domingo, 26 de outubro de 2025

Vulgar especulação de cargos e propinas, Marcus André Melo, FSP

 

Que o Brasil viva, na conjuntura atual, um malaise político não deveria surpreender. Trata-se de um traço constitutivo da nossa experiência republicana, em que interregnos de entusiasmo cívico são espasmódicos. Há um século, esse malaise já se manifestava no desencanto da primeira geração republicana. Como escreveu Vicente Licínio Cardoso —cuja obra póstuma "À margem da História da República" (1933) reúne reflexões amargas sobre os fracassos dos governos republicanos—, "a grande e triste surpresa de nossa geração foi sentir que o Brasil retrogradou".

Falava-se, como hoje, em retrocesso democrático e de políticas. Para Cardoso, a história "não deve ser fabricante de elogios nem depósito sebento de críticas póstumas"; ela deve apontar o fracasso rotundo do país em áreas vitais, como a educação pública —"nossa tragédia".

Na literatura, ninguém exprimiu o desencanto cívico como Lima Barreto. Há pouco mais de um século, ele observou que "a política não é aí uma grande cogitação de guiar os nossos destinos; porém, uma vulgar especulação de cargos e propinas". Pouco mudou. O debate sobre cargos e propinas foi interditado desde o mensalão e a Lava Jato, em nome de uma suposta "criminalização da política". O resultado foi o desmantelamento de práticas institucionais, em vez da correção dos desvios: jogou-se fora o bebê com a água do banho. O desafio redobrou.

Menos de um terço dos brasileiros acredita que o país está na direção certa, segundo a Quaest. A corrupção —da qual o escândalo do INSS é um exemplo— ganhou proporções faraônicas e capilaridade, envolvendo inclusive o Judiciário. Criou-se um clima de Vale Tudo. Agora ela se entrelaça com a percepção de que o crime organizado penetrou as entranhas do Estado. Soma-se a isso a avaliação —apressada e equivocada, como analisei aqui na coluna— de que escapamos por um triz da derrocada da democracia.

O embaixador Rubens Ricupero evocou a imagem de "O Anjo Exterminador", de Luis Buñuel: os convidados querem deixar a festa, mas, por um motivo inexplicável, não conseguem transpor a porta de saída. "Essa imagem lembra o que está acontecendo no Brasil neste momento."

Cena de 'O Anjo Exterminador' (1962), de  Luis Buñuel
Cena de 'O Anjo Exterminador' (1962), de Luis Buñuel - Divulgação

A Nova República é marcada, contudo, por um padrão de malaise distinto dos períodos anteriores. Há uma dimensão adicional aqui com raízes institucionais: resultam do nosso desenho consensualista. O presidencialismo de coalizão, tal como se consolidou, gera o que a teoria democrática chama de baixa (ou inexistente) clareza de responsabilidade. Isso decorre da fragmentação partidária e do caráter hiperminoritário do Executivo.

O que confere singularidade ao caso brasileiro é a exacerbação desse problema por um Judiciário hiperprotagonista. Quando a responsabilidade por decisões e resultados é difusa, prospera o cinismo cívico: o eleitor não sabe a quem punir ou premiar. O Executivo transfere responsabilidades ao Legislativo e ao Judiciário —e vice-versa. Mais que isso: os próprios limites entre governo e oposição se esgarçam na formação de coalizões inusitadamente heterogêneas.

Não há paralisia decisória, mas falta de rumo.

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