quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Reformar para avançar na transição energética, FSP

 Joisa Dutra

Diretora do FGV-Ceri (Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da FGV), foi diretora da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) e professora visitante na Harvard Kennedy School

transição energética só avança de mão dadas com legislação. Até agora, a caminhada está indo bem. Aprovamos a Lei do Combustível do Futuro, o marco para hidrogênio de baixo carbono e a lei das eólicas offshore, e o novo Programa de Aceleração Transição Energética (Paten).

Para que o país possa percorrer uma transição energética justa e equilibrada, falta revisitar o modelo do setor elétrico.

Com a mudança significativa da matriz elétrica nas últimas duas décadas, o desajuste entre as realidades físicas e o arcabouço legal e regulatório cria distorções e abre espaço para subsídios que atrapalham a operação e a expansão do setor. A adaptação é urgente.

Painéis solares em reserva de desenvolvimento sustentável em Vila Nova do Amaná, no Amazonas - Bruno Kelly - 22.set.2015/Reuters

O arcabouço legal do setor mudou pouco desde sua criação, em 2004. Naquela época, éramos um país marcado pelo trauma do racionamento de energia elétrica de 2001 e 2002, focado em equilibrar demanda e oferta.

A matriz era baseada em hidrelétricas (maior parte delas com reservatórios) e termelétricas. Passadas mais duas décadas, o mundo mudou profundamente.

A indústria de eletricidade experimenta transformações nos papéis de investidores, operadores e consumidores. Triplicamos a capacidade de geração mantendo nossa vocação renovável. Usinas eólicas e solares se juntaram a hidrelétricas, contribuindo juntas para gerar mais de 80% da eletricidade no país.

Somos líderes dentre as economias do G20 no quesito. Descentralizamos a produção com a geração distribuída –inicialmente eólica, depois solar– atraindo investimentos, gerando empregos e renda.

Hoje, mais de 4 milhões de instalações geram sua própria energia. Avança também a contratação no mercado livre, onde usuários negociam diretamente sua energia.

No meio de tantos avanços, as preocupações dos consumidores de baixa tensão ficaram para trás. Na digitalização, menos de 3% dos medidores no país podem ser enquadrados como inteligentes. Esse gap reduz a possibilidade de os usuários gerenciarem de forma mais eficiente seu consumo e beneficiarem o sistema.

Apesar de garantirmos acesso à eletricidade para mais de 98% da população, 1 em cada 5 domicílios gasta mais de 6% da renda com energia, um sinal de pobreza energética. Esse quadro fica bem mais grave nas regiões Norte e Nordeste.

Atualizar o modelo setorial é crucial para garantir energia segura, limpa e inclusiva. O elemento central dessa mudança é a formação de preços. O "curtailment" –corte de geração renovável– desponta como um dos principais riscos para investidores e desenvolvedores de renováveis.

Preços que pouco refletem custos de produzir energia e dos serviços de rede para fazê-la chegar ao consumidor onde e quando ele estiver potencializam o problema.

Temos o desafio de desenvolver resiliência das redes de eletricidade num mundo em que eventos climáticos extremos se tornam mais frequentes e severos.

O tema é conhecido dos moradores da Califórnia e do Texas, mas também de São Paulo e do Rio Grande do Sul. Como investir? Basta enterrar redes? Onde? Quando? Quem paga? Como remunerar esses investimentos?

O avanço da digitalização facilita também a adoção de tarifas mais modernas e adaptadas para refletir a qualidade dos serviços e a capacidade de pagamento dos usuários. E que precificam emissões de gases de efeito estufa.

Nossa matriz renovável é uma vantagem competitiva na era da descarbonização. Contudo, o crescimento do setor é limitado por um arcabouço obsoleto que cria barreiras em vez de pontes para um futuro com energia limpa, segura e inclusiva. Reformar não é uma opção; é uma necessidade para alinhar política com a realidade em transformação.

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