quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Sabemos quem perde com o 'fim da cultura woke', FSP

 Joana L.

Ato 1: "Seu corpo, minhas regras". Foi essa a resposta automática de milhares de homens dos Estados Unidos às manifestações de preocupação de mulheres após a eleição de Donald Trump. Qualquer publicação que não demonstrasse alegria exultante pela volta do empresário ao Capitólio era a deixa para desfile de misoginia online de forma que não víamos desde a era pré-MeToo.

Manifestantes levantam cartazes a favor dos direitos das mulheres na Marcha do Povo em Washington, antes da posse de Donald Trump - Andrew Caballero-Reynolds - 18.jan.2025/AFP

Ato 2: As regras foram definidas há anos. Exemplo recente é o desfile da Victoria Secrets com pouca, ou nenhuma, inclusão. Corpos extremamente magros, extremamente brancos. A diversidade parece ter sido uma moda passageira; a regra é a volta da magreza extrema.

Ato 3: Mark Zuckerberg anuncia fim do programa de checagem de fatos na Meta e diz que a empresa precisa de mais "energia masculina". A repercussão é que a empresa fomenta (e lucra com) fake news e, na tentativa de se fazer mais palatável para o novo presidente americano, joga mais um palmo de terra na "cultura woke" –o que o dicionário Oxford definiu como estar alerta à discriminação racial e social e a injustiças. Homens comemoram o "fim da lacração" e o fim das políticas de diversidade.

Ato 4: O escritor britânico Neil Gaiman é acusado de assédio sexual em um podcast, que é minimizado pelos fãs do autor. Meses depois, a Vulture publica uma longa reportagem detalhando o comportamento predatório de Gaiman e de sua ex-esposa Amanda Palmer. Ele achou que passaria incólume (e o fez, durante décadas de carreira) porque era a palavra dele, autor renomado e premiado, contra a de mulheres que por vezes não tinham como pagar o aluguel. "Me chame de mestre", dizia.

Ato 5: Após uma cerimônia de posse que contou com discursos que prometiam acabar com políticas de diversidade, deportar imigrantes e colonizar outros planetas, Elon Musk faz um gesto que se assemelha a uma saudação nazista e é reconhecido por grupos neonazistas como nazista. "A era de ouro da América começa agora", dizem Trump e Musk. Nas redes, apoiadores celebram o fato de não precisarem mais ter que se preocupar em evitar gestos ou frases que deem a entender que eles não se importam com minorias sociais. Eles não se importam mesmo.

Ato 6: Em um podcast, uma jornalista brasileira relata como descobriu uma traição por meio de uma nota fiscal enviada para seu email. A traição conjugal é o de menos, ela descobre que o marido mantinha um grupo de conversas com amigos no qual eles desdenhavam de mulheres e destilavam misoginia. Ela narra como teve sua intimidade exposta, dissecada e desprezada. Enquanto os homens envolvidos publicam notas se eximindo de culpa, suas cônjuges saem em defesa da família e dos companheiros. "A violência aconteceu há quatorze anos, já está na hora de superar", dizem. Como se sofrimento tivesse data de validade.

A sucessão desses atos culmina, necessariamente, na tentativa de silenciamento e controle dos corpos de mulheres. Somos mais úteis quietas, dóceis, famintas, sem escolha sobre o que fazer com nossos próprios corpos e com nossa própria vivência. Devemos falar apenas quando perguntadas, devemos sofrer em silêncio, devemos normalizar comportamentos predatórios e misóginos, afinal, quem nunca pensou assim? Quem nunca acidentalmente fez uma saudação nazista, avaliou mulheres como se fossem mercadorias? Quem nunca confundiu um sonoro "não" como charme ou fetiche? Quem nunca se sentiu no direito de mandar no corpo alheio?

É estranho ter essa conversa em 2025. Mais estranho ainda que a maioria desses atos aconteceu num intervalo menor do que seis meses. São as consequências do "fim da cultura woke" e já sabemos quem é que sai perdendo no meio disso.


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