia de posse em que foi ungido por orações de líderes religiosos conservadores.

A bispa Mariann Edgar Budde em serviço religioso na Catedral Nacional de Washington; o presidente dos EUA, Donald Trump, a primeira-dama, Melania Trump, e o vice-presidente, J.D. Vance, estavam na plateia - Kevin Lamarque - 21.jan.25/Reuters

Ele não estava mais apenas fazendo campanha —ele estava governando, pensou Budde. O início de sua gestão, com sua enxurrada de decretos, tinha encontrado até aquele momento pouca resistência. Ela sentiu um chamado para acrescentar um quarto elemento ao seu sermão: um apelo pela misericórdia, em nome de todos que estavam assustados com as maneiras como Trump ameaçou usar seu poder.

"Eu tinha a sensação de que havia pessoas assistindo o que estava acontecendo e se perguntando, ‘alguém vai falar alguma coisa?’", ela explicou, calma, em uma entrevista à reportagem na noite de terça. "Alguém vai comentar a virada que o país está tomando?"

Então, ela respirou fundo e começou a pregar.

Trump, sentado cerca de sete metros abaixo dela, fez contato visual com a bispa. Uma representante do cristianismo americano começou a falar com outro, e o homem mais poderoso do mundo foi interrompido por uma bispa de cabelos prateados que discursava no púlpito. Até que ele rompeu o contato visual.

Quem assistia teve a sensação de que Catedral Nacional de Washington, tão vasta, subitamente ficou pequena. E, com isso, a guerra sobre a quem pertence a autoridade espiritual nos EUA se transformou em um raro confronto público.

Por quase uma década, o cristianismo americano tem sido dilacerado de todas as formas possíveis. Professantes da fé discordam sobre a possibilidade de mulheres ocuparem o papel de sacerdotes, o lugar dos homossexuais, a definição de casamento, a separação entre Igreja e Estado, o movimento Black Lives Matter.

No centro de tudo isso, estava a ascensão de Trump como o chefe da Igreja dos EUA contemporânea na prática e a ascensão da direita cristã, que se declara a única e verdadeira voz de Deus.

Muitas dessas lutas foram isoladas. Cristãos com visões opostas quase nunca frequentam os mesmos santuários. Eles não ouvem os sermões ou as orações que os outros recitam.

Membros de congregações protestantes tradicionais se perguntavam se sua voz poderia ter alguma autoridade. Então, quando os cristãos conservadores estavam prestes a ganhar ainda mais poder, com o início do segundo mandato de Trump, Budde tentou algo diferente.

Trump não se moveu. Quando o sermão terminou, ele trocou olhares com o vice-presidente, J. D. Vance, que é católico, e este balançou a cabeça em um gesto de aparente desaprovação.

Depois, na manhã de quarta-feira (22), Trump publicou uma mensagem em sua rede social Truth Social exigindo um pedido de desculpas da "suposta bispa", que ele descreveu como uma radical de extrema esquerda e "hater".

"Ela trouxe sua igreja para o mundo da política de uma maneira muito desrespeitosa", disse Trump na ocasião. "Foi grosseira, e não convincente ou sagaz."

Budde, 65, é a primeira mulher a ocupar o seu cargo. Ela e Trump já tinham se enfrentado em 2020, quando ele ergueu uma Bíblia na Igreja de St. John depois de agentes usarem gás lacrimogêneo para abafar um protesto em defesa da justiça racial na praça Lafayette, perto dali.

Na época, ela escreveu um artigo de opinião para o jornal The New York Times em que se dizia indignada e horrorizada por como Trump fazia uso de símbolos sagrados para defender "posições contrárias às da Bíblia."

Nesta quarta, o republicano Mike Collins, deputado pela Geórgia, disse que Budde deveria ter seu nome incluído na lista de imigrantes a serem deportados.

Outros afirmaram que o próprio fato de ela ser mulher minava qualquer reivindicação de autoridade espiritual. "Bispa mulher" é o que basta para entender como isso terminaria, escreveu a ativista católica antiaborto Kristan Hawkins no X.

Cristãos progressistas sentiram, porém, que suas convicções finalmente tiveram uma voz. O ex-presidente Joe Biden, católico praticante que representava o resgate do cristianismo politicamente liberal depois do primeiro mandato de Trump, levou com ele uma era ao deixar Washington. O poder católico nos EUA se deslocou muito para a direita desde que o papa Francisco, hoje com 88 anos, foi acolhido em Washington durante o governo Barack Obama (2009-2017).

Em quatro horas, mais de 14 mil pessoas tinham assinado uma petição online agradecendo a Budde. Membros da Igreja Episcopal de todos os cantos de Washington afirmaram, com orgulho e gratidão, que Budde representava o cristianismo em que acreditavam e era a líder espiritual deles em publicações nas redes sociais.

De sua parte, Budde disse ter sentido que seu sermão partiu de "uma perspectiva que tem sido em certa medida silenciada na arena pública".

Ela sabia que não tinha muita autoridade na sala, disse ela, "porque não faço parte dos círculos espirituais em volta do presidente e do partido dele."

Serviços religiosos relacionados à cerimônia de posse de presidentes americanos tinham sido realizados na Catedral Nacional de Washington no passado. Eles costumavam ser planejados por um comitê dedicado à inauguração, no entanto, o que significava que o presidente eleito com frequência escolhia quem participaria deles.

Isso mudou no ano passado, quando a Catedral assumiu o planejamento do serviço. A ideia era tornar a cerimônia religiosa mais independente e livre de interferência partidária, de modo que ela não pudesse ser considerada uma unção sagrada.

Depois que Trump venceu, em novembro, a Catedral repassou à equipe dele uma seleção de músicas e de leituras para aquele momento. Mas a escolha do pregador foi exclusiva da igreja, disse um porta-voz do local.

Ainda assim, a parte do sermão que chamaria mais a atenção foi pensada horas antes do serviço.

"Pedir misericórdia é, na verdade, uma coisa muito humilhante de se fazer", diz Budde. "Eu não estava exigindo nada dele. Eu estava implorando: você consegue ver a humanidade nessas pessoas, reconhecer que elas têm medo? Se não ele, se não o presidente, será que outros serão capazes de fazer isso?"

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